Varrida em operação da prefeitura, Cracolândia recebia ações culturais
Rap móvel na Cracolândia (Foto: Alice Vergueiro)
Agenda de shows, rodas de samba e apresentações de teatro organizadas pelo coletivo A Craco Resiste funcionavam como uma política de ‘redução de danos’, segundo ativista
Quando se fala em Cracolândia, frequentemente se está discutindo um problema de saúde pública, uma questão urbanística ou, ainda, um entrave social. Dificilmente as análises consideram que usuários de crack e moradores de rua alojados no centro de São Paulo não são uma massa disforme de “viciados”, mas uma multidão de seres humanos com histórias e desejos muito distintos.
É essa a visão que o coletivo A Craco Resiste busca recuperar. Desde janeiro, o grupo composto por vinte ativistas vinha organizando regularmente atividades culturais das mais variadas na região, como rodas de samba, festas e apresentações de jazz. Isso até a madrugada do último domingo (21), quando uma megaoperação da polícia de São Paulo varreu, à base de bombas e balas de borracha, o fluxo de usuários e traficantes de drogas que se aglomerava ali, entre idas e vindas, desde o início dos anos 2000.
“Percebemos que a cultura é algo a que as pessoas podem se agarrar, algo além da droga. Mas agora, nosso trabalho ficou fragmentado, pois os moradores se espalharam pelo centro”, diz Beatriz Falcon, uma das ativistas fundadoras da Craco. Ela conta que lembra dos policiais chegando à área “como se fossem um exército indo para a guerra”: “Foi um ataque surpresa em um horário cruel. As pessoas deixaram tudo para trás”. Em nota, a prefeitura de São Paulo disse que a ação iniciou “acolhimento a dependentes na Cracolândia”.
A Craco, como é conhecida a iniciativa, atua de forma independente do governo e de empresas, captando os próprios recursos por meio de eventos e festas e coordenando sozinha os shows que levava ao local. A organização já promoveu na Cracolândia shows de bandas famosas, como As Bahias e a Cozinha Mineira e Chaiss na Mala, além de apresentações de rap, aulas de capoeira, rodas de samba de mulheres e até um bloco de carnaval – o Blocolandia. “Chega a ser uma forma de redução de danos, porque as pessoas não usam a droga quando têm algo divertido para fazer, como ouvir música ou cantar”, diz Beatriz. Quando havia roda de samba, os instrumentos “não ficavam nem cinco minutos nas mãos dos músicos”, porque os moradores pediam para tocar e fazer o próprio som.
As atrações culturais, apesar de importantes dentro da organização, não eram o foco principal nos primeiros dias da Craco. No final do ano passado, os atuais colaboradores se uniram para pensar maneiras de resistência contra o discurso do prefeito João Dória, que tratava os moradores da Cracolândia como “lixo humano”, nas palavras da carta de apresentação da Craco. “Conversando com os moradores, percebemos que o que predominava ali era o medo da violência policial. Então começamos a pensar em como ajudar”, diz Beatriz. Em 26 de dezembro, mais de 30 pessoas se reuniram na Praça Júlio Prestes para pensar juntos nessa ajuda.
A solução veio dos próprios moradores do fluxo, como é chamado o espaço de maior concentração dos usuários de crack: a organização de uma vigília durante a noite, que ficaria atenta a movimentações policiais e evitaria ataques surpresa, dando tempo para as pessoas se prepararem e fugirem, se fosse necessário. A noite foi o momento escolhido porque era o período mais vazio e perigoso. Durante o dia, os trabalhadores do centro, assim como ONGs e igrejas, costumavam alertar sobre qualquer movimentação estranha da polícia. Mas quando escurecia, os habitantes acabavam jogados à própria sorte.
Montada a estratégia da vigília, os moradores também vieram com a ideia de realizar atividades culturais para tornar as noites mais suportáveis para ambos os lados. E funcionou: desde o dia 2 de janeiro até o ataque deste domingo, os ativistas da Craco se revezaram para passar quase todas as noites no fluxo, sempre com alguma intervenção cultural. “É interessante porque a Cracolândia fica bem na frente da Sala São Paulo, uma instituição que, mesmo oferecendo atividades gratuitas, não permite a entrada dos moradores do fluxo. Mas com a Craco, eles ganharam seu próprio centro cultural”, diz Rob Ashtoffen, baixista do grupo Chaiss na Mala, que já se apresentou várias vezes no local e que esteve presente desde a formação da Craco.
O baixista lembra que, nos shows de jazz do Chaiss, as pessoas reconheciam e gostavam do gênero: “Chegavam a pedir Miles Davis e outros nomes do jazz. Ou seja: ao contrário do que a mídia faz crer, ali há pessoas normais, com gostos, lembranças, amores”. Ele afirma que tocar no local o fez perceber que a Cracolândia é um sintoma da própria política desumanizadora imposta pelos governos estatal e municipal. Raquel Virgínia, uma das cantoras da banda As Bahias e A Cozinha Mineira, concorda: “Nossa política produziu a Cracolândia por meio do arroxo à educação e à cultura, mas ao mesmo tempo massacra os usuários de crack como bodes expiatórios. Eles são as vítimas”.
Hoje, cinco meses depois do início da Craco, o objetivo do grupo ficou mais claro: denunciar e combater a violência física imposta pela Polícia Militar e pela Guarda Civil Metropolitana, além da falta de políticas estatais de redução de danos. “Nós queremos destruir a narrativa de que a Cracolândia é habitada apenas por criminosos, porque a verdade é que a maior parte da população dali está em situação de vulnerabilidade”, pontua Beatriz, dizendo também que a concentração dessas pessoas poderia ser encarada pelo Estado como uma oportunidade de ajudá-las, trazendo novas políticas de saúde e socialização, e não de desumaniza-las.
Segundo a ativista, a Craco deve continuar suas atividades – agora, com um esforço grande para recuperar documentos dos antigos moradores. O primeiro objetivo da organização, evitar e denunciar a violência policial, continua mais importante do que nunca, já que agora, em vez de um grande aglomerado, há pequenos grupos espalhados pelo centro, sem ter para onde ir: “Agora, essas pessoas só estão procurando um lugar para se esconder da chuva”, lamenta.
O que permanece, diz, é a intenção de desmistificar os usuários de crack: “A Cracolândia é um discurso que as pessoas leem, ouvem e assistem nos jornais, mas ninguém sabe de verdade quem está ali no meio. Nós sabemos: são seres humanos.”