Profunda colheita: a sabedoria e o lirismo na poesia de Rosa Oyassy

Profunda colheita: a sabedoria e o lirismo na poesia de Rosa Oyassy
divulgação

 

Profunda colheita, de Rosa Oyassy, é um livro belíssimo, insurgente, potente. Foi publicado em 2022, pela Ciclo Contínuo Editorial, com excelente trabalho de coleta, seleção e organização dos poemas por Marciano Ventura. A capa, de Silvana Martins, bonita, equilibrada, inventiva é um convite à viagem aos poemas do livro e daria uma coluna à parte, são múltiplos os seus significados. Na obra, a autora, Rosa Oyassy, apresenta-nos saberes profundos, tristes histórias de vida e de luta, a saudade, a indignação, o amor. É um livro lírico e delicado em suas imagens poéticas, ao mesmo tempo que pungente e crítico, cumprindo papel fundamental para a valorização das raízes de matriz africana.

Aproveitando o campo semântico da colheita, avanço dizendo que é importante compreender essa luta, tal como apresentada na obra, pela raiz – essa parte da planta que “mora” no fundo da terra, e estabelece tantas conexões entre o subterrâneo, o que não se vê, e a superfície. Sendo forte e vigorosa a raiz, a planta se mantém viva, a colheita é possível. Sublinho este aspecto porque a profundidade é um articulador de tempos, espaços e temáticas.

Profunda colheita é o livro de estreia da poeta e não poderia estar mais bem apresentado/acompanhado. A orelha é de Sueli Carneiro; e um dos prefácios, de Leci Brandão. Diz Sueli Carneiro na orelha que Rosa desvela “dimensões da alma negra ofendida e humilhada, mas também repleta de altiva resistência”, e como destaca Leci Brandão no prefácio, o livro é um convite a “todos e todas a beber cada palavra de afeto e de protesto deste livro que é acolhimento, acalanto e luta em forma de poesia”; dito pela poeta, “da dor não temo o açoite” (“Aprendi”).

Não é à toa que seja assim, pois Rosa Oyassy é, além de artista múltipla,  sacerdotisa e matriarca da Comunidade do Terreiro Ilê Axé de Yansã, localizado no Sítio Quilombo Anastácia (assentamento rural), em Araras, São Paulo, e é uma forte liderança na área da cultura, das lutas das mulheres negras e rurais e das tradições de matriz africana, aspectos destacados na abertura do livro por Makota Celinha, que sublinha a grande sensibilidade da poeta e o fato de a obra, a despeito de toda dor que surge nos versos, apontar para a beleza, o amor, a esperança e a fé – com o que concordo. Trata-se de um livro de aberturas e possibilidades de reinvenção da existência. Fabio Mandingo ressalta vários trechos de poemas e ele o conclui dizendo que espera os próximos livros diante dessa obra inaugural. Todas essas apresentações fazem jus à qualidade e relevância de Profunda colheita no cenário contemporâneo, desafiando os cânones acadêmicos e situando-se como leitura imprescindível para a compreensão das várias vozes que constituem o estado da arte da poesia brasileira hoje.

Rosa Oyassy realiza com excelência a difícil tarefa de aliar ética e estética, tomando a palavra como o centro da ação das reivindicações, das batalhas, nas sábias lições colhidas ao longo dos anos, pelas mãos e pelas lágrimas, ou ainda, para abordar o amor, as paixões, ou a violência, a miséria, a fome. A envergadura dos poemas, permeados pela oralidade, está, portanto, em sua potência compositiva, não reduzindo as questões políticas e nem se reduzindo a elas, pois trata-se de arte, de modo que a multiplicidade de aspectos que compõem a tessitura dos poemas apresenta a realidade pelas lentes da poesia e da criação artística.

A poeta capta as profundezas de uma história que sofre constantemente apagamentos, silenciamentos (“sou plantio de Zumbi/em Quilombo dos Palmares”, “Sementes”) e devolve ao leitor e à leitora a colheita. Mais do que tema do livro, o gesto de colher impõe-se em cada verso, em cada estrofe, nas imagens ora singelas, ora inusitadas; ora aterradoras, ora extremamente sofisticadas. São 53 poemas, alguns mais longos e outros mais breves, trabalhados em geral em versos livres, com ou sem rimas, embora sempre com cuidadosa escuta para o plano sonoro, bem como para a progressão das imagens, como, por exemplo, no poema “25-12-1972” “[…] Torno-me fagulhas, pequeninas estrelas, espalhadas, partilhadas […]”.

Nesta coluna, optei por apresentar brevemente um poema que eu situaria na seara existencial/lírica, para que haja oportunidade, assim como nos poemas engajados, de revelarem-se, por meio dele, a poeta e sua palavra. É importante notar que os poemas líricos ou aqueles mais existenciais têm papel preponderante na obra. Cabe destacar que nas obras em que o par poesia política e política da poesia se amalgama de modo muito intenso, como é o caso do livro de Rosa Oyassy, os poemas de luta acabam merecendo muitas leituras a partir de seus aspectos mais aparentes, diria, nesse caso específico, a dor, a denúncia a séculos de opressão e injustiça. Sem dúvida é um caminho importantíssimo de abordagem, mas a poesia de Rosa promete maior envergadura justamente porque, expandindo fronteiras, percorre trilhas em que o amor, a dor da perda amorosa, a saudade e a própria reflexão sobre a vida pulsam e são uma “modulação da voz lírica” que merece ser escutada também. Por certo, nesses poemas, o lugar de onde fala Rosa, crivado pela experiência, não se apaga de modo algum. A proposta é que arrisquemos escutar e ver articulações e cadências sob o prisma do lirismo em volume mais alto, iluminando-as um pouco mais.

Um dos poemas em que a sabedoria como lição colhida aos poucos e o lirismo unem-se de modo muito bonito é “Paciência”, que se organiza em duas estrofes irregulares, uma de cinco versos e outra de três versos, mais uma espécie de “coda” ao final, um aforismo.

Paciência

Paciência é o limite
para tudo que existe.
Esperar uma planta crescer
e desabrochar
é saber esperar

A Paciência é o limite
para quem quer aprender
a amar

VII – “Tudo se torna indiferente quando barram a nossa frente”

O poema pode ser lido em dois momentos. Na primeira estrofe é apresentada uma definição de paciência, relacionando-a à espera. Ou seja, a paciência tem, ao menos para o poema, uma dimensão temporal. Ela desenvolve-se ao longo de um tempo, que é o tempo de aprender a esperar para saber esperar, figurativizados pelo crescimento da planta (Esperar uma planta crescer/desabrochar/é saber esperar). Aqui o significado de paciência acompanha o que é comumente estabelecido.

A noção de paciência, em geral, sugere um alargamento do tempo, um gesto sem fim – a paciência não acaba, a não ser que a percamos, por isso se diz “perdi a paciência”, ou seja, o limite, o corte, aconteceria se não houvesse paciência; outra frase amplamente usada por nós e que indica esse aspecto é “paciência tem limite”. Assim, quando o poema inicia dizendo “Paciência é o limite”, tem-se o inusitado, uma reproposição de uma forma de perceber o mundo pelo senso comum. A força dos versos está em rever essa concepção: “A paciência é o limite/para tudo o que existe”. Ao terminar o primeiro verso em “limite”, lançando-o ao espaço em branco da página à espera de um enjambement, é como se a lição de espera aí se efetivasse, a duração pressupõe um enlace na vida no que tange à espera; no poema, no que tange ao verso.

Enjambement é o expediente em que, para dizer metaforicamente, um verso segura a mão do verso seguinte. No lugar de despenhar no papel em branco ao seu final, o verso é tomado por certa “ideia da prosa”, como ensina Giorgio Agamben; é como se a prosa corrompesse a poesia e obrigasse a leitura a seguir no verso seguinte, sem a pausa que normalmente acompanha a leitura do poema, verso a verso. Ora, a apresentação da paciência como um limite seria em si contraditória com o que dissemos acima, é porque ela dura, porque ela se estende no tempo que ensina a espera, assim, é preciso olhar esse limite de outra perspectiva. O enjambement garante a duração, o aprendizado interior da paciência, porque, talvez arriscasse dizer, ela é fundadora da própria existência segundo o poema, de tudo o que existe – cabem aqui a luta, a resignação, a semeadura, o plantio, a colheita. Assim, a leitura sem a pausa significativa no fim do verso impõe a duração que caracteriza a paciência. A paciência deve ser a fronteira de tudo, feito a onda marcando a areia da praia em dias de maré cheia, há sempre a possiblidade de ir um pouco além – limite de tudo o que existe, paciência.

Acompanhando o poema, e estabelecendo uma reflexão a partir dele, poderíamos pensar que a paciência, sendo o aprendizado da espera, é também o da esperança. A falta de saídas, a impossibilidade, o desespero são o avesso da paciência e é certo que às vezes não há saída a não ser a ruptura. Todavia, quem sabe esperar – ampliando – quem aguarda pacientemente sabe ter esperança; aguardar não significa de modo algum não agir, ao contrário, a ação não é, necessariamente, o oposto da espera, muitas vezes as ações dão conta de criar situações para que o tempo da espera seja profícuo. Retomando as considerações de Makota Celinha destacadas acima, compreende-se por que Profunda colheita é um livro de esperança e fé, porque só colhe quem espera, quem apreende a paciência. Desse modo, entre outros poemas, considero esse um dos pontos centrais do livro, que como uma espécie de caleidoscópio vai reconfigurando a leitura dos demais.

Ainda na primeira estrofe há um trabalho com as rimas que reitera o sentido do poema, contribuindo para que o plano de expressão e o plano de conteúdo se aproximem: “limite” e “existe” rimam toantemente. Esse tipo de rima, mais difícil de exercitar do que as rimas perfeitas, coloca, no poema em questão, o limite e a existência em foco. Se não rimam perfeitamente, encontram um modo de harmonizar porque disso dependerá, inclusive, a colheita no tempo certo, o desabrochar. Na sequência, rimas internas entre crescer/saber novamente aproximam sentidos e esperar/desabrochar do mesmo modo são aproximados pelas rimas perfeitas. A poeta orquestra a sinfonia da espera, suas pausas, silêncios, enjambements. Toda a composição afina-se com a temática; a poesia exacerba.

Em outras palavras, as rimas acontecem no poema e na vida quando a paciência opera. Eis aí uma profunda lição.  Considerando o título da obra, Colheita profunda, é o aprendizado do tempo da colheita que vem à luz nesse breve e importante poema; a colheita é o desabrochar de um outro ciclo, sendo que há um primeiro ciclo que regula a paciência até que a planta cresça e desabroche e, em seguida, outro momento que se segue ao desabrochar, ainda que não nomeado e considerando o conjunto da obra, que é a colheita em si.

Disse inicialmente que as estrofes dividem o poema em dois tempos. Reformulando, talvez pudéssemos pensar em um aprendizado maior e a partir dele um aprendizado específico. Desse modo, o segundo momento do poema está na segunda estrofe. Os versos chamam a atenção para o amálgama entre o dizer e o saber, tecidos delicadamente e com muita competência pela poeta, mais uma vez, na forma do corte. Com uma sutil – mas importante – diferença em relação à primeira estrofe, na segunda, a palavra paciência vem precedida do artigo feminino a, que vai corroborar para a especificidade da espera tratada nesta estrofe, qual seja, aquela que se deve ter para aprender a amar: “A paciência é o limite/para quem quer aprender/a amar”. Eu diria que aqui está o pulsar do poema e do livro: o amor, o amor em suas várias configurações, resultado de uma densa e profunda aprendizagem.

Perceber a maneira pela qual a sabedoria ingressa no poema é fundamental para compreender não apenas esse, mas todos os poemas do livro de Rosa Oyassy. Não é uma constatação ou uma tese, a sabedoria é aprendida a duras penas, seu caráter epifânico surge através da travessia, sendo a vida, ela mesma, um rito de passagem. É instigante observar como um poema aparentemente simples revela-se complexo não só pela temática, mas, sobretudo e fazendo valer o princípio da função poética, pelo modo como forma e sentido enlaçados permitem que o poema diga(se). Não é uma aula sobre paciência que o leitor e a leitora têm diante de si, nada é prescritivo ou pedagógico em seu sentido mais raso, ao contrário: é a poesia profunda da paciência que está sendo ensinada. E isso faz toda a diferença.

Se na primeira estrofe o sentido tende ao universal, inclusive porque é o “limite de tudo que existe”, o exercício da paciência no amor poderia ser lido, entre outros aspectos a que a leitura conduziria, como uma decorrência do “ensinamento” da primeira estrofe: se a paciência é o limite para tudo o que existe, o amor, incluído neste “tudo” requer (reivindica?) paciência, ou seja, o gesto de amar é um aprendizado que pressupõe o aprendizado da paciência. A sutileza aqui é importante. Não se aprenderá a amar com os mecanismos usuais do amor: contenção do ciúme, entrega, cumplicidade, desejo. Ainda que essas instâncias possam fazer parte do percurso amoroso, aprender a amar requer, antes de qualquer outra coisa, paciência, tempo de espera, de desabrochar. O amor, como a flor, é planta que cresce aos poucos, no seu tempo, e desabrocha para ser, talvez, como filho da paciência que é, o limite de tudo que existe.

Mais uma vez, o enjambement é fundamental na construção do sentido dos versos, pois, se entre o primeiro e o segundo versos dessa estrofe, o sentido se dá de modo semelhante ao que ocorreu na primeira estrofe: “A paciência é o limite/ para quem quer aprender/” e até aqui poderíamos pensar em qualquer aprendizado, o novo corte dos versos traz o inesperado: aprender o quê? a amar.

É como se o corte dos versos, e à sua revelia, o enjambement, encenassem a própria espera; como se a indecidibilidade ao final de cada verso dessa estrofe desenhasse uma espécie de ânsia para a completude do sentido. Estamos diante de uma lição de amar, como se um oráculo se abrisse e revelasse um segredo, um caminho. Ao fim e ao cabo é disso que trata o amor: da nossa incompletude, como os versos que anseiam por serem completados, também nós ansiamos por enjambements. Aprender a amar talvez seja aprender o tempo de a planta crescer e desabrochar para ser colhida. Inevitavelmente, pergunto-me em que medida a colheita profunda não aponta, na poeta Rosa Oyassy, para a poesia em si como seu resultado, a poesia fruto da colheita profunda não apenas no livro, mas na vida?

É preciso lembrar, ainda, que os vinte primeiros poemas do livro são concluídos com aforismos colocados entre parênteses e numerados em algarismos romanos como se uma outra voz penetrasse os textos. Não me alongarei aqui porque para tal seria necessário considerarmos o conjunto dos vinte poemas, bem como os vinte aforismos, que soam, talvez, como provérbios, palavras sábias, ensinamentos, sentenças marcadas pelo interdiscurso. No caso do aforismo VII, que acompanha o poema “Paciência”, talvez pudesse ser lido como algo que mostra o poder da paciência. Se há uma barreira no caminho, a paciência saberá enfrentá-la; ter algo que nos barre a frente é indiferente se foi aprendida a lição da paciência. O aforismo, construído em tom proverbial, fecha a profunda lição reforçando aspectos da poesia oral que atravessa a obra.

Encerro este breve texto certa de que Profunda colheita é farto e muito bonito; profundo como deve ser qualquer atividade em que a poesia esteja implicada, qualquer atividade em que ancestralidades emergem com força. Não se chega a uma experiência poética impunemente, sem que a vida tenha deixado marcas indeléveis na subjetividade, cicatrizes. A poesia poderia ser compreendida também como o limite de tudo o que existe, como uma lição de espera, uma aprendizagem do amar em amplo espectro e, ao mesmo tempo, como a instância que, ao converter em possibilidades os interditos e impossíveis impostos pelo mundo que nos circunda, é semeadura, desabrochar e colheita: do vivido, do que a memória guarda, do que a esperança tece, do que o verbo não cala.

 

Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora de teoria da literatura e literatura brasileira do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Observatório Mulheres-UFSCar. É bolsista produtividade do CNPq (dijunkes@gmail.com)

O nome coluna, Musa Militante, foi escolhido a partir de Haroldo de Campos. Trata-se de uma das seções de entremilênios, que apresenta poemas políticos e refere-se, portanto, à poesia (musa) que não se abstém e toma partido.


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