Os passos de caranguejo do Prêmio Jabuti

Os passos de caranguejo do Prêmio Jabuti
(Arte Revista Cult)

 

Entra ano, sai ano, o Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), parece não se encontrar. A polêmica mais recente envolveu o agora ex-curador Pedro Almeida, que perdeu o cargo após postar nas redes sociais uma nota mal-informada sobre o número de mortes decorrentes do coronavírus. Mais que um incômodo com o curador da estação, a saída reforçou a crise permanente de um prêmio cujo sentido nos últimos anos não tem feito jus ao capital social acumulado por mais de seis décadas. Tal instabilidade contrasta com o longo período em que a premiação esteve sob o comando de um mesmo responsável, de 1991 a 2014. De 2014 para cá, já foram três curadores, e necessariamente haverá uma quarta pessoa, uma vez que, até o momento em que escrevo este texto, ainda não há um titular no posto.

Entre as polêmicas do Jabuti no século 21, talvez a mais significativa tenha ocorrido dez anos atrás, quando o Grupo Record promoveu uma verdadeira campanha contra o prêmio, questionando a vitória de Chico Buarque na categoria Livro do Ano de Ficção, com Leite derramado, romance publicado pela Companhia das Letras. Um colunista famoso por diatribes, na época na Veja, liderou o linchamento valendo-se de um detalhe: na categoria Romance, Chico Buarque foi o segundo colocado, e na categoria Livro do Ano, ele venceu o romance premiado Se eu fechar os olhos agora (Record), de Edney Silvestre. O ataque a Chico vinha acompanhado de um discurso antipetista. Os títulos de dois posts do blogueiro são suficientes para indicar como o prêmio foi maldosamente lido numa chave anabolicamente politizada: “O Prêmio Jabuti e os asquerosos 1: o jornalismo na fase ‘Alemanha Oriental’ no dia em que o Prêmio Jabuti se transforma num espetáculo de vigarice política” e “O Prêmio Jabuti e os asquerosos 2: os detalhes de uma fraude. Ou: ‘Dil-má/ Dil-má’”.

A acusação de fraude (eleitoral, por extensão) valia-se, para se sustentar, de uma desinformação: as regras do Jabuti permitiam, havia alguns anos já, que um dos três finalistas de qualquer categoria recebesse a distinção de Livro do Ano – criada em 1991 e que, a partir de 1993, passou a ser concedida para duas obras, uma de ficção e outra de não ficção. E casos assim já haviam acontecido em 2000, 2001, 2004 e 2008. Isso ocorre porque o júri das duas fases não é o mesmo, e além disso, é socialmente distinto: quando analisa as categorias específicas, o júri é formado por especialistas; quando vota para Livro do Ano, além de participarem da eleição todos os jurados do Jabuti (o que, obviamente, amplia muito o aspecto da recepção), também são convidados a votar editores e livreiros ligados à CBL.

O Jabuti, desde então, tentou responder ao “carimbo ideológico” que fez dele um “prêmio esquerdista” – acusação sem pé na realidade. Começou na época uma série de tentativas de acomodação: em 2011, o número de categorias subiu de 21 para 29, e, o que é mais significativo, para a seleção do Livro do Ano não havia mais a participação de três livros por categoria, apenas os primeiros lugares passaram a concorrer.

Para a edição de 2014, depois de alguns anos de tensão, a CBL escolheu Marisa Lajolo para a curadoria do prêmio. Lajolo, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Mackenzie, com longa trajetória no estudo da literatura infanto-juvenil, pesquisadora da obra de Monteiro Lobato, surgiu como uma possibilidade de consenso e de reconstrução do Jabuti. Marisa promoveu mudanças suaves na premiação, que viveu alguns anos de relativa calmaria.

Depois de três anos, em 2017, Lajolo deixou a curadoria, oficialmente a pedido dela, e foi substituída por Luiz Armando Bagolin, pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e ex-diretor da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Em 2017, no discurso de entrega do prêmio, Bagolin criticou as bibliotecas, afirmando que “a maioria delas são infelizmente apenas depósitos de livros guardados sob a suspeição antipática de bibliotecários e arquivistas mal-humorados”. O Conselho Regional de Biblioteconomia emitiu nota criticando “o olhar deturpado do orador, que ainda se prende a uma imagem caricata do bibliotecário”. No mesmo discurso, o curador afirmou que “o prêmio deste ano conseguiu renovar e diversificar o corpo de jurados e o resultado vê-se na lista de finalistas de praticamente todas as categorias concorrentes, com a presença de muitas editoras diferentes representadas, além da participação de autores jovens e autores consagrados lado a lado”. A fala ignorava o fato de que 7 dos 10 finalistas da categoria Romance, a mais disputada, eram do grupo Companhia das Letras (e dois dos três premiados). Ao todo, em 2017 esse grupo ganhou 11 Jabutis, o que demonstrava que a composição dos jurados e algumas regras do Jabuti jogavam contra a bibliodiversidade.

 

O encadeamento dos fatos nos últimos anos sugere uma relação estreita entre a crise política do país e a do Jabuti. Afinal, editoras e entidades do livro, longe de serem atores neutros, são atores simbolicamente influentes, com amplo tráfego nas mais diferentes forças políticas

 

Bagolin, na edição de 2018, iniciou uma mudança radical: o Jabuti de Livro do Ano passou a ser concedido a apenas uma obra, independentemente de ser de ficção ou não ficção; as categorias deixaram de premiar os três primeiros colocados e passaram a eleger apenas uma obra; foram criadas duas novas categorias: Formação de Novos Leitores e Impressão, reforçando o caráter profissional do prêmio; e o prêmio foi dividido em quatro eixos, cada um com subcategorias – Literatura (Romance, Poesia, Conto, Crônica, Infantil e Juvenil, Tradução, HQ); Ensaios (Biografia, Humanidades, Ciências, Artes, Economia Criativa); Livro (Capa, Projeto Gráfico, Ilustração, Impressão); Inovação (Formação de Novos Leitores, Livro Brasileiro Publicado no Exterior). Algumas dessas mudanças não foram bem recebidas, e foi durante o debate nas redes sociais que o curador publicou uma resposta considerada homofóbica a um colunista do site PublishNews.

Em 2020, um novo debate colocou o Jabuti numa posição defensiva, ainda antes do afastamento de Pedro Almeida. Um grupo de quase cem editores pediu à CBL que, em função da Covid-19, o prêmio reduzisse o valor das inscrições para um piso de R$ 228 (o oferecido para as editoras que realizassem mais de 100 inscrições), além de prorrogar o prazo de inscrição por 30 dias. A CBL aceitou a prorrogação, mas manteve inalterada a tabela de preços que favorece editoras maiores, argumentando que não era mais possível adotar a mudança neste ano.

O Jabuti chega a 2020 mergulhado numa crise longa e múltipla. Da estabilidade na curadoria de José Luiz Goldfarb até 2014 (que, não obstante, foi acusado de injúria racial durante a Flip 2018), passamos para um período de permanente turbulência que expressa não apenas a crise do mercado editorial, o que seria previsível, mas principalmente a profunda divisão da intelectualidade brasileira. O encadeamento dos fatos nos últimos anos sugere uma relação estreita entre a crise política do país e a do Jabuti. Afinal, editoras e entidades do livro, longe de serem atores neutros, são atores simbolicamente influentes, com amplo tráfego nas mais diferentes forças políticas. Além disso, as pressões econômicas decorrentes das crises do mercado editorial tornam o prêmio refém das práticas dominantes adotadas pelos grandes grupos, o que faz com que os menores arquem, proporcionalmente, de maneira injusta, com mais recursos no custo total do prêmio.

Nos últimos dez anos, múltiplas forças conseguiram mobilizar pautas para contestar o prêmio: a fragilidade institucional, uma política pouco afeita à diversidade editorial, além de posicionamentos racistas, homofóbicos e anticientíficos de seus curadores. Essas forças, no entanto, não são hegemônicas nem fortes o suficiente para impor ao prêmio um novo formato que incorpore essas questões prementes para a juventude intelectualizada. Por sua vez, as forças que conduzem o Jabuti e a CBL parecem pouco dispostas a compor uma frente com esses setores, e por isso adotam uma política de recusar a priori as propostas feitas diretamente pelos grupos que contestam o prêmio.

Qual o futuro do Jabuti? Parece claro que, no momento, não há uma saída. O certo é que ela passa, necessariamente, pela busca de um compromisso com esses setores mais progressistas, que defendem posições hoje enraizadas na intelectualidade brasileira: a defesa das diversidades culturais, raciais, de gênero, de classe e editoriais. Diversidades que guardam relação umas com as outras, mas não se confundem. E, enquanto essa abertura não estiver presente, não parece possível haver um projeto minimamente consensual e democrático capaz de fazer o Jabuti parar de andar de lado ou para trás, como um caranguejo tentando se esconder no mangue em dia de mar bravio.

Haroldo Sereza é jornalista e crítico literário. É diretor de redação do Opera Mundi


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