Potência de pensamento: por uma filosofia política da leitura
O desaparecimento dos livros na vida cotidiana e a diminuição da leitura é preocupante quando sabemos que os livros são dispositivos fundamentais na formação subjetiva das pessoas. Nos perguntamos sobre o que os meios de comunicação fazem conosco: da televisão ao computador, dos brinquedos ao telefone celular, somos formados por objetos e aparelhos.
Uma filosofia política da leitura nos ajudaria a pensar em quem somos desde que somos leitores de livros.
Formas da ignorância e poder dos livros
Se em nossa época a leitura diminui vertiginosamente, ao mesmo tempo, cresce o elogio da ignorância, nossa velha conhecida. Há, nesse contexto, dois tipo de ignorância em relação à qual os livros são potentes ou impotentes. Uma é a ignorância filosófica, aquela que em Sócrates se expunha na ironia do “sei-que-nada-sei”. Aquele que não sabe e quer saber pode procurar os livros, esses objetos que guardam tantas informações, tantos conteúdos, que podemos esperar deles muita coisa: perguntas e, até mesmo, respostas. A outra é a ignorância prepotente, à qual alguns filósofos deram o nome de “burrice”. Pela burrice, essa forma cognitiva impotente e, contudo, muito prepotente, alguém transforma o não saber em suposto saber, a resposta pronta é transformada em verdade. Nesse caso, os livros são esquecidos. Eles são desnecessários como “meios para o saber”. Cancelada a curiosidade, como sinal de um desejo de conhecimento, os livros se tornam inúteis. Assim, a ignorância que nos permite saber se opõe à que nos deforma por estagnação. A primeira gosta dos livros, a segunda os detesta.
No limite, a ignorância mal cuidada torna-se discurso e prática de vida. A educação é o cuidado da ignorância para que ela se transforme em conhecimento. Os livros são os meios mais acessíveis para o conhecimento e que, em sua forma mais evidente, providenciam a forma de subjetivação crítica que nos torna cidadãos. Perguntar pelas condições da nossa cidadania, tendo em vista uma cultura que abandonou os livros, a leitura e a formação que por ela se providenciava, torna-se urgente em nosso momento histórico.
O poder na sua forma violenta, se alimenta da ignorância e o ignorante se regozija quando não encontra nada que o negue. E porque não cuidamos da ignorância, ela domina a sociedade. Ela é transmitida, ela é “propagandeada”. Os livros são a antipropaganda, porque eles pedem mais que publicidade, eles pedem pensamento.
Leitura e democracia
Há um nexo entre a ignorância como questão cognitiva e a ignorância como questão política? A ignorância filosófica nos faz perguntar. A ignorância usada como bomba atômica contra populações inteiras na política de extermínio do conhecimento e da ação política que dele derivaria, não nos deixa responder. A ignorância é a costura com fio de aço nos olhos que impede de despertar para esse fato.
A construção das sociedades democráticas tem tudo a ver com a escrita e a leitura. A prática mais antiga da democracia tem a ver com a transmissão do conhecimento. Que a democracia não sobrevive sem a transmissão da informação pela qual os livros sempre forma os responsáveis é algo sobre o qual devemos meditar. Ora, sem os livros muita coisa teria sido perdida. Muita coisa teria deixado de ser partilhada. A própria reprodutibilidade dos livros tem a ver com a democracia moderna que, em seu melhor sentido, relaciona-se com a partilha do próprio conhecimento que em tudo deve à vida dos livros.
A falta de pensamento reflexivo nos assusta e é a responsável pelo clima de embrutecimento que vivemos hoje. Essa violência toda que se vê na televisão, essa violência que se vê nas redes sociais, no dia a dia entre as pessoas, é o sinal mais evidente do embrutecimento que herdamos de tempos ditatoriais, em que o autoritarismo foi a regra de pensamento que impedia as pessoas de pensar. Livros e disciplinas críticas ou simplesmente elucidativas eram proibidos. É bom saber que todo embrutecimento é produzido pelos sistemas que usam a burrice a seu favor.
A violência que vem sendo praticada em todas as escalas. Ela não é natural. A falta de pensamento que alguns chamam há tempos de “preguiça de pensar”, infelizmente, tem muito a ver com a brutalidade produzida também pelos meios de comunicação que funcionam como próteses de conhecimento, que nos orientam como se nos dessem as verdades, as explicações dos acontecimentos sociais, como se o mundo estivesse ali e fosse reduzido ao que se mostra neles. A brutalização de nossas vidas se relaciona, por sua vez, com a falta de conversa entre as pessoas. Hoje em dia é bem difícil entrar em diálogo. Ninguém consegue mais conversar de fato. Poucos buscam entendimento e discernimento quando conversam. Precisaríamos criar uma cultura da compreensão, mas isso só será possível se mudarmos os rumos de nossa subjetivação.
Ler para pensar
Para aprender a perguntar, precisamos aprender a ler. Não porque o pensamento dependa da gramática ou da língua formal, mas porque ler é um tipo de experiência que nos ensina a desenvolver raciocínios, nos ensina a entender, a ouvir e a falar para compreender. Nos ensina a interpretar. Nos ajuda, portanto, a elaborar questões, a fazer perguntas. Perguntas que nos ajudam a dialogar, ou seja, a entrar em contato com o outro. Nem que este outro seja, em um primeiro momento, apenas cada um de nós mesmos.
Pensar, esse ato que está faltando entre nós, começa aí, muitas vezes, em silêncio quando nos dedicamos a esse gesto simples e ao mesmo tempo complexo que é ler um livro. Um livro que é sempre uma viagem vertical na qual a gente descobre e inventa se inventa ao mesmo tempo. É uma pena que as pessoas não possam fazer isso hoje em dia porque sucumbiram ao clima programado da cultura em que ler é proibido. Os meios tecnológicos de comunicação são insidiosos nesse momento, pois prometem uma completude que o ato de ler um livro nunca prometeu. É que o ato da leitura nunca nos engana. Por isso, também, muitos se afastam dele. Muitos que foram educados para não pensar, passam a não gostar do que não conhecem. Mas há quem tenha descoberto esse prazer que é o prazer de pensar a partir da experiência da linguagem – compreensão e diálogo – que sempre está ofertada em um livro. Certamente para essas pessoas, o mundo todo – e ela mesma – é algo bem diferente.
Livro como meio de comunicação e forma de subjetivação
Se o livro é o mais incrível suporte dos saberes acumulados, ele também é um meio de comunicação entre pessoas, mas também uma comunicação no tempo. Viajando na história, o livro foi o suporte dos saberes e o transmissor de informações e tradições que conectou pessoas e épocas. Devemos a formação de quem somos como sociedade também – e, talvez, sobretudo – aos livros que, em vasta medida, nos protegeram das inevitáveis perdas que constituem toda cultura. A cultura foi transmitida e protegida pelos livros. Meios mnemônicos, os livros nos ligam a conteúdos passados, mas também aos seres humanos que viveram no passado e que, assim como nós, amaram os livros, e, nesse espírito, leram, escreveram e guardaram os livros em casas especialmente feitas para abrigá-los, as bibliotecas.
Por isso, devemos entender os livros no sentido da “medialidade”, como meios de comunicação e transmissão.
Isso coloca os livros no mesmo universo dos outros meios de comunicação, como o cinema, a televisão, o rádio, o telefone, o computador e os mundos objetivos e subjetivos que eles criam. O livro criou um mundo próprio, o mundo dos livros, um mundo povoado de escritores e leitores. Esse mundo é um mundo de textos, um mundo de letras e palavras. A escrita se tornou tão essencial para a construção das sociedades democráticas que a luta por direitos se faz muitas vezes como a luta pela educação e a luta pela educação se faz também como luta pela alfabetização. Sem alfabetização, o que se conquista nesse mundo em que os livros vem a ser documentos e monumentos, não há democracia no sentido inicial e essencial de acesso aos meios. Hoje falamos de acesso a meios de comunicação e transmissão da informação como a internet, mas o meio de acesso mais fundamental ao saber que conhecemos até hoje sempre foi o livro.
Isso nos leva a pensar na questão das formas de subjetivação. Por “forma de subjetivação” refiro-me ao modo como nos tornamos quem somos a partir da introjeção ou internalização dos conteúdos que podemos perceber. Em um mundo cuja percepção é controlada, os meios de comunicação são instrumentos de subjetivação. São eles que atingem nossa percepção e que podem, por sua forma de ação em nosso corpo-espírito (nosso espaço-tempo “fisioteológico”), encurtar ou expandir nossa subjetividade. Podemos dizer que os livros são janelas ou portais, no sentido de que, por meio deles, viajamos a outros mundos, conhecemos, nos informamos, aprendemos a articular teorias, narrativas e linguagens em geral. O mundo dos livros forjou nossa subjetividade em todos os sentidos. O livro como “meio” implica um modo específico de percepção que também nos constrói no sentido da forma como nos afeta.
Não se trata, portanto, apenas dos conteúdos aos quais temos acesso, mas do tipo de pessoa que nos tornamos em função da experiência com os livros. Essa experiência diz respeito à vivência com a forma livro. Não é difícil encontrar um escritor a dizer que, no ato de escrever, construiu a si mesmo. O que fazemos nos constrói intimamente, nossa experiência é o efeito do que fazemos e, certamente, do que é feito de nós. Do mesmo modo, ler é um fazer e introjetamos de tal modo esse fazer que já não somos nada sem ele.
Potência do pensamento
Não ler, nos aliena de algum modo relativamente a muitas coisas. Ler nos permite um tipo de experiência completamente diferente do que os meios atuais altamente tecnológicos oportunizam. Por sorte, ainda que nada substitua o códice, o livro se adapta aos novos tempos e resiste na forma de e-book. É que um livro, ainda que seja uma materialidade bem concreta, é também um conceito que pode se realizar de várias formas. O conceito do livro não implica apenas um tamanho. Podemos editar micro-livros, macro-livros, livros com textos, livro com imagens, mas o certo é que o livro é um objeto que pede contemplação. Podemos escrever um livro no muro, na cidade, na pele, em muitos suportes.
Um livro é sempre um objeto de contemplação. A contemplação é o primeiro gesto reflexivo. Quando contemplo, eu posso pensar, isso quer dizer que me torno potente para pensar. Não foi escrito até hoje um livro que não tenha provocado ou não venha a provocar – por mais autoritário que ele possa ser ou parecer – a chance de pensar. Por isso, quando surge um livro que promove a estupidez ou o autoritarismo, ele sempre suscita a precariedade do seu próprio conteúdo, porque o ato de ler implica a atenção e a concentração – em uma palavra, a contemplação – que levam ao pensar no sentido da análise e da crítica. O livro é, independentemente de seu suporte, potência de pensamento. Por isso, é como se um livro “autoritário”, fosse uma contradição em si. Mesmo o mais autoritário dos livros é “obra aberta”.
Por isso, a melhor definição que podemos dar de um livro talvez seja essa: objeto de pensamento organizado que nos permite pensar. No entanto, qual a especificidade do objeto livro? Ele é um objeto organizado no tempo da linguagem linear.
A experiência do livro nos coloca diante do sentido da linguagem linear. Se muitas vezes achamos que o “linear” não nos ajuda, que a experiência da linguagem linear nos embota, é porque tendemos a esquecer que não há apenas um linear no sentido de “achatado”, mas o linear é a experiência com a linha que se desenrola, como um novelo que de desmancha nos permitindo tecer outro “tecido”, outro texto. No caso do leitor, esse texto sempre é primeiramente interno: o leitor escreve um livro não escrito – que pode vir a ser escrito e publicado – ao pensar no que lê. Todos nós que somos leitores escrevemos em nosso espírito esse livro não publicado feito com a matéria dos pensamentos suscitados pelos livros lidos e publicados que nos chegam, com os quais desenvolvemos uma relação que é sempre “intersubjetiva”, ou seja, jamais é uma relação de “copy-paste”, de copia-e-cola, mas é uma relação de pensamento que necessariamente expande nosso mundo interno.
Pensemos na pessoa que seríamos caso entrássemos em uma nave espacial que nos levasse muito longe por meio de nós mesmos. Ora, o livro é a oportunidade de uma experiência desse tipo, capaz de transformar o sentido do que somos por meio de uma presença impressionante de um objeto comum.
A experiência do livro se define também em relação ao tempo introjetado. O livro nos faz relacionarmo-nos com um tempo que nos escapa nos demais meios. Hoje quando vemos a função de prótese que os aparelhos celulares, que a televisão, que os computadores, tem em nossas vidas, quando percebemos que somos roubados de nós mesmos por meio do saque de nosso tempo, o livro se torna a chance bem prática e rápida de nos devolvermos a nós mesmos.