Posse de Gilberto Gil, aposta na nova MPB

Posse de Gilberto Gil, aposta na nova MPB

 

I- Flora acadêmica

No discurso de posse, Gilberto Gil destacou que é o primeiro cantor e compositor de MPB a entrar na Academia Brasileira de Letras, mesmo que Antonio Carlos Secchin tenha bem lembrado, no discurso de recepção, que ela já conta com dois letristas bem representativos: Antonio Cicero e Geraldo Carneiro.

Mesmo que os dois sejam personalidades importantes da história da música brasileira, a entrada de Gil sem dúvida é um marco para o encontro necessário dessa instituição tradicional com a manifestação cultural brasileira que mais se destacou no mundo. Soma-se o fato de ser um tropicalista, movimento que produziu uma das maiores sínteses entre tradição e inovação, popular e erudito, literatura e música, cultura livresca e midiática.

As eleições de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro fornecem uma resposta à “maré do obscurantismo, da ignorância e da demagogia de feição antidemocrática”, pois “poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura foram tão hostilizados e depreciados como agora”, nas palavras de Gil.

A afirmação da “aposta na esperança contra a treva física e moral”, isto é, na vitalidade da força poética, deu-se tanto na citação cantante que Gil pinçou de “Luar (a gente precisa ver o luar)” (“Se a noite inventa a escuridão/ A luz inventa o luar”), quanto na genial e densa análise de Antonio Carlos Secchin da canção “Flora”, ambas do mesmo disco de 1981, Luar.

Na primeira, Gil exemplificou o poder da iluminação contra as trevas autoritárias não com a luz do sol, mas com a do luar, mais sutil e delicada. Na segunda, Secchin destrinchou a única canção de Gil que explicita o nome de sua mulher, “Flora”. Nela, Gil louva não a beleza da companheira enquanto jovem, mas a imagina bela enquanto velha, semelhante a uma árvore frondosa e extensamente ramificada. Assim como a luz da esperança está na lua e não no sol, a beleza da mulher vai se desdobrar na velhice e não na juventude: “Velha, forte farta bela/ Senhora”.

No acolhimento do recém-empossado, Secchin mostra como um crítico literário consegue esclarecer, num evento solene, a riquíssima trama de conexões, correspondências e coincidências vocabulares, numéricas e mesmo botânicas contidas numa só canção de Gil, que ilumina a totalidade de sua vida e louva a própria velhice como momento de floração. Não é todo dia que a excelência cancional tão bem se irmana com a excelência crítica, numa cerimônia pública assistida por todos.

II- Bad Brasil

Depois que Gil e Caetano Veloso foram presos e exilados, a faixa que emblematizou o seu retorno foi “Back in Bahia”, do LP Expresso 2222, de 1972. Gil canta a saudade da Bahia em terras estrangeiras, reatualizando a clássica “Canção do exílio” de Gonçalves Dias, de 1843, tendo como pano de fundo o motivo sombrio do exílio na ditadura, algo que os ouvintes de seu tempo sequer tinham conhecimento e cuja revelação só se deu no início dos anos 90 na ocasião dos shows de Circuladô, de Caetano. Outra canção dele, “Eu vim da Bahia”, foi sucesso na voz de João Gilberto em seu disco de 1973: “eu vim da Bahia, mas eu volto pra lá”.

Esse tradicional retorno à terra natal, reconfigurado nos tempos de “Brasil: ame-o ou deixe-o”, agora modifica o percurso, pois faz com que o cantor baiano venha para a instituição da ex-capital brasileira no ressurgimento de clamores ditatoriais.

Por sua vez, o quarto disco do cantor Bruno Cosentino, de 2020, ecoa o título dessa canção: Bad Bahia (ouça aqui ). Não só devido à repetição do lugar e do “b”. Vê-se um quiasmo de percurso: se Gil sai da Bahia para o Rio, mas sempre retorna a sua terra natal, o cantor carioca olha a Bahia do Rio, quase como um lugar em que é possível voltar a ser menino, sentir o gosto de sal do litoral nordestino, ouvir os toques do candomblé e adentrar em sensações eróticas sob a regência de Exu.

A Bahia do carioca Bruno é combinada com o Rio como o lugar de amplidão celeste praiana onde, ao perder a amada, ele a reencontra:

“eu não sei mais onde foi que eu te perdi

que cidade, que sonho feliz

que saudade de alguém que não sei, mas agora

veja onde a gente se achou?

no céu-mar-sem-horizonte no dia

rio eterno verão na bahia”.

Se Gil atrela o originar-se ao retornar, Bruno funde a perda com o reencontro.

Secchin analisou com esmero a analogia entre a mulher Flora e a jaqueira. O “excerto autobiográfico” de Bruno, por sua vez, começa dizendo que “este disco é uma bela mulher. uma senhora sentada embaixo da copa larga de uma árvore milenar”. A conexão entre natureza e feminilidade é ponto de partida para a viagem andrógina de Bruno em que há um amálgama complexo de bad trip da relação amorosa, cheia de queixumes e suspiros para a amada, com confirmação da alegria e do gozo, isto é, afirmação trágica da vida.

No discurso de posse, Gil reassegurou sua “aposta na vida e na alegria”. Na canção solar de Bruno, “O grande azul”, segue-se o ritmo contagiante de tambores em evidência (de Pedro Fontes), duas guitarras nos diferentes lados do fone e, a partir da segunda metade, ainda mais uma reforçando o swing (de Marcos Lobato). Dentro dessa saturação de batuques e cordas, a letra de Bruno desdobra o legado do acadêmico tropicalista: “sob o sol do meio dia/ apostar na alegria é/ perigoso mas você/ não sai do meu pescoço salgado/ bicho imponderável/ que que nós vamos fazer”.

As letras do disco seguem esse tipo de fragmentação irracional cujo fluxo é intuitivo: o sol é imagem da alegria, avaliada como arriscada. A conjunção “mas” cria um corte brusco de cena em que o destinatário toma lugar numa tomada erótica explícita, inumana. Frente a tal perplexidade, pergunta-se como agir. A sequência não faz sentido nenhum, mas se encaixa perfeitamente na melodia e no ritmo, musical e verbal: paisagem, aposta na alegria, cena erótica, questão disparada.

III- Teatro da canção

Esse é um disco especial porque reúne dois elementos que teimam em se separar normalmente, mas podem se encaixar em artistas habilidosos: pegada sensual e hermetismo verbal, algo delirante. Do mesmo modo, ele indica o convívio de outros extremos bem reais e nada separáveis: atração sexual atrelada à mágoa afetiva, a cisma na tristeza para a cura da ferida do coração (“melancolia que me resta pra renascer”), a imagem narcísica do outro como isca para o apego real a ele (“quando criei você meu fantasma não sabia que podia me apaixonar”), a visão da solidão do outro no ápice do gozo (“ouço o grito insuportável da tua solidão”, momento em que a voz é dramaticamente redobrada em meio à longa virada de bateria).

Se hoje, no sucesso imperial do sertanejo, temos a moda da “sofrência”, a queixa magoada contra o amado que performatiza a recusa denunciando a súplica inconfessa, Bruno não deixa de dialogar com ela, mas de outro lugar bem diferente, cujo impulso tem algo da música romântica de outrora, como Fagner dos melhores tempos. De qualquer modo, a má notícia é que está completamente dentro daquela MPB atual cujo público é bem estrito e intelectualizado. Em outras palavras: a obra de Bruno tem tudo para conquistar um grande público se fosse mais difundida, mas, como a nova MPB virou nicho, mesmo aquilo que mais tem vocação de estourar, implode. Sabemos que a geração de Gil foi afortunada, enquanto a atual é especialmente desditosa. Por isso mesmo é preciso, ainda mais, apostar na alegria, mesmo quando se fala do quanto “dói como tudo na natureza desse amor”, sendo esse amor também o do brasileiro com a sua cultura.

O andamento lento e o campo sonoro intimista, realizado pelo produtor Marcos Campello, cheio de texturas singulares, vibratos, reverberações e microfonias, como na desmontagem final de “Ciúmes”, que exibe os muitos ruídos dos bastidores do estúdio, criam uma ambiência em que o ouvinte encontra espaço para se aconchegar. O disco começa com sons do mato e termina com os da cidade: a contemplação sonora do entorno quer se integrar ao todo sem antropocentrismo. Nesse sentido, a sonoridade de Bad Bahia é lânguida, dispersa, espaçada, indolente. Serve-se do paradigma da canção expandida para inserir uma marca singular de aposta melancólica na alegria, a ser respirada ao tatear os ruídos.

Esse cenário muito bem pensado, mesmo que supostamente desarrumado e desprendido, serve de figuração do caos emocional do emissor que se despe (“agora te ofereço em sacrifício, mulher”) para a destinatária. E o resultado dessa exibição melodramática tem algo de escandaloso e ridículo, mas também trágico e sério, embolando o elevado, o cafona e o erotismo. Não são poucas as frases de alto impacto: “penso em você, me masturbo e choro muito”, “viveremos felizes longe um do outro”, “não serei seu homem e você não será minha mulher”, “eu era feliz antes de te conhecer”, “o que é você pra mim depois do orgasmo?”.

Não falta ousadia poética nessas declarações gritantes dentro do teatro da canção. A pimenta mais forte da sofrência explora esse território e Bruno não fica nada atrás, escancara até mesmo uma pitada pornô. No entanto, há um admirável equilíbrio ético em nosso cantautor nesse aspecto. Não quer ser imoralista. Não está reclamando da moral, ainda que ela de fato o enfastie. Não bate de frente com seu duro muro, não faz alarde, ao contrário, sua imaginação criadora se coloca num lugar anterior ao ringue entre conservadores e subversivos: deseja manter o momento de um menino, de um pré-adolescente que experimenta o corpo (“vi você me carregar menino dormindo”). Inclusive, ele não separa corpo de espírito: regozija-se com a adoração pelo “anjo monumental” da amada, sentindo-se desamparado e frágil.

Androginia desmontando a dualidade heterossexual, regressivo mas consciente de uma estética da inocência erótica, a persona artística do protagonista lírico do disco reflete muito da debilidade masculina nos tempos de glória feminista. Bruno sustenta, finalmente, uma masculinidade sem falo.

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