Pornografia digital: plataformização e imaginação de futuros

Pornografia digital: plataformização e imaginação de futuros
(arte: Fernando Saraiva)

 

Desde os primeiros tempos da internet, ainda nos anos 1990, com suas conexões e dispositivos que hoje nos pareceriam rudimentares, já se falava em pornografia online. De fato, o mercado erótico-pornográfico sempre foi muito ágil em oportunizar com sucesso as novas tecnologias, ainda em um momento pré-internet: lançamento de vídeos em VHS, adoção do DVD, uso do telefone para transações comerciais, dentre outras. Como afirma o jornalista Nick Bilton em seu livro I Live in the Future & Here’s How It Works (2010), a pornografia sempre foi inovadora em termos tecnológicos, como uma espécie de “test-drive para novas mídias”.

Se fôssemos recontar essa história, veríamos uma série de inovações e uma relação íntima entre a produção/consumo de pornografia e os artefatos tecnológicos. Durante anos, ao realizar meu doutorado em ciências sociais, acompanhei de perto alguns dos modos como a internet foi apropriada para a produção da chamada pornografia alternativa, ou altporn, gênero em que essa relação fica ainda mais nítida, na medida em que a própria tecnologia aparece como personagem fundamental em cena.

Se naquele momento, entre 2010 e 2015, já havia uma explosão de nichos pornográficos, formas de produção e uso de diferentes sites e redes sociais para veicular, produzir e consumir pornografia, nos últimos anos creio que estamos diante de algo ainda mais complexo. Muito tem sido falado e analisado sobre a chamada plataformização da vida, processo que abarca diferentes esferas da nossa vivência e as experiências de conectividade. Em linhas muito gerais, a plataformização implica mudanças na infraestrutura de funcionamento, que passa a ser orientada para o artefato de maior valor: nossos dados. E, como afirmam José van Dijck, Thomas Poell e Martijn de Waal em The Platform Society (2018), estaríamos diante de um “ecossistema de plataformas”, em que elas não apenas se comunicam, como estão altamente conectadas e passam a moldar a nossa vida cotidiana. Desse modo, há uma tendência de espalhamento cada vez maior e mais intenso dessas plataformas, o que implica maiores facilidades de uso, com a contrapartida de uma economia de dados obscura e, por vezes, danosa.

Em um momento em que podemos pensar a internet como algo cotidiano e cada vez mais incorporado em nossas vidas – chegando a ser possível até mesmo questionar quais são os nossos momentos de desconexão –, penso ser fundamental refletir sobre os modos como essa plataformização atinge não apenas a produção pornográfica, mas também as suas formas de consumo. Para tal, elegi três movimentos que considero disruptivos e simbólicos das mudanças que ocorrem com a plataformização erótico-pornográfica: os “pornotubes”; as políticas de uso das plataformas de redes sociais mais populares e pertencentes a big techs; e a criação de deepfakes.

“Pornotubes”: “novos vídeos todo dia e de graça” 

Ainda que esses sites tubes – assim denominados por se assemelharem muito ao modelo de streaming de vídeos e conteúdos popularizado pelo YouTube, ao evocar a tela da televisão – tenham iniciado por volta de 2007, sua popularidade e longevidade devem ser remarcadas. O principal mote utilizado por esses sites – os mais populares no Brasil sendo o Pornhub e o Xvideos – é a oferta de produções pornográficas a qualquer momento, sempre com novidades e de graça. Nesse sentido, oficialmente a única operação a ser feita para acessar um desses sites é confirmar ser maior de 18 anos, sem a necessidade de qualquer pagamento ou mesmo de realização de um cadastro.

No entanto, estes sites seguem a lógica de qualquer plataforma: sua maior fonte de ganhos financeiros vem da coleta e da exploração dos dados dos usuários, que, tacitamente e sem se preocuparem em ler os termos de uso, concordam com sua utilização. Assim, dados sobre localização, preferências (não apenas as eróticas), tipo de navegador e dispositivo utilizados para acesso, gênero, buscas realizadas, cliques em anúncios, cliques em vídeos recomendados, tempo de acesso, tempo gasto assistindo cada vídeo, idade, dentre outros são coletados automaticamente pelas plataformas, abastecendo não só as empresas donas desses sites, como também seus inúmeros anunciantes.

Trata-se de um processo tão aperfeiçoado que, em 2013, o Pornhub, que se denomina a plataforma pornográfica mais acessada do mundo, criou o chamado Pornhub Insights, uma parte da empresa dedicada exclusivamente a monitorar os dados dos “bilhões de cliques” que são feitos no site. Os levantamentos realizados são curiosos – afinal, podemos ter indícios do comportamento de acesso à pornografia em momentos inusitados como o Super Bowl, o carnaval brasileiro, as copas de mundo de futebol ou mesmo o golden shower compartilhado por Bolsonaro –, mas eles apontam algo mais importante: as políticas de dados opacas dessas plataformas.

O que os gráficos, textos e imagens trazidos como insights (e que são parte do que vem sendo chamado de big data) revelam é a imensa quantidade de dados capturados durante cada acesso que fazemos, sem que, no entanto, haja qualquer clareza em relação a tais processos. Ouso afirmar, inclusive, que eles são completamente desconhecidos da maioria das pessoas, na medida em que aparecem apenas no que a plataforma chama de “Confiança e Segurança” – área do site quase escondida em meio à exibição de corpos e atos sexuais. Vale lembrar que sites como o Pornhub e seus afins são, em geral, ligados a grandes empresas de mídia e tecnologia, e não ao mercado erótico propriamente dito. Pouco sabemos sobre essas empresas e menos ainda sobre suas políticas, o que torna a situação ainda mais problemática. Não por acaso, a MindGeek (agora renomeada de Aylo), por exemplo, dona do Pornhub, vem enfrentando uma série de processos mundo afora, alguns deles referentes a questões de privacidade e, mais recentemente, ao sistema de verificação de idade para acesso aos vídeos (por este motivo, grande parte dos tubes está impedida de ser acessada no Texas). Assim, ao elegerem o lucro como principal finalidade, essas plataformas fazem vista grossa para moderação de conteúdo, violência e aspectos éticos fundamentais, centrando seu foco apenas nos dados dos usuários.

Plataformas de redes sociais e suas controversas políticas sobre corpos e sexualidades

O segundo ponto que gostaria de abordar diz respeito às políticas de uso e à moderação de conteúdo das principais plataformas de redes sociais, que utilizamos continuamente para grande parte das atividades da nossa vida. Refiro-me especificamente a Instagram, Facebook e X (antigo Twitter), as plataformas mais utilizadas no Brasil.

Em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, trabalhadoras e trabalhadores sexuais, no mundo inteiro, organizaram uma campanha de boicote ao Instagram. A razão disso era a política de uso da plataforma, com formas de moderação que passaram a censurar as postagens – com shadow ban e até mesmo suspensão e exclusão de contas – feitas por pessoas ligadas ao mercado erótico. Essas medidas, implementadas especialmente após a aquisição do Instagram pelo Facebook (hoje grupo Meta), passaram a dificultar a promoção de qualquer tipo de trabalho sexual, e isso em um momento bastante particular, quando ainda estávamos em isolamento social devido à pandemia.

Ainda que tudo isso só tenha vindo à tona em 2020, as controvérsias em relação às plataformas de redes sociais são mais antigas e dizem respeito a um controle desmedido sobre corpos e sexualidades. Gostaria de lembrar, por exemplo, de toda polêmica criada depois que a moderação de conteúdo do Facebook – e aqui estou incluindo a humana e a maquínica – passou a deletar, sem qualquer explicação, fotos em que mulheres apareciam amamentando crianças. O seio amamentando foi enquadrado como nudez e, dessa forma, deletado da plataforma. Claramente, essa política de uso e moderação do Facebook ecoa as várias tentativas, acirradas a partir das sex wars dos anos 1970, de controlar, censurar, criar pânico e banir tudo aquilo que remeta ao corpo nu, associado aos perigos da sexualidade e, mais ainda, à pornografia. Assim, toda nudez, agora em pixels e plataformizada, passa a ser de fato castigada.

No antigo Twitter – e aqui me refiro à fase anterior à sua aquisição por Elon Musk – as coisas funcionam de forma um pouco diferente, sendo que essa plataforma era reconhecida por ser mais permissiva e aberta à postagem de conteúdo sexual e pornográfico. Ainda é possível encontrar um fluxo muito interessante de imagens e textos erótico-pornográficos, que funciona simultaneamente como forma de anunciar a venda de serviços e conteúdos, mas também de causar prazer e satisfação sexual em quem os produz e consome. Chamo atenção ainda para a enorme quantidade de vídeos e fotos amadores, feitos com celulares e sem preocupação com produção, que podemos encontrar na plataforma, o que indica os variados formatos que as trocas e transações sexuais ganham com o uso dos artefatos tecnológicos. Com a mudança da plataforma para X, começam a surgir relatos de contas deletadas ou censuradas – conforme me apontaram interlocutoras de pesquisa –, o que parece indicar que o modelo Meta de censura e controle de corpos e sexualidades talvez passe a ser a regra.

Deepfakes: tecnologia entre não consentimento e violência

No mesmo dia em que escrevia este texto, ao abrir pela manhã um conhecido portal de notícias, li imediatamente sobre mais um vazamento dos chamados deepfakes com conteúdo sexual. Em termos gerais, deepfake é um produto criado a partir da manipulação de vídeos (e, às vezes, de imagens) com o uso de inteligência artificial. Seu maior diferencial é conseguir o ajuste que beira a perfeição entre o vídeo original e a imagem que substitui a pessoa que nele aparece, com sincronização de movimentos feita inteiramente pelo programa utilizado.

Na notícia em questão, uma mulher relatava ter descoberto que um de seus amigos havia montado um vídeo, utilizando sua foto, em que ela aparecia tendo relações sexuais com vários homens. Seu rosto havia sido adicionado ao corpo de uma atriz, de forma tão perfeita que somos levados a acreditar que, de fato, era ela em cena.

Ainda que esse tipo de deepfake seja correntemente chamado de pornografia, creio que precisamos fazer distinções fundamentais, as mesmas relativas ao que é chamado de pornografia de vingança. A antropóloga Beatriz Accioly Lins, em seu livro Caiu na net: Nudes e exposição de mulheres na internet (2020), chama a atenção para o equívoco contido no termo “pornografia de vingança”, na medida em que isso contraria a própria lógica da pornografia: trata-se de formas de expressão que envolvem pessoas que podem consentir e que estão cientes do uso comercial dos vídeos e fotos. Desse modo, o vazamento não consentido de imagens eróticas/sexuais, na maior parte dos casos de mulheres, seria mais bem enquadrado como uma forma de violência. O mesmo vale para os deepfakes com conteúdo sexual: estamos diante de uma forma de violência sexual e de gênero baseada no uso das tecnologias para sua criação, veiculação e reprodução.

Essa mudança de enquadramento está longe de ser banal, pois se há algo que a lógica da plataformização permite é o espalhamento rápido e com escala sem precedentes de tudo o que é postado e compartilhado. Nesse caso, reconhecer deepfakes como violência ajuda a pensar em formas mais efetivas de evitar mais casos, mas também de dar tratamento aos já conhecidos. Como violência, isso também nos faz prestar atenção às enormes consequências – dores, humilhação, exposição, ataques – que essa circulação não consentida tem para as pessoas envolvidas, algo que, inclusive, é facilitado pela própria infraestrutura e política das plataformas.

Qual o futuro digital da pornografia?

Concluo este texto com uma pergunta para a qual não tenho uma resposta fechada. No entanto, considero fundamental pensarmos em futuros possíveis para a pornografia e para o mercado erótico em termos mais amplos, especialmente em um contexto de rápidas mudanças tecnológicas. Acrescentem-se a tais transformações os inúmeros contenciosos, inclusive legislativos e jurídicos, em torno da tecnologia, com destaque para a questão da regulação de plataformas. Certamente, esse é um ponto necessário e urgente, não apenas no que se refere à pornografia, mas ao nosso uso amplo das tecnologias digitais.

Parece não haver dúvida de que, diante de modificações técnicas, a pornografia tem sido bastante efetiva em se reinventar. O caso da plataformização é a prova mais recente disso. Apesar das inúmeras tentativas de controle e censura – nada novas, como sabemos –, as tantas pornografias têm se aproveitado de modos diversos das tecnologias. O próximo passo talvez seja o uso de inteligência artificial, algo que não parece mais tão distante.

No entanto, vale o lembrete de que, ainda que reconheçamos os inúmeros pontos positivos e as benesses trazidas pelo uso das tecnologias digitais (e a pandemia deixou isso evidente), estamos lidando com um campo complexo e que, infelizmente, se encontra dependente das big techs e das lógicas que elas passam a ditar. Assim, talvez seja o momento de pensarmos em novos sentidos para o termo alternativo, na pornografia e para além dela, construindo novas internets, menos violentas e mais livres, em que haja consentimento, mais prazeres do que perigos, e com a devida regulação.

Carolina Parreiras é antropóloga, pesquisadora do Departamento de Antropologia da USP e coordenadora do Laboratório Etnográfico de Estudos Tecnológicos e Digitais (LETEC – USP/Fapesp).


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