Por uma psico-política de resistência

Por uma psico-política de resistência
Yanomami, Amazonas, 1974 (Foto: Claudia Andujar/Cortesia Galeria Vermelho)

 

 

Sempre ouvi a história de que os passeios turísticos nas dunas de Natal/RN são precedidos pela pergunta “com ou sem emoção”? “Com emoção” implicaria em manobras arriscadas, trazendo a constante ameaça de acidentes, ferimentos graves ou morte iminente. “Sem emoção” equivaleria a apenas desfrutar com prazer a paisagem. Tudo o que eu queria agora era poder decidir se eu quero eleições com ou sem emoção. Se eu pudesse escolher, preferiria não ter que aguardar o resultado das urnas com pavor acerca do futuro das próximas gerações. Infelizmente, o mês de outubro será, quer eu queira ou não, “com emoção” e por isso proponho uma pausa para pensar um pouco sobre o papel das emoções e dos sentimentos na política.

Talvez fosse importante começar fazendo distinções. Embora sejam usados comumente como sinônimos, emoção e sentimento apontam para experiências diferentes. As emoções são individuais, passageiras e mobilizadoras. Os sentimentos admitem comunicação, compartilhamento e são mais duráveis. Por isso um passeio nas dunas “sem emoção” pode ser acompanhado simultaneamente de um sentimento de paz e harmonia. Não falamos nunca de uma emoção de solidariedade, culpa ou até mesmo de vergonha alheia, pois emoção, ao contrário do sentimento, é sempre pontual e auto-centrada, não permitindo espaço para a voz do outro. As emoções são mais subjetivas, ao passo que os sentimentos são inter-subjetivos e ancorados no mundo. As emoções são mais aceleradas e impulsivas, enquanto os sentimentos são mais lentos e estáveis e por isso mesmo não se opõem necessariamente à racionalidade ou ao pensamento. Todo pensamento é atravessado de sentimentos, todo sentimento é pensante. Já as emoções são pré-conscientes e instintivas. Emoções e sentimentos fazem parte estrutural da existência humana, mas têm sido sido cada vez mais capturadas por isso que o filósofo sul-coreano Byung-chul Han chamou de “psico-política”, ou seja, o controle e gerenciamento das ações através de um condicionamento afetivo.

A psico-política não é necessariamente uma novidade. Muito tempo atrás Platão já sonhava com alguma droga ou poção servida pelos deuses que pudesse insuflar medo aos cidadãos, tornando-os assim mais facilmente administrados pelos governantes. Se Platão estivesse vivo hoje certamente ficaria feliz em saber que seu sonho foi realizado. A droga que provoca medo nas pessoas existe e se chama mídia de massa, incluindo aí nesse conceito as redes sociais. Foi isso que bem observou Marilyn Manson em sua famosa entrevista para o documentário de Michel Moore, Tiros em Columbine de 2009. Perguntado se ouvir heavy metal ou jogar videogames contribuiriam para o aumento da violência entre os jovens, o roqueiro respondeu de forma muito perspicaz que a verdadeira causa estaria na indústria política e econômica de promoção do medo:  “Se você assiste TV, se você assiste ao noticiário, você está sendo insuflado de medo […] É uma propaganda contínua de medo e de consumo. É tudo baseado na ideia de que mantendo todos com medo, todos vão consumir. É muito simples”

A emoção do medo pode rapidamente se transformar no sentimento de ódio. O ódio quer eliminar ou controlar o que considera a causa de sua infelicidade. Geralmente o objeto do ódio é o diferente, pois o diferente é temido e ao mesmo tempo muito valorizado. O ódio cega e mata, mas em sua irracionalidade estrutural o ódio pode também se servir de estratégias racionais para se realizar – vide os burocratas nazistas ou mais recentemente as tecnologias avançadas de produção de fake news. Na sua versão mais explícita se mostra como desprezo pela simples alteridade dos outros; nas suas versões mais sutis se transveste de inveja, que é a mistura de raiva com admiração, ou ainda de ressentimento, mistura de raiva pelos outros com a raiva de si mesmo.

Para superar o medo e o ódio costuma-se recorrer a uma terapêutica do esclarecimento, seja pelo desenvolvimento de mais e melhores pensamentos, seja pela elaboração de mais e melhores leis, que defendam efetivamente o direito humano fundamental à diferença. Infelizmente parece que nenhuma estratégia puramente argumentativa terá êxito contra o ódio. Sempre é bom lembrar que com fascistas não se conversa, logo não é possível ser tolerante com as práticas de intolerância. Para superar a psico-política do medo e do ódio talvez precisemos recorrer a outros afetos na política, mas quais? O amor, especialmente o fraternal, muitas vezes é lembrado como o único caminho de salvação. Do ponto de vista da filosofia contemporânea o problema da fraternidade é que ela parece sempre privilegiar o idêntico. Toda vez que eu chamo um desconhecido de “brother” no fundo estou dizendo: “eu só te aceito, porque considero você um igual, sangue do meu sangue, um integrante da minha família, um de nós”. Quem não for da família continua sendo ignorado ou barrado. O outro tem que se tornar “irmão” para que eu possa respeitá-lo. A sedutora e simpática retórica da fraternidade esconde na verdade uma lógica de exclusão e violência contra o que é outro e o que é diferente.

Para além do medo, do ódio e ressentimento de um lado, e a retórica do amor fraternal do outro, seria possível uma política com afetos baseados no respeito à pluralidade e às diferenças? Em vez de fraternidade, poderíamos defender, por exemplo, uma “comunidade de cunhados”. O dicionário define “cunhado” como o irmão de um dos cônjuges relativamente ao outro cônjuge, um parente que não se liga pelo sangue em comum. Cunhado é um parceiro mediado pela diferença, não pela identidade. A inspiração para a hipótese de uma “comunidade de cunhados” me veio a partir de uma palestra do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (UFRJ), por ocasião de uma aula inaugural realizada alguns anos atrás na UNIRIO.

Na ocasião, Viveiros de Castro contou que os produtores do cantor Milton Nascimento o procuraram certa vez para que ele fizesse uma nota explicativa para o disco Txai, lançado em 1990. Txai é uma expressão comum entre os yanomami na Amazônia, usada como expressão de tratamento informal, tanto para pessoas conhecidas próximas, como para estrangeiros e visitantes. Os produtores queriam que Viveiros de Castro explicasse o sentido de termo, que estava sendo entendido como “irmão” e o associasse aos discursos sobre fraternidade e solidariedade da cultura ocidental. Viveiros de Castro disse que poderia fazer a nota, mas que seria necessário fazer uma importante correção: Txai, não poderia ser traduzido como “irmão”, mas sim como “cunhado”. Decepcionados, os produtores desistiram da ideia de colocar a nota explicativa, pois acharam pouco promissora a perspectiva de comercializar um CD com o título “Cunhado”.

O que me interessou nessa anedota é que há algo de muito sábio nessa forma de tratamento usada pelos yanomami. A “cunhadice” ameríndia poderia ser a base para um projeto político alternativo, ainda a ser amadurecido, em substituição à retórica já esgotada da modernidade em torno da “fraternidade”. O irmão é alguém que se conecta a mim pelas vias da identidade, seja de sangue, solo, raça, gênero, língua, credo. Cunhado, ao contrário, se conecta por aliança. Cunhados não têm uma identidade comum, estão conectados de maneiras diferentes com um diferente. A pessoa de quem sou cunhado nunca é a mesma, pode ser irmão(ã) ou esposo (a), dependendo da relação. Cunhados são parceiros que se ligam pela alteridade, sem abrir mão da sua diferença para obter a permissão de pertencimento à família.

Como seria um país de cunhados? Um pacto social entre aqueles que nada tem em comum, mas que se ligam de formas diferentes através da diferença, em prol do futuro. Apesar das altas emoções das eleições de 2018, apesar do risco iminente do desastre, com a ascensão do fascismo à esfera pública federal, não sou contra associar políticas e afetos. Só queria imaginar outras políticas, com mais e melhores emoções e sentimentos do que o medo do diferente, o ódio ao outro ou, em contrapartida, o amor somente entre irmãos. Eu imagino uma psico-política de resistência, capaz de agenciar outros afetos e promover seu contágio como, por exemplo, uma coragem de deixar o outro ser outro, um amor pelo diferente enquanto diferente, uma alegria que pudesse ser compartilhada não apenas por aqueles que se parecem comigo, mas também com os que são diversos de mim, enfim, uma ira criativa e afirmativa contra quem odeia e oprime os não-idênticos.

Vila Isabel, Rio de Janeiro, primavera de 2018.


Charles Feitosa é doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg. i.B./ Alemanha

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