Por um quilombo no Congresso Nacional
Ao fundo, O mestiço, de Cândido Portinari, 1934 (Arte Andreia Freire / Reprodução)
Na última eleição, dos 513 mandatos da Câmara Federal, 410 foram exercidos por pessoas brancas. Nos 20% restantes, estavam cem homens e três mulheres negras. Menos de dois anos depois, “por Deus e pela família”, estes deputados conflagraram o golpe em curso e seguem saqueando nossos direitos. No Senado, das 81 cadeiras apenas três foram ocupadas por pessoas negras.
Diante de tais dados, o Congresso Nacional pode parecer pouco representativo, já que 54% da população brasileira é negra, sendo metade dessa população composta por mulheres. Mas nossa história escancara que este Congresso é a expressão exata de quem é considerado sujeito no Brasil. Não existirem placas ou leis que nos proíbam de acessar determinados espaços, e mesmo assim não os acessarmos, é uma das especificidades do nosso racismo, tão eficaz que nem nos reconhece como seres humanos.
Os 388 anos de escravidão deram o tom não só das relações econômicas, mas também das relações sociais e do nosso imaginário. Fomos o último país ocidental a abolir a escravidão, ainda assim, no papel. A massa negra que era a base da pirâmide social há 130 anos continua no mesmo lócus social. Das fazendas, casas, minas, prostíbulos onde eram escravizadas, as pessoas negras foram para as sarjetas, o trabalho precarizado, as cadeias, os manicômios. Algumas conseguimos sair. Pouquíssimas chegaram a parlamentares. Testemunhamos o extermínio de 60 jovens negros por dia. Sabemos que a taxa de homicídio de mulheres negras é 71% superior à de não negras. Se fôssemos humanos, negras e negros, seria possível conviver com esses dados?
O projeto político de supremacia branca das elites foi registrado em diversos documentos do final do século 19, início do século 20. É emblemático o artigo de um professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, apresentado no Congresso Universal das Raças, em Londres, em 1911, com a meta de eliminar a presença física e cultural negra no Brasil em cem anos. Em 2018, as cartilhas de policiais militares que esboçam garotos negros como suspeitos, ou resoluções jurídicas que visam proibir práticas religiosas de matriz africana atualizam este projeto. Parte da esquerda, ao tirar o racismo do centro do debate, minimizando-o como pauta identitária, é cúmplice deste projeto.
Apesar disso tudo, somos a maioria da população, e podemos comemorar vitórias políticas importantes. A primeira lei pós-constituinte que definiu os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, por exemplo, conhecida como Lei Caó, foi proposta pelo então deputado negro Carlos Alberto Caó, e sancionada em 1989. Graças à luta histórica do movimento negro, não cabe mais falar em democracia racial. Foram implementadas políticas afirmativas. Com mais pessoas negras em posição de poder avançaremos ainda mais. Faremos a disputa simbólica, do imaginário, de construir a noção revolucionária de que também somos seres humanos.
E se assim for, fica evidente que eleger pessoas negras não é uma possibilidade apenas para negros. Gente branca, comprometida com a luta por igualdade e justiça social, estará representada em mandatos negros de esquerda, populares, com os mesmos compromissos.
Ou não? Sempre é bom dar aquela pausa que nos permite localizar manifestações do racismo estrutural dentro da gente. E, se necessário for, desconstruir.
Há candidatas e candidatos negros, LGBT, feministas, conectadas às mais diversas pautas progressistas espalhadas por todo o país. A possibilidade de um quilombo no Congresso Nacional está dada. A concretização depende de assumirmos esta reta final da campanha eleitoral como responsabilidade que também é de cada uma e cada um de nós. Lamentar depois é insuficiente. E neste momento, votar também não basta. Se há possibilidade de disputarmos a democracia pelas urnas, precisamos investir tempo e paciência em dialogar com pessoas que não leem a CULT; colocar habilidades, força de trabalho e dinheiro a serviço das candidaturas de mulheres e homens negros de esquerda.
Assim como nosso mais famoso quilombo acolhia, na Serra da Barriga, indígenas, brancos pobres ou quem mais vivenciasse situações de exclusão, nosso quilombo no Congresso Nacional estará a serviço de todas e todos. Falta pouco para a eleição. #FaremosPalmaresDeNovo. E a hora é essa.
(1) Comentário
Ótimo texto!
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