Por quem choramos? De quem rimos?

Por quem choramos? De quem rimos?

 

Carta ao Sr. Abdullah Kurdi, pai do pequeno Aylan

Sr. Abdullah Kurdi, não nos conhecemos e, certamente, esta carta nunca chegará a suas mãos. Temos um oceano, a língua e os costumes entre nós. No entanto, naquele dia, quando vi seu filho, de apenas três anos, morto à beira do mar Egeu, na praia da Turquia, me senti profundamente próxima ao senhor. Sua dor tornou-se a dor de muitos. Depois, fiquei sabendo que, além do pequeno Aylan, também morreram sua esposa e outro filho. E a terra europeia, sonhada para ser lugar da semeadura e colheita de vidas felizes, tornou-se o cemitério do seu filho, símbolo da luta dos imigrantes na contemporaneidade. E o mar, caminho que os levaria a esta nova vida, é, agora, o necrotério da outra parte de sua família.

O luto se fez. Para Judith Butler, filósofa estadunidense, o luto que é vivido como dor pessoal, solitária, é o reconhecimento de que a vida do vivente não terá o mesmo sentido, que algo profundo foi alterado na existência. Choramos a morte daqueles que são importantes para nós. Fazemos o luto para reconhecer que vida e morte não estão separadas. Este vazio sem nome que se segue à morte de alguém amado é o reconhecimento da minha própria limitação humana. Digo-lhe, portanto, que o senhor não chorou sozinho. Foi uma dor sem idioma. Um luto coletivo.

Talvez por ingenuidade eu pensei que a criatura humana mais bruta não conteria as lágrimas diante da cena do policial segurando o corpo do seu filho, ele mesmo com o olhar perplexo e perdido. Eu estava enganada. Em algum lugar de Paris, em seu confortável escritório, agora podemos inferir que, certamente, o Sr. Riss, (ou Sr. Riso), editor do Charlie Hebdo, deve ter dado gargalhadas diante da nossa dor. Passados alguns meses, o Charlie Hebdo estampa uma charge assinada por ele, na qual homens estão correndo atrás de uma mulher. O texto: “Migrantes: no que teria se transformado o pequeno Aylan se tivesse crescido?”. A resposta: “Apalpador de bundas na Alemanha”.

Lembrei, Sr. Kurdi, de um silogismo aristotélico: “Todo homem é mortal. João é homem. Logo, João é mortal”. As duas primeiras afirmações formariam a premissa para a conclusão. No caso da charge, temos: “Todo imigrante é apalpador. Aylan é imigrante. Logo, seria um apalpador”. Mas Aylan morreu. Por que fazer esta relação com uma criança que já está morta? Para não termos “apalpadores” (leia-se: imigrantes) na Europa é preciso que todos morram? E por que uma criança? Desconfio que, pela lógica do chargista, o futuro agressor de mulheres já mora na criança. Esta naturalização das identidades nos conduz, novamente, a única conclusão: por que deixá-las vivas?

A pergunta que eu me fiz quando me deparei com este texto violento, em forma de charge, foi: será que alguém ri disso? O chiste (e a charge é um tipo de chiste) só tem sentido se seu efeito provocar o riso do terceiro, conforme sugeriu Freud. E, como estamos diante de um jornal, podemos dizer que há um riso, ou gozo coletivo diante do desejo de morte dos imigrantes. O que nos provoca o riso? De quem rimos?

Dizem que a cultura francesa rejeita a ideia de tabu, que tudo pode, tudo em nome da “liberdade de expressão”. Esforço-me para entender o sentido de “liberdade de expressão” em país que proíbe manifestações a favor da luta pela autodeterminação do povo palestino, para ficar apenas um em exemplo. E, afinal, o que é a cultura francesa? Tenho certeza de que parte considerável dos/das franceses/francesas não riu.

O chiste, diferente dos sonhos, é a formação do inconsciente que mais se insere no social e, portanto, necessita do outro para referendá-lo, como nos disse Freud. É o riso do outro que assegura a eficácia do meu ato. Ou seja, tanto o luto quanto o chiste, que, muitas vezes, são vistos como expressões individuais de sentimento, só têm sentido se inseridos no contexto social mais amplo.

O que não se tem coragem de dizer, se diz utilizando o chiste. Assim, por este eficaz atalho, o inconsciente diz coisas indizíveis. Nada mais sério que uma brincadeira. O chiste (ou malícia disfarçada) seria uma forma de lidar com a dolorosa realidade. Através da piada se pode falar aquilo que se sente sem se sentir responsável por nada. O que dói no íntimo do Sr. Riss? Qual seu medo? Então, o riso seria a expressão de um desespero?

A França é reconhecida pelo enorme prestígio da psicanálise. Talvez fosse o caso, Sr. Kurdi, de aconselharmos o Sr. Riss a buscar ajuda para fazê-lo lidar com a miserabilidade de sua vida psíquica sem violentar outros seres humanos. Mas não creio que isso resolveria porque ele não ri sozinho. A saída, acredito, não é na clínica, mas na luta política. Seria o próprio Charlie Habdo o sintoma de uma sociedade que, desesperadamente, sabe que o próprio sentido de “cultura francesa”, pura, sem mistura, não existe mais?

Infelizmente, Sr. Kurdi, no meu país, o Brasil, nós também temos vários Charlies Habdos, vampiros que se alimentam de corpos políticos excluídos. Dessa forma, vemos, diariamente, as pessoas negras, as mulheres, os/as LGBTs tornarem-se matérias-primas de “humoristas” que resolvem seus dilemas (in)conscientes (re)produzindo mais estigmas e estereótipos.

Não existe sociedade sem fissuras, disputas e diferenças. Sr. Kurdi, afaste-se de criaturas perigosas como o Sr. Riss. Encontre os aliados franceses, imigrantes, alemães, gente que tem uma relação ética com o Outro, gente que compartilha a revolta e a transforma em práxis política. E, assim, quem sabe um dia, o Sr. Riss não terá mais com quem compartilhar sua gargalhada perversa.

Toda minha solidariedade.

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