Por que teimamos em desconhecer o passado?

Por que teimamos em desconhecer o passado?

Douglas Ferreira Barros

O que Resta da Ditadura: a Exceção Brasileira, mais do que um instrumento para reavaliar nosso passado recente, lança luz sobre uma mácula: as raízes da resistência de setores da sociedade brasileira à atuação em favor dos direitos humanos. Organizado pelos filósofos Edson Teles e Vladimir Safatle, o livro trata desse passado que não passa; redescobre, nas marcas da violência que grassa em nossa sociedade, as digitais e o legado da ditadura militar pós-1964. Precisos quanto a seus alvos, os artigos aqui reunidos – de juristas, psicanalistas, filósofos, historiadores, cientistas sociais e literatos – avançam sobre várias dimensões explicativas desse trágico momento da história.

Autoanistia e militarização
De início, busca-se entender a insuficiência do processo de conciliação nacional. Em vez de resultar de ampla negociação na sociedade civil, a concessão da anistia em 1979 foi, de fato, uma autoanistia estabelecida pelos ocupantes do poder de então. A lei nº 6.638 visava tornar impunes os militares e seus crimes de lesa-humanidade, assassinatos sob tortura e desaparecimentos forçados.

Clara violação dos tratados internacionais assinados antes de 1979, a autoanistia ou a conciliação imposta pela caserna explica em parte nossa resistência em querer descobrir a história do que somos. O controle militar da abertura do regime e da reconstrução democrática refletiu-se na Constituição de 1988. Um dos seus mais flagrantes traços autoritários é a militarização da área civil de segurança. Para Flávia Piovesan (uma das colaboradoras), essa indistinção entre segurança civil e poder militar explicaria a dificuldade de restabelecer o direito das vítimas do regime à verdade: qualquer esforço reparador além do pagamento de indenizações – como reabrir arquivos ou buscar restos mortais de militantes antigolpe – seria imediatamente enquadrado país afora como ameaça à ordem, à segurança civil, e afronta ao poder militar.

Traumas do silêncio e benefícios do esquecimento
O silêncio quanto às violações infligidas pelo Estado também é sintoma de nossa experiência democrática irrealizada. Aqui, o instrumental psicanalítico de análise ilumina, segundo a colaboradora Maria Rita Kehl, a importância de enfrentar esse silêncio, elaborando-se publicamente as expeiências, derrotas e sofrimentos das vítimas. A mesma dimensão psicanalítica elucida os efeitos do trauma causado pela violência, tanto por parte dos que a sofreram quanto por parte dos que a aplicaram.

Assim como o sofrimento revela a condição humana do torturado, também o gozo com a dor da vítima desvela a humanidade fraturada do torturador, aquele indivíduo capaz de se assumir como “legítimo” assassino de outros homens. Já a filosofia nos faz ver que o esquecimento também pode ser entendido para além da não memória, do apagar dos rastros. Há algo de positivo no esquecimento, destaca Jeanne-Marie Gagnebin, quando ele não é negação do passado, mas sua elaboração, possibilitando a reconfiguração do vivido no presente. Entende-se por que insistir no esquecimento imposto pela anistia posterga o encontro com a verdade do nosso passado e torna ainda mais distante a reconciliação com nossa experiência política e social no presente.

Por que ainda hoje resta muito da ditadura? O livro nos explica que o elo entre intenções de caserna e setores da elite brasileira – também ela em sintonia com as instituições do Estado – não foi devidamente rompido. São vários os meios sociais, fora dos quartéis, nos quais ainda se manifestam os entulhos do autoritarismo. Para Paulo Arantes, o que era antes medida de exceção virou, hoje, técnica de governo, dispositivo de controle de movimentos sociais, e até mesmo discurso em favor da conservação da ordem e da legalidade.

Ataque à democracia brasileira
A democracia, ensina Espinosa (filósofo holandês, 1632-1677), é a única forma de organização política em que os cidadãos podem viver intensa e plenamente sua liberdade. Ao visar à conservação de sua própria existência, os homens, na democracia, fortalecem-se na mesma proporção em que são mais livres. O cultivo do medo, ao contrário, impede a experiência da liberdade e o vigor democrático. Nota-se a atualidade do filósofo e do que O que Resta da Ditadura se propõe a discutir nas reações estridentes contra o natimorto terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos.

Ataques e jogos de cena foram ensaiados por ministros de Estado, representantes de entidades civis, ex-presidentes e candidatos à presidência da República, formadores de opinião etc. Os discursos todos insistiram que o Brasil não deveria ficar remoendo seu passado. Esses arautos da pacificação social – contra o dito discurso do ódio, supostamente implícito na letra do terceiro Programa – atacaram a democracia, procurando evitar que os brasileiros se apropriassem de seu próprio passado. Certamente querem fazer passar por verdade histórica a lorota da “ditabranda”. Juram irrelevante abrir feridas – a seu ver curadas – de nossa história recente. Mas visam, em verdade, aplacar a vontade de cidadãos brasileiros de reencontrar sua história particular na história de seu país, para, aí sim, habitar um lugar onde se sintam verdadeiramente livres.

Depois que expressivas parcelas da sociedade brasileira, elite autointitulada “bem formada e informada”, trataram o recente golpe civil-militar em Honduras como reação bem-vinda ao “chavismo que ameaça a democracia na América do Sul”, é seguro que não haveria melhor momento para repensarmos por que não queremos que o passado da ditadura deixe de dar as cartas em nosso presente.

O que Resta da Ditadura: a Exceção Brasileira
Edson Teles e Vladimir Safatle (Org.)
Boitempo
358 págs. – R$ 49

(6) Comentários

  1. Aproveitando o ensejo, por que também não discutimos as mortes de mais de uma centena de pessoas que foram vítimas da sanha de grupos terroristas (chamados de maneira eufemística de revolucionários) que agiam à época, tais como VPR, VAR-Palmares, Colina, MR-8, ALN?

    Por que, nesse incessante desejo por um revisionismo histórico, tendemos a incriminar somente os militares e não também aqueles que cometeram atentados e assassinatos contra civis, em nome de uma possível revolução comunista?

    Por que insistimos em chamar de golpe a destituição legítima do então presidente de Honduras Manuel Zelaya? Por que não procuramos ler, nem à época do ocorrido e nem agora, a Constituição de Honduras, que claramente proibe a articulação de qualquer estratégia política para permacência indevida no cargo do Executivo, como Zelaya planejava fazer por meio do referendo? Por que duvidamos de uma decisão que passou por todas as instâncias dos poderes públicos constituídos de Honduras?

    Por que não podemos chamar de “ditabranda” uma ditadura que matou cerca de 420 pessoas (nenhuma deveria ter morrido), número bem inferior as mais de 100 mil vítimas da ditadura cubana, que tem uma população infinitamente menor que a nossa? Por que também não se diz que Cuba, através da Olas, apoiava os grupos terroristas que aqui agiam sanguinariamente?

    Essas perguntas poderiam ser respondidas em um outro livro, chamado talvez de “O que Restou da Esquerda após a Ditadura: a Mentira Brasileira e o Revanchismo Histórico”.

  2. O que mais impressiona é que, além de teimar em desconhecer o passado, ainda existem aqueles – infelizmente, muitos – que teimam em pensar como se pensava no tempo da Guerra Fria, quando um mundo bipolar dividia os seres humanos entre bons e maus, num maniqueísmo obtuso que só permitiria florescer a intolerância que hoje colhemos numa sociedade ainda não saciada de tanto individualismo. É bastante lamentável que ainda haja, vencida já um década de século 21, quem pense como se estivéssemos nas trevas da estupidez intelectual dos anos de chumbo. Insólito é encontrá-los entre os que leem CULT. Será que só dá erva daninha, maninha, no chão que “eles” pisaram?

  3. José Raimundo,

    Como não relembrar o passado se você está aí para não nos deixar esquecê-lo? Veja que no seu comentário voce taxa de “aquele que pensa como se estivéssemos nas trevas” alguém com quem não concorda. Quanto teremos que evoluir para que pensamentos adversos mereçam ser respeitados?

  4. Pedro Luis,

    Sem dar razão aos grupelhos terroristas que o senhor cita, a diferença é muito simples: os militares representavam o Estado. Torturas, espancamentos, mortes, censura, suspensão de direitos cíveis, etc. etc. legitimados pelo governo. Lembrando ainda do sucateamento do ensino público brasileiro e do endividamento do país, duas heranças deixadas pelo governo militar.

    E que tal abrir os arquivos? Ou você é contra?

  5. Pedro Luiz o senhor só pode ser um dos torturadores que teimam em se esconder no vácuo dessa lei de anistia orquestrada e defendida com unhas e dentes por essa burguesia fajuta brasileira que fede mas, infelizmente, ainda tem todo o dinheiro do mundo pra comprar perfume.

  6. Até quando vcs “bobinhos” de uma esquerda nefasta, espúria, vão se colocar como defensores da liberdade, “dos bons costumes”, há, há !!!
    Vcs são incompetentes naquilo que o ser humano tem de maior: EU SOU. Quer mais do que poder ser !!!

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