Por que os artistas precisam de uma convenção de Genebra

Por que os artistas precisam de uma convenção de Genebra

O legado nazista abre um vácuo moral que até mesmo um homem de Deus deve superar

Norman Lebrecht

Duas peças do dramaturgo Ronald Harwood, 75, examinam as decisões que os músicos tomam sob extrema pressão. Tomando partido [Taking Sides] reencena o processo de desnazificação, ocorrido em 1946, de Wilhelm Furtwängler, o regente principal da Orquestra Filarmônica de Berlim, que preteriu uma posição de prestígio na Filarmônica de Nova York para continuar no centro da cultura alemã da época.

A música clássica, na era de Hitler, que baniu modernistas, esquerdistas e judeus, era bastante glamourizada pelo aparatos estatais e havia se transformado em pretexto para grandes celebrações, em Bayreuth e em Berlim. Os artistas mais importantes tinham status de estrelas de cinema. Entre uma luxuosa colaboração com o regime e um exílio penoso, quase nenhum dos melhores músicos escolheu a última opção.

Furtwängler, um intelectual conservador, argumentou anos depois que permaneceu na Alemanha para que o povo oprimido não ficasse sem música nem esperança. Ele salvou mais de 80 pessoas, sendo que algumas testemunharam sua bravura. “Somente Furtwängler poderia ter tirado meu pai das garras da Gestapo, na Holanda”, assegurou-me fervorosamente o filho do violinista Carl Flesch.

O motivo para seu julgamento no pós-guerra era o de que seu prestígio, tanto na Alemanha quanto no exterior, teria reforçado o regime e acobertado seus crimes. O regente acabou sendo absolvido, mas o problema de como um artista deve se comportar em um estado criminoso de exceção ainda não foi resolvido pelas leis. A peça de Harwood, que em 1995 foi dirigida por Harold Pinter [vencedor do Nobel de literatura em 2005] e em 2001 foi filmada por István Szabó [no Brasil, Tomando partido – o caso Furtwängler], colocou os atores e o público sob o holofote: o que você faria? Assistindo à peça, a viúva de Furtwängler, Elisabeth, perguntou a Harwood onde ele tinha encontrado aquela transcrição do julgamento. “Não encontrei”, disse o escritor da peça, “Inventei”. Tomando partido é sobre a atitude que cada um de nós teríamos em uma situação de aberrações políticas.

Strauss e um suicídio no Brasil

A colaboração [Collaboration], outra peça de Harwood, revive a curta parceria de Richard Strauss, compositor de Salomé e Rosenkavalier, com Stefan Zweig, o renomado escritor austríaco. Quando os nazistas subiram ao poder, Strauss, 69, concordou em chefiar a Câmara de Música do Reich, que selecionava os músicos que recebiam visto para poder trabalhar na Alemanha. Strauss falou anos depois que não poderia se dar ao luxo de abandonar o maior mercado de suas óperas.

Em 1935, cartas endereçadas a Zweig foram interceptadas pela Gestapo. Strauss, expulso do cargo, começou a ficar preocupado com as vidas de sua enteada judia e de seus dois netos. Zweig, que era judeu, exilou-se na Inglaterra, depois viajou para o Brasil, onde cometeu suicídio com sua mulher (em Petrópolis, 1942). A ópera que criaram juntos, A mulher silenciosa [Die schweigsame Frau], se passa no século 17 em Londres e é uma obra-prima. A colaboração foi encenada recentemente, em Hamburgo, para um público respeitoso, porém inquieto. Na peça, Strauss diz em seu tribunal no pós-guerra: “Meu partido é a arte, somente a arte”.

Harwood, 74, vencedor do Oscar de melhor roteiro pelo filme O pianista, de Roman Polanski, preocupou-se praticamente durante toda sua vida com o tema da responsabilidade que um artista deve ter em um país governado por facínoras. Nascido na África do Sul, Harwood deixou seu país em 1960, e sempre se sentiu um pouco culpado por ter ficado distante das lutas internas contra o apartheid. Em nossas primeiras conversas, em 1995, antes de Tomando partido entrar em cartaz, ele foi mais duro do que eu ao avaliar aqueles que endossaram o regime de Hitler.

“A motivação para escrever essas peças era descobrir como eu teria me comportado”, disse-me recentemente, depois de ver a montagem alemã de A colaboração. “Tanto Furtwängler quanto Strauss disseram: não tive escolha. Mas sempre há uma saída em uma questão moral. Não consigo pensar em nenhum período da história em que essas questões fossem tão nítidas”.

Falamos isso, claro, partindo do inestimável benefício do retrospecto. Dois músicos na Alemanha nazista, mesmo aqueles perto do centro do poder, sabiam das expulsões e das perseguições, mas provavelmente não presenciaram os horrores que hoje conhecemos. Perguntei a Harwood: será que as ações de um músico fariam alguma diferença contra o poder de um estado totalitário? “Nenhuma”, ele diz. “A arte não tem poder. Não protege a civilização. Mesmo assim, precisamos encará-la como se protegesse”.

 Esse é o ponto-chave das duas peças. Um artista, quando sobe ao palco, é um mundo inteiro; no palco do mundo, não é muita coisa. Realmente, não havia nada que Strauss ou Furtwängler pudessem fazer para deter o Holocausto. Todavia, ao não fazer nada, fizeram os nazistas acreditar que representavam o progresso da civilização.

O Papa e suas escolhas morais

Essa pequena questão sobre responsabilidade pessoal nunca se esgotará. Surgem obras a respeito desse tema praticamente todo mês. O novo filme de Viggo Mortensen, Good [ainda sem título em português], apresenta um professor de literatura que se orgulha por aderir ao nazismo. Neste exato momento, crianças no mundo inteiro estão assistindo ou lendo O menino do pijama listrado, em que Bruno, de 9 anos, precisa escolher se reconhece ou não aquilo que está acontecendo com seu amigo judeu do outro lado da cerca. Em As benevolentes, de Jonathan Littell, um exterminador da SS cita pensadores da Grécia Antiga para justificar seus atos. Mesmo no abismo mais sórdido é preciso fazer um ajuste de contas com seus próprios atos.

As escolhas realizadas durante o terceiro Reich ainda provocam em nós a seguinte reflexão: “o que eu faria?”. Essa pergunta não é hipotética nem está longe de ter uma resposta definitiva. O homem que hoje é o Papa, por exemplo, precisou escolher, 60 anos atrás, entre se aliar à juventude hitlerista ou sofrer algumas consequências que lhe pareciam incertas. Ele optou por se juntar a Hitler. Cinco anos atrás, ele precisou decidir se abençoava ou não os túmulos dos agentes da SS na França, alguns deles identificados como assassinos de comunidades inteiras. Ele os abençoou. O legado nazista abre um vácuo moral que até mesmo um homem de Deus deve improvisar. As leis não foram gravadas em pedra. E a fé aqui é totalmente confusa.

Sinto que Harwood está, nos últimos anos, atenuando a culpa de Furtwängler e Strauss. Meu julgamento, entretanto, vai se radicalizando à medida que entro em contato com a massa de evidências do período. Vasculhando os arquivos de um jornal alemão semanas atrás, encontrei várias imagens que comprovam o colaboracionismo de ambos. Em uma foto, Strauss aparece tomando chá com um sorridente Goebbels [ministro da propaganda na Alemanha nazista]. Em outra, conversa tranquilamente com o embaixador do Japão em Berlim. Furtwängler aparece, em foto de 1939, fazendo um brinde com o perseguidor de judeus de Viena, Gauleiter Josef Bürckel. Em outras, procura a mão de Hitler após um concerto, mistura-se às saudações nazistas nas fábricas, rege sua orquestra sob um slogan nazista e ao lado de uma gigantesca suástica.

Como esses homens inteligentes e sensíveis podem declarar que nada fizeram de errado? Quem poderia dizer que não escolheram um lado? A escolha foi deles, e eles erraram. Para nós, hoje, a maneira pela qual a arte se comporta em tempos difíceis requer um código ético, um consenso sobre o que deveria ser feito quando um governante com as mãos manchadas de sangue solicita aos artistas uma diversão cultural. A lição da era Hitler é a de que os artistas devem sim ser responsáveis por suas ações e omissões. Mas como? Precisamos de algo semelhante a uma Convenção de Genebra, a convenção que protege os prisioneiros de guerra, para que possamos definir direitos e deveres de um artista sob regimes totalitários. Setenta anos depois do estopim da Segunda Guerra Mundial, esse debate ainda mal começou.

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