Por que leem os grandes personagens?

Por que leem os grandes personagens?

Daniel Piza

Logo no começo do romance de Flaubert, pouco depois de se casar com o médico provinciano Charles, Emma Bovary reflete sobre o engano que cometeu. Quando se casou, achava que o amava; ainda em plena lua de mel, percebeu que esse amor não se transformara em felicidade. A conversa de Charles era “plana como o passeio da rua”, composta de ideias alheias e vulgarizadas, “sem provocar comoção, riso ou devaneio”. Ele não tinha curiosidade, não praticava esportes, não era atraente, não tinha o que dividir e descobrir: “Não ensinava, nada sabia, nada desejava”. E, pior, Charles partia do princípio de que ela estava feliz. O resultado era uma vida de tédio, “aranha silenciosa”, e Emma procurando saber o significado certo das palavras “felicidade”, “paixão”, “embriaguez”. Nos livros essas palavras pareciam tão belas. Nos livros.

Muitos dos maiores personagens da literatura são como Bovary: leitores. É por meio da leitura que eles percebem tanto a prisão onde vivem como as possibilidades de libertação, os encantos do escape para uma vida, se não mais feliz, mais aventureira. No caso de  Madame Bovary, o romance é também sobre a diferença que existe entre esse sonho de fuga e a realidade que se apresenta depois que ela corre o risco. As paixões por Rodolphe e León terminam mal, e Flaubert narra tudo com uma contenção que deixa o desfecho ainda mais doloroso. Mas jamais condena sua personagem. Se o final é trágico, é antes de mais nada porque a sociedade favorece o casamento tedioso, que logo embota a paixão que supostamente o justificara; não é porque Emma se revoltou contra essa ordem moral.

Há num dos contos de Machado de Assis uma situação semelhante, que, no entanto, fica na atmosfera da sugestão. É em “Missa do Galo”. Conceição é uma senhora católica que faz sala para um hóspede adolescente enquanto o restante da família dorme e ele não sai para seu compromisso natalino. Conversam amenidades, mudam de posição, fazem tudo para disfarçar de si mesmos o interesse mútuo que sentem. E nada traduz melhor esse sentimento represado do que os livros que comentam: o rapaz estava lendo Os Três Mosqueteiros e a mulher casada acabara de se divertir com A Moreninha. O primeiro é um romance de aventuras; o segundo, a história de um estudante que se diz imune a paixões duradouras. Como em Flaubert, a presença da literatura romântica, especialmente em seus efeitos sobre as leitoras, acena com desejos que o status quo manda reprimir.

Os primeiros do gênero
Já os primeiros grandes personagens do gênero são leitores. Pense em Dom Quixote: o fidalgo lia tantas novelas de cavalaria que se esquecia de cuidar dos afazeres, como a caça e a administração da fazenda. A prosa clara e intrincada de um Feliciano da Silva, autor de Amadís de Gaula, tirava-lhe o juízo com frases desafiadoras sobre “a razão da sem-razão” e, ao fim, foi o que o impeliu a partir atrás de aventuras por toda a Espanha, na companhia de Sancho Pança. Que nessas aventuras tenha apanhado como um João Bobo, apesar das advertências sensatas de seu escudeiro gordo, não significa que devesse ter ficado onde estava, tão feliz quanto ignorante. O romance de Cervantes é feito menos dessa ação toda do que das longas conversas entre a sem-razão de Quixote e a razão de Sancho.

Hamlet, de Shakespeare, é uma peça, mas praticamente todos os personagens de romance criados depois devem algo a ele. Pois não é ele que, na prisão que lhe parece a Dinamarca, anda atormentado pelos cantos do palácio lendo livros como a Eneida, de Virgílio, e que quando Polônio o interpela sobre a leitura responde que são “palavras, palavras, palavras”? Como os outros começam a julgá-lo louco, Hamlet vê aí a possibilidade de provar que seu tio e sua mãe tramaram a morte de seu pai. Força a aparência de loucura, não o suficiente para levantar suspeita, e encomenda a montagem de uma peça cujas falas teriam o poder de mudar o semblante dos reis sentados na plateia, de desmascarar sua culpa. Sem o hábito da leitura, nada dessa estratégia teria sido possível.

Os exemplos são inumeráveis. O Lucien Chardon, de As Ilusões Perdidas, de Balzac, passa horas na biblioteca lendo livros de história, poemas e romances, como os de Walter Scott, como forma de adquirir um estofo cultural que a origem modesta lhe negara e de realizar sua ambição de ascensão social e intelectual. Em O Vermelho e o Negro, de Stendhal, o pai de Julien Sorel tem tanta raiva de sua mania de leitura que lhe dá uma pancada ao flagrá-lo lendo, o que lança o volume dentro de um riacho. Julien, como Lucien, também aposta na cultura literária para enfrentar sua formação familiar e ampliar seus horizontes sociais. E o livro que está lendo, o Memorial de Santa Helena, de Napoleão, é um dos muitos que cita Jean Valjean em Os Miseráveis, de Victor Hugo.

E o que seriam as moças de Jane Austen se não fossem as leituras para imaginar outros mundos, em que suas escolhas pudessem se basear em seus afetos, não nos interesses de seus pais? E como o príncipe Andrei Bolkonsky, de Guerra e Paz, atravessaria as dores da guerra sem os livros que o ajudam a meditar? Como separar Raskolnikov, Trofimovich ou Ivan Karamazov, entre tantos personagens de Dostoievski, e as leituras que fizeram? O narrador das Memórias do Subsolo passa por Kant, Rousseau, Byron e Lermontov, enquanto assume sua falência moral, e diz: “Deixai-nos sozinhos sem um livro e imediatamente ficaremos confusos, perdidos”. E do narrador de Proust nem é preciso falar, porque já nas primeiras páginas de No Caminho de Swann ele fala de suas leituras no quarto, por meio das quais combate a “imobilidade do pensamento”, enquanto espera o beijo confortador da mãe para dormir.

A literatura modernista
Na literatura modernista, por sinal, os personagens não são apenas leitores; a própria leitura torna-se um tema explícito, nem sempre como força libertária. Vemos Stephen Dedalus, no Ulisses, de James Joyce, ler no banheiro e visitar bibliotecas; durante páginas e páginas, ouvimos suas teorias confusas sobre a relação entre a vida pessoal de Shakespeare e suas peças principais. O próprio Riobaldo, do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, distingue-se por ser um letrado num mundo de jagunços. No Auto-de-Fé, de Elias Canetti, a leitura passa a ser um grande problema para Peter Kien, um estudioso de Confúcio que se protege na vida paralela de sua biblioteca, onde tudo tem de ser ordenado e silencioso, impermeável à realidade. Quem é o protagonista do Planeta do Sr. Sammler, de Saul Bellow, senão um homem que lê de Aristóteles a Júlio Verne para tentar extrair algum sentido do caos urbano, que estaria pondo em risco a civilização ocidental? E em Extinção, de Thomas Bernhard, temos um personagem que usa Kafka para justificar seu ódio à humanidade.

No mesmo período, começamos a ver o crescimento de outro tipo de personagem leitor: o personagem escritor. Gustav Aschenbach, de Morte em Veneza, de Thomas Mann, é um ensaísta (não o músico do filme de Visconti) que, ao deixar a Alemanha em busca da sensualidade italiana, já sabe que seu “heroísmo da fraqueza”, formatado pelas leituras idealistas, o condenará a arder em cinzas (“Aschen”, em alemão). Escritores reais também ressurgem no modernismo como personagens de ficção, como Hermann Broch dramatizou em Morte de Virgílio. Um dos melhores livros de Nabokov, Fogo Pálido, tem um poeta como protagonista. E em escritores como Jorge Luis Borges e Italo Calvino, eruditos, o autor se apresenta antes de mais nada na condição de leitor. Desde então, até Martin Amis e Chico Buarque, o escritor como personagem tornou-se um expediente usual, para não dizer cansativo.

Tais mudanças dizem muito sobre a história da literatura, que antes ocupava um papel central na imaginação de um povo, em sua identidade cultural. Dos personagens que leem para expandir seus horizontes, mesmo para enfrentar experiências dolorosas, como Hamlet e Bovary, chegamos no século 20 a personagens que se escondem do mundo com suas leituras, quando não são eles mesmos criadores de livros. Narrativas que sintetizam a autopercepção de uma sociedade teriam se deslocado para os meios audiovisuais, ao passo que os grandes personagens teriam passado a ser os históricos, descritos nas biografias? Pode ser, mas isso não explica por que, de Dom Quixote a Dom Casmurro, os grandes personagens do passado continuam vivos para os leitores de hoje e quase impossíveis de adaptar em filmes. São grandes personagens porque têm uma vida interior muito rica; e têm uma vida interior muito rica porque são apaixonados leitores.

Daniel Piza é jornalista

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