A política sexual da casa

A política sexual da casa

Sobre O Papel de Parede Amarelo de Charlotte Perkins Gilman (Ed. José Olympio)

Uma mulher habita, com o marido, uma casa provisória enquanto convalesce de uma doença inespecífica. Profundamente angustiada, ela não sabe exatamente por que sofre, mas irá descobrir o que precisa naquele cenário onde tudo é estranheza. A casa corresponde também à estreiteza de seu mundo, aquele das mulheres oprimidas antes que conquistas políticas, sociais e jurídicas provindas da luta feminista começassem a mudar esse estado de coisas.

Incluída no cosmos opressivo do lar para ser excluída da vida pública, à mulher resta viver confusões internas que podem levar à loucura. Em segredo, ela escreve um diário que nos revela a intimidade de seus pensamentos. Por meio da curiosa e inquietante meditação experimentada por ela, fica evidente que a interioridade da casa onde ela habita é análoga à interioridade de si, lugar ao qual agora estamos situadas nós, que lemos sua história.

É o pensamento incessante, típico dos clássicos estados melancólicos, muitas vezes altamente poéticos, o que define o clima do clássico conto “O papel de parede amarelo” de Charlotte Perkins Gilman publicado em 1892, quando ela contava 32 anos. É o pensamento como insistente ato do espírito que se ocupa em compreender o sentido do próprio sofrimento, que nos aproxima ainda hoje da protagonista da história contada por Gilman quando percebemos que, para muitas mulheres, talvez para a grande maioria delas, a estranheza e a estreiteza da vida privada sejam condenações das quais não se possa escapar sem muito sofrimento.

Charlote Gilman participou concretamente da busca por direitos para as mulheres até sua morte em 1935. Nos anos 70 sua obra foi redescoberta pelo movimento feminista norte-americano e o conto do papel de parede amarelo passou a ser uma espécie de bandeira feminista. Muitas estudiosas falam do caráter autobiográfico desse conto e nós que o lemos, hoje em dia, quando consideramos as diversas gerações feministas, ficamos mais ou menos perplexas com suas metáforas, dependendo de nosso grau de relação com as questões nele apresentadas.

A heroína do conto está entregue ao sofrimento psíquico. O marido, investido da posição de senhor e guia, controla o estado mental e físico da esposa. Médico, ele representa a ciência, o mundo racional, contraposto à irracionalidade da histeria, da qual a heroína seria portadora em “grau leve”. A perspectiva do homem de ciência, sujeito do autoritário princípio da identidade que define e explica a experiência do outro, sem imaginar que o outro vive uma experiência própria, está em cena na estigmatização pela histeria como uma doença feminina. Mas nossa personagem melancólica tem suas formas particulares de se interrogar sobre o mundo e sabe das limitações da perspectiva do marido, aliás, um homem amoroso, ainda que, como um marido daquele tempo, seja seu senhor, aquele que tem o poder de explica-la. A palavra do saber e a palavra do amor desse sujeito, amenizam o caráter senhoril e autoritário sob o qual a mulher se torna o frágil objeto do conhecimento e do desejo. A protagonista não se rende à ciência e ao marido e busca sua experiência mais íntima, mais interna, por meio da escrita, da qual está proibida por razões médicas que somente hoje podem nos parecer insinceras. Talvez que o mal estar da heroína venha também da máscara de seu sábio e amoroso marido, que ela de algum modo intui, sem ter como removê-la.

É o ponto de vista do saber e do amor desse marido sujeito da ciência – e do poder – que constrói a mulher como uma figura doente. A histeria como doença feminina é a ideologia do homem no contexto de uma evidente política sexual. Nele, a invalidez da mulher é um fator necessário para o bom funcionamento do controle a ser exercido sobre ela.

Mas nada está sob controle. Um padrão de desenho anormal no rasgado e esfolado papel de parede no quarto infantil onde ela é alojada, nos faz pensar que tudo seria diferente se estivesse sozinha e pudesse escrever. Ela escaparia da política sexual que lhe impõe o papel de mulher e, como tal, de doente. Mas não há essa alternativa para aquela forma de vida confinada pelo casamento, da qual a casa vem a ser a metáfora de uma prisão sem igual, mas de precedentes conhecidos por todas as mulheres. A heroína lê esse papel de parede e o interpreta e, de certo modo, na busca por uma saída.

Ora, toda mulher conhece o papel de parede amarelo e seu bizarro padrão. Muitas o rasgam e saem de dentro dele num ato de transgressão cujo preço é conhecido. Contemplá-lo e rasgá-lo é um ato de desconstrução que pode levar além da casa. Sair dela continua não sendo fácil, mas é o convite que Gilman, em seu generoso gesto literário, nos faz ainda hoje.

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Novembro

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