A “política” que estupra tem filiação

A “política” que estupra tem filiação
(Foto: Alireza Mahmoudi/ Unsplash)

 

“Uma sociedade instaurada no total desprezo pelo ser humano, qualquer nome que queira dar-se, não é senão obscenamente fascista”.
Elsa Morante

 

No xadrez, a Dama é uma peça poderosíssima. Ela consegue, ao mesmo tempo, combinar o movimento da Torre e do Bispo, ou seja, consegue mover-se pelas colunas, fileiras e diagonais, de frente para trás e vice-versa. Ela pode ter a observação privilegiada da Torre, considerada uma peça forte, e do movimento do Bispo, que mantém a vigilância dos corpos através do controle cerrado de seu movimento em diagonal, porém não lhe é permitido passar para a diagonal de outra cor. A Dama, munida de tais forças, busca preservar, em outras palavras, a proteção do Rei. Poderíamos acrescentar: o Poder do Patriarcado.

Em nosso tabuleiro político, a Ministra Damares Alves, para muitos, não traz de forma alguma esse poder da peça do xadrez, tendo em vista suas performances e discursos políticos repletos de movimentos, a priori, “destrambelhados”, que provocam o riso. O humorismo, por vezes, é um comportamento de defesa dos conformistas. No entanto, estejamos atentos às suas artimanhas, pois têm sido valiosas para o governo de Bolsonaro.

A popularidade da Ministra aumenta desconcertantemente logo após cada uma de suas jogadas. Tem uma verdadeira legião de fãs que a segue com obediência, como vimos no caso da menina capixaba de dez anos estuprada por um tio ao longo de quatro anos, que ficou grávida e se tornou alvo de um grupo de fundamentalistas religiosos que tentou impedir o aborto diante de um Centro Integrado de Saúde, em Recife.

Essa legião funciona como Torres e Bispos: vigiam do alto todos os corpos que buscam desativar seus movimentos autoritários, e, além disso, querem todos os corpos, sem exceção, “espiritualmente” controlados por dogmas religiosos, colocando em cena a partida mais vil da política em nosso país, no que diz respeito à vida, à saúde e à liberdade das mulheres. Aliás, quem eram aquelas pessoas que estavam diante do centro médico? O que fazem? Dizem-se cristãs, mas a que “comunidades religiosas” pertencem?

Há muitas singularidades aí que devem ser observadas por parte do judiciário e da polícia, que devem investigá-las, para não cairmos nas generalizações como: “eram todos evangélicos”, que infelizmente deixam de testemunhar importantes atuações de figuras religiosas que lutaram e lutam pela vida das mulheres e das crianças.

Quais são as peças que, hoje, no Brasil, armam um jogo perverso aliado a países que possuem, do mesmo modo, um histórico nefasto de violências contra as mulheres?

Como se sabe, o Comitê de Direitos Humanos da ONU, em sua Recomendação Geral de n° 24, sugere e defende a alteração da legislação penal de seus países-membros, para que as mulheres não sejam punidas judicialmente por realizarem aborto. E ainda como ressalta Camila Asano, diretora de programa da Conectas Direitos Humanos, e citada na coluna de Jamil Chade do dia 17 de julho: “Nas últimas semanas, o Brasil fez o trabalho sujo durante toda a negociação da resolução sobre discriminação de gênero apresentada pelo México”, e tudo isso ao lado de embaixadores do Itamaraty da “mais alta civilidade”.

Aliás, quando se fala do sujeito impessoal “o Itamaraty”, a que sujeitos estamos nos referindo de fato? Normalmente, ocultam-se os nomes das pessoas que respondem a tais instituições, por quais motivos não temos acesso a tais nomes? Membros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovaram uma resolução para combater a discriminação com apoio de mais de 70 países, já o Brasil (do mesmo modo, sujeito impessoal), via o senhor Itamaraty, se silenciou e se colocou fora da luta pelos direitos das mulheres, e todas essas ações não apenas têm reflexos simbólicos em nossa sociedade, visto que incidem de forma extremamente brutal sobre seus corpos e suas vidas.

No Brasil, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, na maior parte dos casos por homens de suas famílias, de acordo com as pesquisas publicadas pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Como aponta Flávia Biroli, autora do texto “Não ao PL 5069/2013” – projeto do então deputado Eduardo Cunha, apresentado por 13 parlamentares homens, que dificulta o acesso das mulheres aos serviços legais de saúde relativos à interrupção da gravidez indesejada –, o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil, vitimando, em maior número, mulheres pobres e negras, que vivem cotidianamente o impacto da desigualdade (racial, econômica, de gênero etc.), refletido em violências sexuais, em suas mais variadas formas, desde sua infância.

No entanto, não apenas a miséria e a desigualdade produzem estupros, visto que mulheres que possuem mais instrução, autonomia econômica e independência também são violentadas, todos os dias, por homens que vêm as “normas patriarcais fora do controle”, como apontam estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS). Como Biroli ainda ressalta, “a ilegalidade do aborto leva à sua clandestinidade; a clandestinidade leva à insegurança; a insegurança leva à morte evitável de mulheres.” As mulheres, portanto, se encontram, nessa cadeia mortífera, votadas realmente à morte, mas também ao abandono, à impotência, ao silêncio, à depressão, à dependência química, ao medo contínuo, ou seja, à morte social.

Toda essa cadeia tenebrosa mantém, além do mais, a mulher presa ao tormento da culpa, seja por conta dos trâmites para que possa denunciar a violência sofrida por ela, seja por todas as consequências provenientes do trauma sofrido. Além disso, as mulheres são sentenciadas moralmente como responsáveis pelo estupro.

 

Como desativar esse triplo trauma? Como desativar
esse postulado de “indignidade” no qual se
desdobra o sentimento de culpabilidade?

 

 

Nosso desafio é desarticular essa terrível ordem simbólica, para que possa se rearmar uma dimensão simbólica humana, sensivelmente democrática, laica e heterogênea, que confronta esse desejo de aniquilação das vidas das mulheres, operado, ao mesmo tempo, em sobreposições, pelo comando político, religioso, econômico e jurídico. A culpa, aliás, é peça fundamental da captura da vida no direito, o qual mantém o sujeito diante da lei num contínuo estar-em-débito, visto que ele se nutre das relações de exceção, sem as quais definharia, como aponta Giorgio Agamben no projeto Homo sacer.

Walter Benjamin, em “Destino e caráter”, ensaio escrito em 1919, observava que “o caráter é usualmente inserido em um contexto ético, enquanto o destino, em um contexto religioso” e de que “de tais domínios eles devem ser banidos, por meio da revelação do erro que para lá os transportou. No que diz respeito ao conceito de destino, este erro se deve a sua ligação com o conceito de culpa”. Ele ressalta como a culpa, enquanto conceito jurídico originário, guarda uma profunda relação com a esfera ético-religiosa, tendo em vista que “o destino se mostra portanto quando se considera a vida de um condenado, no fundo, uma vida que primeiro foi condenada e por isso tornou-se culpada”. A partir dessa inscrição, acrescenta que o “direito não condena à punição, mas à culpa. Destino é o nexo de culpa do vivente”.

Se na perspectiva de Benjamin o ser humano não possui um destino, então, “o juiz pode entrever o destino onde quiser; cada vez que pune, ele deve, ao mesmo tempo, às cegas, ditar um destino”. Em nossa sociedade, o destino das mulheres será sempre ditado por juízes que proclamam que as mulheres estão desde sempre condenadas e, por isso, devem suportar a culpa pelo fato de serem mulheres, fadadas à infelicidade? Benjamin tinha consciência de que “qualquer culpabilidade jurídica nada mais é do que uma infelicidade”.

O Código Penal, em seu artigo 124, aplicado à gestante, define o aborto como crime, e a mulher que realiza o auto-aborto ou o consente pode ter pena de detenção de um a três anos; quem o realiza com a autorização da gestante pode pegar de um a quatro anos de prisão (art. 126); e quem o realiza sem a permissão da mulher, a pena vai de três a dez anos (art. 125). Há apenas três situações em que o aborto não se torna crime, conforme o art. 128: a) aborto necessário ou terapêutico, para que se possa salvar a vida da gestante, em casos de risco de morte; b) aborto sentimental, exceção para gravidez em caso de estupro; c) outra exceção, de acordo com o julgamento da ADPF 54, diz respeito à antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos.

Mas em tais casos excepcionais as mulheres deixam de ser punidas? No atual contexto político, no qual forças fundamentalistas buscam diminuir os direitos das mulheres de disporem de seus corpos, impõe-se mais criminalização diante do desejo por descriminalização do aborto. O ministro interino da Saúde, Eduardo Pazzuello, assinou recentemente uma portaria que impõe diretrizes para a realização do aborto legal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para as vítimas de estupro, como, por exemplo, notificação por parte dos médicos às autoridades policiais acerca do estupro, bem como determina a assinatura de um termo de responsabilidade por parte das mulheres, no qual reconhecem sofrer diversos riscos durante o aborto. Tal dispositivo é mais um ataque declarado contra a vida das mulheres.

Mesmo diante dos casos de exceção, como é o caso da criança capixaba, os efeitos da criminalização perduram no tempo e se inscrevem no corpo e no imaginário da mulher violentada por todas as razões aqui já mencionadas. E a Dama do Patriarcado continua sempre à espreita dos movimentos das mulheres – e até mesmo de uma criança que sofreu estupro – que possam neutralizar seus fins políticos, já que precisa proteger o Rei a todo custo, o qual declarou que jamais haverá descriminalização do aborto enquanto estiver na Presidência da República.

Em 2018, ocorreram mais de 66 mil estupros no Brasil, 54% de meninas com menos de 13 anos. Damares, comovida com essa realidade cruel, não perde a oportunidade de se “solidarizar” com a criança violentada em sua página do Facebook. Diante de tantos casos de violências contra crianças, salvaguardadas inclusive pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990, como esse caso da menina do Espírito Santo vazou para a imprensa? Como e através de quem Damares e Sara Fernanda Giromini souberam do caso?

Tudo se torna ainda mais violento: para que fosse atendida com segurança no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), precisa ser colocada com a avó dentro do porta-malas de um carro, que chega pelos fundos do Centro de Saúde, cujo diretor Olympio Moraes Filho a acolhe com toda sua equipe médica.

 

Quem deveria salvaguardar a vida da criança, que
sofreu uma violência brutal por anos e que ainda é
submetida a toda uma peregrinação repleta de
crueldade, está ao lado ou contra a criança?

 

 

A luta em relação à descriminalização do aborto no Brasil tem mobilizado cada vez mais setores da sociedade. Grupos feministas de todo o país colocam em pauta questões imprescindíveis e dão enorme contribuição para que pesquisas e discussões ocorram nos mais variados espaços urbanos. Estudiosas e estudiosos de muitos campos do saber também entram em cena, trazendo reflexões que tocam o âmbito político, jurídico, econômico, artístico, antropológico, médico etc. As reformas judiciárias tardam e há todo um fronte conservador e detentor do poder econômico e midiático que tenta impedir a todo custo a descriminalização do aborto.

No livro Investigación sobre aborto en América Latina y El Caribe: una agenda renovada para informar políticas públicas e incidência, organizado por Silvina Ramos, numa parceria entre Argentina, México e Peru, publicado em 2015, lemos que no Brasil há um número expressivo de pesquisas sobre o tema, seguido pela Argentina, Colômbia, Uruguai e Cuba, ou seja, estudos situados em nosso presente, que acompanham as singularidades existentes em espaços definidos.

Num país em que a hegemonia da informação se encontra entre uma rede de televisão decididamente neoliberal, como a Globo, e outra de propriedade de Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus, como a Record, se torna bem difícil responder a uma exigência que Pier Paolo Pasolini expôs nos anos 1970, quando na Itália houve um intenso debate em torno da legalização do aborto:  “Se alguma televisão, por um ano, fizesse uma propaganda sincera, corajosa, obstinada de tais meios, as gravidezes indesejadas diminuiriam de modo decisivo no que diz respeito ao problema do aborto.”

Hoje, há um governo conservador, de forma alguma laico e que responde, por uma série de interesses, a grupos religiosos fundamentalistas que impossibilitam a discussão sobre o tema por parte dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e da sociedade civil, tal como acompanhamos em 2018 por solicitação de membros do PSOL. De lá para cá muitos projetos de lei sobre o aborto pararam no Congresso por causa da forte pressão de deputados ligados, sobretudo, à bancada evangélica.

 

 

Os abortos, mesmo obedecendo os artigos
excepcionais ou transgredindo a legislação vigente,
mesmo diante de grupos ditos “religiosos” que o
condenam moralmente, ocorrem todos os dias e
mulheres morrem por causa de procedimentos
precários, sem assistência adequada.

 

 

Além da discussão sobre o aborto, no qual a mulher não pode estar de forma alguma ausente, é importante que nós homens também participemos da luta contra métodos arcaicos de instigação ao linchamento das mulheres, contra a misoginia, contra o conformismo permissivo, que é sempre deplorável, seja ele de extrema-direita ou de esquerda; contra os moralismos que condenam as mulheres às piores experiências, repletas de perversidade e aniquilamento, contra os discursos culpabilizadores, que transformam as mulheres em responsáveis pelas violências sofridas, fazendo com que suas vidas se transcorram com o peso da culpa pelo fato de existirem, contra a tolerância, que é nada mais do que uma forma cínica de lançar as mulheres num espaço de abandono e punição.

Pasolini quando questionado, certa vez, pela escritora Dacia Maraini sobre o que é misoginia para ele, lhe diz: “Quer exemplos de real misoginia? A TV: ali a mulher é considerada, em todos os efeitos, um ser inferior: é delegada a trabalhos de importância mínima, como, por exemplo, informar alguns programas do dia”.

Dacia Maraini argumenta: “Estou de acordo. Mas quem é que conduz a televisão, que organiza as revistas, que comanda a moda? São sempre os homens. E os homens transmitem seus interesses. O interesse do homem é que a mulher esteja ali para servi-lo e adorá-lo sem tantos porquês, convencida de ser inferior por razões ‘biológicas’, isto é, para sempre e definitivamente (como faz, de fato, para se rebelar contra razões biológicas? Seria tolo, presunçoso e inatural, não?). Por outro lado, contra quem tenta rebelar-se se ergue logo o ostracismo e o desprezo, mesmo se podem vestir a máscara da tolerância”.

E Pasolini acrescenta: “É a tolerância que cria os guetos, porque é através da tolerância que os diferentes podem vir à luz, contanto que sejam e permaneçam minoria, aceita, porém caracterizada e circunscrita. A tolerância é o aspecto mais atroz da falsa democracia. Digo-lhe que é realmente mais humilhante ser ‘tolerado’ que ser ‘proibido’ e que a permissividade é a pior das formas de repressão.”

No início do texto, escrevi que “no xadrez, a Dama é uma peça poderosíssima”. O xadrez é um jogo de estratégia que se utiliza de espacialidade e localização, no tabuleiro o sujeito sai em busca de si mesmo através de aberturas que são, ao mesmo tempo, reordenamentos de unidades individuais como do conjunto das unidades. Se o jogador arma racionalmente as jogadas possíveis, sejam suas como as de seu adversário, antes de dar um passo, é porque sabe que as homogeneidades são arriscadas, e sabe que as contingências, o acaso, também entram em cena.

Na língua italiana, o jogo de xadrez é chamado de “scacco”, bem como as peças do jogo, e tal termo ainda traz a acepção de vitória (dar um xeque-mate), bem como de “falência, derrota” (sofrer uma derrota). A Dama do Patriarcado, porém, lida mal com as contingências, e mal sabe que a “política” que estupra e adora manter filiação já está sendo surpreendida por uma coreografia alegre, vital, que rearma toda a configuração do tabuleiro, tendo as Damas outros ares.

Davi Pessoa é autor de Pasolini: retratações, em parceria com Manoel Ricardo de Lima (7Letras, 2019) e tradutor de livros de Giorgio Agamben, Mario Perniola, Donatella Di Cesare, Elsa Morante, entre outros.


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