Estante Cult | Mundiação e política de habitabilidade da terra
Philippe Descola por Claude Truong-Ngnoc, em 2014 (Wikimedia Commons)
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Mobilizações indígenas em todo o mundo e lutas territoriais nos países capitalistas são as primeiras grandes expressões da luta política mais decisiva deste século: aquela em torno da “habitabilidade da Terra”, afirma o antropólogo francês Philippe Descola, titular da cadeira de Antropologia da Natureza do Collège de France e professor da Escola da Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS). Perante o risco existencial do Antropoceno e a voracidade do capital, o desafio político que esses movimentos enfrentam é aprender a habitar mundos diferentes e múltiplos, estabelecendo outras relações entre humanos e não humanos, em espaços de vida compartilhados por humanos e não-humanos.
A obra de Descola é conhecida pela crítica da concepção de mundo que caracteriza a modernidade, em que a natureza é entendida como uma realidade externa e incomensurável com a cultura humana. Esse princípio, que recebe o nome de naturalismo, teve grande sucesso em desenvolver uma física matemática e rigorosa, foi fundamental para o surgimento do capitalismo, com sua voracidade exploratória de recursos ditos naturais. Hoje, no entanto, é confrontado com seus limites. O principal deles tem a forma do Antropoceno, momento em que o não-humano esquecido na equação política e econômica reemerge como estado de crise.
O naturalismo é contrastado com outras três formas de conceber o mundo, ou melhor: fazê-lo. Descola cunha o termo mundiação (mondiation) para se referir ao estabelecimento de relações estáveis das sociedades com seu meio. A primeira é o animismo, que o antropólogo encontrou enquanto realizava seu trabalho de campo para a tese de doutorado, entre 1976 e 1979, com direção de Claude Lévi-Strauss. Trata-se de um modo de fazer mundo em que cada ser do universo é dotado de uma subjetividade semelhante à humana. O perspectivismo ameríndio teorizado por Eduardo Viveiros de Castro é um caso, já que a perspectiva de cada ser envolve uma subjetividade.
Em seguida, Descola acrescenta ao rol da mundiação o totemismo, em que os seres se dividem em arquétipos, em geral animais, e em torno dos quais os seres formam uma espécie de coletivo totêmico. Esse modo de fazer mundo foi identificado pela primeira vez na Oceania. Por fim, a partir de referências como as obras de Marcel Granet e Michel Foucault, o antropólogo identificou também o analogismo, que consiste em estabelecer semelhanças e conexões entre seres de diferentes naturezas, como, por exemplo, uma estrela, um valor moral e uma planta. Essa é a forma encontrada em sociedades como a China clássica, o Islã e a Europa da antiguidade até a Idade Média. O naturalismo emerge como uma modificação do analogismo, junto com a perspectiva renascentista, que imita a visão de um indivíduo humano sobre um mundo exterior que lhe é estranho, e filosofias como a cartesiana, que estabelecem uma ruptura entre o ser extenso e o pensante.
Em setembro, o antropólogo esteve no Rio de Janeiro e São Paulo para o lançamento de dois livros: Para Além de Natureza e Cultura (EdUFF), considerado sua principal obra, e As Formas do Visível (Editora 34), um ambicioso tratado de 600 páginas com 160 ilustrações, dedicado a mostrar como as imagens, ao longo da história, deram expressão às diferentes modalidades de mundiação. De acordo com o autor, diversas vanguardas artísticas, além das lutas políticas, têm fornecido sinais de que o naturalismo passa por uma transformação e pode dar lugar a algo diferente.
O sr. se refere à habitabilidade da Terra como principal desafio atual, mas ainda sem expressão política.
Sim.
Por que falta a expressão política?
Já começa a surgir uma. Na França, por exemplo, há movimentos que defendem um uso alternativo do território, como as ZAD [zonas a defender], formas pioneiras e originais de comunidades políticas. São modos de ultrapassar os impasses do capitalismo em escala local, nas condições de habitabilidade do território. Outra expressão é o movimento das “Sublevações da Terra” (Soulèvements de la Terre), que luta contra a apropriação de bens comuns, principalmente nos territórios; a apropriação de água para irrigação ou de terras agricultáveis pela agroindústria, ou de territórios para projetos faraônicos e inúteis. Quando dizem: não estamos defendendo a natureza, somos a natureza se defendendo, estão aceitando a responsabilidade de lutar pelo ambiente de vida que nos acolheu e com o qual temos deveres. É preciso entender que os ambientes de vida nos acolhem e devemos demonstrar respeito por eles.
O caso do aeroporto em Notre-Dame-des-Landes provocou comoção em toda a França.
Essa é uma ZAD especial, que lutou contra um aeroporto e sofreu uma repressão brutal. Neste momento há outra luta que mobiliza muita gente, contra um projeto de autoestrada entre duas cidades do sudoeste de França, Castres e Toulouse. Ela destruirá milhares de hectares, incluindo florestas, para poupar cinco minutos numa viagem de carro. Mas melhorias em uma estrada já existente teriam o mesmo efeito. As condições práticas da luta pela habitabilidade da Terra estão assumindo formas políticas, porque se opõem aos governos liberais que têm uma fé ingênua na inteligência do mercado. O governo francês tem reagido violentamente contra ativistas, intelectuais, agricultores, jovens, que estão convencidos da importância de fortalecer as condições de habitabilidade da Terra. O governo quis dissolver as Sublevações da Terra, mas graças a um apelo que fizemos ao Conselho de Estado, a dissolução foi suspensa.
No dia em que o sr. lançou seu livro em São Paulo, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade do Marco Temporal. Qual foi sua reação a essa notícia?
É um alívio. Sou um dos autores de um artigo publicado na França que contestava a decisão do Congresso brasileiro de aprovar o Marco Temporal, porque essa tese equivale a questionar a legitimidade da ocupação de terras indígenas pelos próprios indígenas. Dito isto, estou preocupado, porque os votos dos ministros vieram acompanhados de recomendações problemáticas, como a indenização de posseiros e os direitos de mineração em territórios indígenas. O assunto não está encerrado e vai exigir que acompanhemos como essas recomendações vão se desenvolver.
O sr. relata que foi conduzido ao animismo pelos sonhos que ouvia dos Achuar. Essa foi a fagulha de sua teoria das quatro formas de fazer mundo. Depois, o sr. se voltou para a imagem como manifestação do fazer mundo. Como se articulam sonho e imagem?
No trabalho de campo, encontrei uma forma de sonho que não conhecia. Em uma casa coletiva, o sono é sempre interrompido. Há sempre algum cachorro que late, uma criança que chora, alguém que se levanta para reacender o fogo. Cada vez que acordamos, vêm à mente alguns fragmentos dos sonhos que acabamos de ter, e aos quais atribuímos uma coerência e uma substância imagética. Reencontramos esse material quando acordamos. Desse conjunto, extraímos as imagens que são discutidas pela manhã, ao redor do fogo.
Como são esses sonhos?
São de diversas naturezas. Alguns estão sujeitos às interpretações clássicas, permitindo planejar as atividades do dia. Há sonhos premonitórios. Por fim, em alguns o sonhador é visitado por um personagem, humano ou não humano. É aí, nas relações que se tecem com o não humano, que se pode apreender uma informação sobre uma planta ou animal com o qual se deve entrar em contato. São imagens de natureza muito particular, porque nos lembramos principalmente da aparência geral do ser que vem nos visitar. Mas essas aparências, ou essas imagens, nunca são transcritas em artefatos, exceto nos corpos decorados de humanos, como dançarinos, ou nas máscaras.
Por que isso acontece?
Em alguns casos, é preciso que os ajudantes que vêm visitar uma pessoa em seu sonho apareçam de forma mais concreta, fisicamente. É nesse momento que na Amazônia, mas também nas sociedades da América do Norte, encontramos personagens que são humanos que assumem o ponto de vista de um animal por meio de máscaras. Na Amazônia, frequentemente são máscaras de corpo inteiro. Vêm de certas aparições, em sonho, que ocorrem a um xamã, transmitindo instruções de confecção das máscaras, ou seja, da forma como os seres aparecem. Não se trata de iconicidade, porque o que se reproduz são seres que carregam consigo os sinais do que são. Não há nada como uma mimese. Existe uma enorme diversidade de máscaras. Cada vez que elas são sonhadas por um xamã, eles veem certas características desses seres, que depois são reproduzidas sob forma de pistas em máscaras. São máscaras de índice, e não icônicas.
Seu relato do papel dos sonhos faz pensar na afirmação de David Kopenawa, em A queda do céu, de que os brancos só sonham consigo mesmos.
De certa forma, isso é uma crítica implícita à psicanálise. Os sonhos dos brancos são formados a partir de repressões de frustrações que se acumularam ao longo do tempo. A interpretação deles é sempre egocêntrica. No caso dos nativos americanos, os sonhos são uma oportunidade de se abrir a outro mundo que está sempre aí. E é um mundo imanente, não há transcendência. Mas esse mundo nem sempre é imediatamente acessível. Os sonhos permitem que as subjetividades dos humanos e não-humanos se comuniquem, ao mesmo tempo em que se libertam dos constrangimentos físicos, da linguagem comum e da sensibilidade. Nesse sentido, por definição, não são sonhos de si mesmo, mas de abertura aos outros. Como em tudo que David Kopenawa diz, ele está corretíssimo.
Das mundiações, a mais enigmática é o naturalismo, surgido só no Ocidente e na modernidade. A que se deve essa excepcionalidade?
É verdade que o naturalismo é excepcional. Ele é uma transformação do analogismo, talvez porque só no analogismo estão reunidas as condições para o naturalismo emergir. Em particular a ideia de que o mundo é composto por uma diversidade de elementos, em que cada um é combinável ou não com os demais. A visão clássica que opõe a física das qualidades sensíveis à física matemática, por exemplo, implicou uma ruptura profunda entre duas formas de conceber o mundo físico, mas me parece que não é o caso da transição do analogismo para o naturalismo.
Qual é a diferença?
Há pré-requisitos para que emerja uma física das qualidades primárias, objetivas. Ela passa primeiro pela física das qualidades secundárias, sensíveis. Isso ocorreu só em uma parte do mundo e foi prenunciado por imagens antes de estar presente nos textos. Mas poderia ter acontecido em outro lugar e é interessante observar as condições que o impediram. Seria uma transformação até provável do atomismo grego, levando a um mundo naturalista. Penso também em certos intelectuais da China clássica, que viviam em condições análogas às da Grécia, com escolas de pensamento em competição, que atraíam discípulos e ofereciam uma base para o desenvolvimento de debates intelectuais e conceituais. Também poderia ter acontecido no Islã medieval. Se não aconteceu, foi por todo tipo de razões. No caso do Islã, provavelmente a proibição de imagens foi um freio, porque as imagens desempenharam um papel importante no surgimento do naturalismo.
Se o Ocidente deixa de ser o centro do universo, o naturalismo pode ser abandonado?
De fato, há uma trajetória histórica do naturalismo. Ela se baseia, em parte, na sua contradição inicial, que postula, por um lado, a singularidade da interioridade humana e, por outro, o pertencimento dos humanos à natureza. Essa é uma contradição que vemos em Descartes. Ele diz, por exemplo, que não lida com a questão das condições da emergência da subjetividade. Os primeiros materialistas, como Condillac ou La Mettrie, não eliminam a interioridade. Tivemos que esperar pela teoria fisicalista do final do século 20para encontrar uma tentativa de resolver a contradição.
O naturalismo se aprofundou?
Estamos atravessando uma situação paradoxal. Há uma tensão, em que os filósofos e cientistas cognitivos tentam resolver a contradição. Ao mesmo tempo, o naturalismo se espalhou além de seu foco inicial. Atualmente, tem de se confrontar com o Antropoceno, ou seja, a dificuldade de conceber um mundo em que o ser humano e a natureza não se distinguem mais, uma vez que o humano se tornou uma força natural. Essa situação provoca uma fissura no naturalismo. A dificuldade decorre também de sua inadequação para pensar o fim do capitalismo, do qual o naturalismo é uma condição. Só podemos nos livrar do capitalismo se realizarmos uma transformação profunda do naturalismo, das bases conceituais e metafísicas sobre as quais o capitalismo foi construído. E de fato descobrimos, graças à antropologia, que existem outras formas de fazer mundo, de viver e experimentar a condição humana.
Se o naturalismo foi precedido por imagens, podemos ver nas vanguardas artísticas sinais da transição para um mundo pós-naturalista?
É da natureza das imagens preceder as transformações ontológicas, depois apreendidas pelo discurso. Assim como o naturalismo foi antecipado nas imagens, as convulsões do naturalismo são visíveis na revolução artística que ocorreu a partir do cubismo e reintroduziu a multiplicidade de pontos de vista. Ela tinha sido abolida pelo naturalismo, com sua obsessão de emular a visão humana individual. Os limites dessa estratégia estão se tornando claros hoje no vigor de artistas indígenas em todo o mundo e também no fato de muitos artistas contemporâneos produzirem obras onde a dissociação entre natureza e cultura se tornou impossível. Desse ponto de vista, aprecio muito o artista francês Pierre Huyghe, que faz instalações combinando artefatos, imagens e organismos em interação.
É um verdadeiro ecossistema.
Exatamente. Ele cria ecossistemas artísticos sui generis. Não se trata de reproduzir um ecossistema, trata-se de criar algo inteiramente novo, que não é regido pelas convenções da figuração naturalista clássica. Considero o período contemporâneo, do ponto de vista artístico, absolutamente fascinante.
Sua última obra publicada se chama Etnografias do mundo por vir, em parceria com Alessandro Pignocchi. Como é essa etnografia?
Acho que os antropólogos têm uma enorme responsabilidade moral e política, maior até do que a de outros cientistas sociais, porque estão expostos à inventividade nas formas de habitar o mundo. São depositários de um saber que pode dar frutos, não como experiência a transpor, já que nenhuma experiência histórica é transponível, mas como estímulo à imaginação de formas diferentes de habitar a Terra. O livro tenta imaginar a convergência das lutas de povos autóctones do mundo para se protegerem da espoliação, bem como a inventividade dessas populações na formulação de soluções, embora integradas ao Estado contemporâneo. Todo dia, essas populações enfrentam constrangimentos legais, administrativos, políticos, militares. Elas precisam se adaptar, transpondo conceitos de habitabilidade que já eram seus há muito tempo para situações concretas atuais. Podemos nos inspirar nelas, combinando-as com o modo como territórios coletivos, como as ZAD, concebem a relação de habitabilidade nos países de antiga tradição capitalista. Isso não invalida a luta no contexto político tradicional para obter Estados mais democráticos, fundados na participação e não na representação. Não creio que o Estado possa simplesmente desaparecer. Ele está na cabeça das pessoas.
Muita gente se pergunta se as categorias tradicionais da política ainda se aplicam.
Comecei a vida como militante de esquerda. Pensava que criando uma vanguarda do proletariado, que guiaria as massas, chegaríamos ao definhamento do Estado. Logo vi que era uma ilusão absurda. O mérito da antropologia é nos oferecer um leque de formas extremamente variadas de organizações políticas e cosmopolíticas. Penso, por exemplo, naquilo que [James] Frazer denominou “rei divino”, formas de Estado em que o soberano é responsável pelo bom estado do mundo, mas não participa da gestão concreta das coisas. São os grupos locais que gerenciam o território. Existem formas de Estados muito diferentes. Tendemos a ver como modelo o Estado westphaliano, surgido na Europa do século 17, mas há outros, que pouco a pouco desapareceram com a conquista colonial. Mas se nos inspirarmos nessa dissociação entre, de um lado, uma instância encarregada do bom estado do cosmos, e do outro um aparelho estatal cuja função é realizar a distribuição ou gestão de terras, podemos imaginar uma política diferente. As ciências sociais e políticas carecem de imaginação, porque estão presas no túnel da filosofia política tal como se desenvolveu a partir de Hobbes, Locke e o Iluminismo.
Diego Viana é jornalista e economista pós-graduando em filosofia política e estética na Universidade de Nanterre, França.