Poética do desencanto: ‘Movimentos portáteis’, de Reynaldo Damazio, e outros lançamentos
Uma poética do desencanto. Esta poderia ser uma definição para o conjunto de poemas apresentado por Reynaldo Damazio em Movimentos Portáteis (editora Kotter), seu oitavo livro, lançado no ano pandêmico de 2020. Nos 76 poemas que compõem a obra, o poeta, editor e gestor cultural paulista de 57 anos lança um olhar bastante triste sobre a cidade, as relações humanas e a política. Damazio faz um pouco o caminho do filósofo romeno Emil Cioran: ao nos tirar toda e qualquer esperança filosófica, nos obriga a prestar atenção ao mínimo movimento — interno e externo.
Damazio escreve poemas que acabam em lugares bastante solitários, onde reinam o silêncio e a constatação de que, por mais que se lute, as coisas custam a sair do lugar. É como se não houvesse, nos passos trôpegos que damos todos os dias dentro e fora de casa, uma luz no fim do túnel. Os poemas nos refletem, ora perdidos, ora absortos no individualismo, sem perspectivas – inclusive em relação à poesia – de que algo possa nos salvar. Como no poema em que escreve: “é possível que o sangue / da mãe fuzilada pela polícia / com o filho em seus braços / sirva para escrever o poema / mas é possível que não / que a memória seque / que a indiferença cegue / que o horror se coagule / e o poema como um menino / também fuzilado por policiais / levando na mochila chuteiras / e sonhos / não seja nada / não seja nada / nada / não seja”.
Se não parece haver nenhuma esperança também em versos que anunciam “você procura a saída no escuro, / busca sem sucesso, só o silêncio / se move”, há a esperança do poeta na própria feitura do livro, no impulso de escrever. Por mais descrente que seja, a escrita tem sempre a presença de algo inaugural, sobretudo a poesia. Como já escreveu Novalis: “A poesia é, entre as ciências, a juventude”. Em seus movimentos tristes, com gestos lentos e pesados de um sobrevivente, um exilado em sua própria cidade, Damazio nos obriga recomeçar, a avançar, a escolher uma rota: “suponha que existe um caminho a seguir / e que esse caminho leve de fato a um destino / que seja possível planejar a viagem, rotas / calcular o tempo, medir a distância, sonhar / com atalhos por onde se perca o rumo e / o atraso seja aproveitado num poema lírico (…) / só a força dos músculos contra o vento insiste / suponha que ainda exista um caminho”.
Talvez sob a influência de uma leitura recente, os poemas de Movimentos Portáteis me lembraram a desilusão que vive o personagem de Albert Camus, em A Queda. No romance filosófico, um advogado bem-sucedido é acometido, muito anos depois, por um arrependimento ao ter escutado um corpo cair do rio Sena e não ter feito nada a respeito. Aqui, no livro de Damazio, também dá para notar a desilusão generalizada que Camus descreve tão bem, mas, diferentemente do personagem Jean-Baptiste Clamence, não há o período da indiferença. Pelo contrário: os versos sofrem com a tristeza do mundo, colada a ela, em tempo real: “a morte dilatando os compassos / cortes metáforas feito musa”.
O livro é dividido em cinco partes, com poemas que foram escritos entre 2015 e 2020. São textos que dialogam entre si e que foram reescritos diversas vezes, já que Damazio faz parte da turma de poetas que trabalha exaustivamente a edição. O livro tem várias frentes, cada uma delas correspondendo a um movimento. “Eu já tinha a ideia do título e qual o caminho que queria seguir, mas os escritos estavam todos dispersos em notas no celular, em caderninhos, então, aproveitei as madrugadas de insônia na pandemia para organizar o material, bem no meio da tragédia toda”, conta. A pandemia, a guinada fascista, a sensação muito clara de que está tudo indo para o espaço, isso tudo está, segundo Damazio, em grande medida nos textos. “Não de forma simplificada, mas há um desespero metafórico em Movimentos Portáteis, que começa com um nó na garganta, depois um grito, um transe e um ritmo”, explica o autor. A quinta e última seção da obra, escrita originalmente em espanhol e intitulada Otredad, Damazio teve a experiência de ler, em 2018, na Cidade do México. Lá ele pôde ter ideia da recepção destes poemas, que são bem mais solares do que o restante do livro, como nestes versos: puertas / perros / claves de sol / tu mirada / mi poema”. Ou no poema que diz: “piel hecha de sal / los pies em la arena / morder el sol”.
Damazio leva a escrita como um processo que inclui criação, montagem, quebra-cabeça e equação. É algo lúdico e lógico ao mesmo tempo. Nos poemas, há uma incerteza em relação à linguagem, um questionamento contínuo. É um poeta da investigação, na tentativa de entender os limites da palavra. Nesta obra, em particular, o foco está na linguagem em relação ao corpo, ao movimento. Ao andar e observar a cidade, Damazio usa a linguagem como um gesto, uma palavra-motor, como algo que pulsa – e não apenas uma abstração do intelecto. “caminhar / como quem tropeça / em asteroides / como quem rouba / estrelas distraídas / e dribla a chuva / num lance de sorte”.
Nas epígrafes do livro, é possível traçar quem são os poetas e escritores que guiam Damazio: Herberto Helder (“– Uma flor e um grito, / um copo e um breve minuto, ou a aurora / cortando o peito, ou o primeiro respirar / de um pensamento.”), Alejandra Pizarnik (“O poema é espaço e fere.”), Pier Paolo Pasolini (“Ah, gritar é pouco, e é pouco calar”), Clarice Lispector (“O melhor está nas entrelinhas.”), Maria Gabriela Llansol (“A escrita é um armazém de sinais”) e Vicente Huidobro (“Una bela locura em la vida de la palavra.”). Também se percebe a influência do poeta-andarilho Matsuo Bashô, com os poemas curtos da quarta parte, e dos pensamentos do filósofo Heráclito, a quem Damazio lê como poeta. Neste livro de versos realistas e de alta densidade, que não conta com letras maiúsculas e pontos finais nos poemas, Damazio cria sua linguagem-motor, algo que se movimenta em nossas mãos, ainda que estejamos confinados. Como define muito bem o poeta e crítico Adolfo Montejo Navas, no prefácio de Movimentos Portáteis: “uma poesia que relata um esfarelamento, da experiência através de uma vinculação, paradoxalmente fragmentada, uma articulação de vínculos em tensão, como não poderia deixar de ser uma obra contemporânea, de olho aberto”. Com um trabalho de linguagem que reúne forma, ritmo e sintaxe num equilíbrio de forças impressionante, o livro nos dá esperança na desesperança, porque nos mostra do que a palavra é capaz: uma força motriz que abala as estruturas vigentes, uma matéria que pulsa no desejo de existir. Damazio, assim, consegue em seu livro o efeito que Roland Barthes considerava essencial ao se ler um texto: “leitura é aquilo que não para”. Ou, como diz Damazio, num poema curto e certeiro: “entre som / e sentido / silêncio”.
Michaela Schmaedel é jornalista e poeta. Autora dos livros Coração cansado (Penalux, 2020) e Quênia: poemas de viagem (Cas’a edições, 2021) e editora do podcast Poesia pros Ouvidos.
[ficção]
por Redação
Tal como barco em mar aberto se movimenta o novo livro de poesia de Leonardo Tonus, professor de literatura brasileira na Sorbonne. Não apenas pelos influxos de imigrantes e exilados que o autor rastreia poeticamente, mas também pela vastidão de vozes e discursos que se entremeiam a esses “diários” à deriva. Decretos de Getúlio Vargas e textos de Plínio Salgado afluem com declarações homofóbicas e racistas de Bolsonaro, cenas dos imigrantes presos no Texas ou mesmo dos imigrantes italianos chegados ao Brasil no final da década de 1930. O autor entretece diferentes tecidos sociais e históricos em sua poesia marcada pelo tempo presente. Como na citação de Foucault, que serve de epígrafe a um dos poemas, o livro navega como um barco, que “é um pedaço de espaço flutuante, fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar”.
Em 1949, soldados israelenses atacam e exterminam um grupo de beduínos, nômades que habitam o deserto do Neguev. Deixam viva apenas uma adolescente que, depois de torturada e violentada, também é morta e enterrada no deserto. Muitos anos depois, uma mulher na contemporânea Palestina procura desvendar alguns detalhes que envolvem o crime antigo. Sua obsessão vem de uma coincidência de datas: nasceu no mesmo dia e mesmo mês em que a beduína fora assassinada, 25 anos antes. A narração do crime de 1949, inspirada em um fato real, ocupa a primeira parte do romance, cedendo às investigações da mulher palestina na segunda parte. Ao entremear esses dois tempos históricos, a autora desvela a imbricação do passado no presente, refletindo sobre a violência continuada de uma Palestina expropriada de seu povo.
Reunião de onze contos da escritora carioca. Apesar de as histórias serem independentes, as relações familiares funcionam como fio condutor que perpassa todas as narrativas: uma mãe que não consegue expressar o amor pelo filho, a rixa entre duas irmãs pela atenção do pai, a relação de uma avó com seus netos, uma jovem recém-casada que vai morar em um país estrangeiro. São nas situações do cotidiano familiar que a autora busca os elementos e personagens para compor suas histórias, que também pontuam reflexões sobre a passagem do tempo, os afetos perdidos e reencontrados, as escolhas de vida e suas consequências.
[não ficção]
Como traz já no título, o livro estuda e explica os danos colaterais trazidos pela inserção crescente do Exército e das operações de segurança nas diferentes áreas da vida pública brasileira. Para isso, explicita também as relações tensas entre soldados e moradores de comunidades nas quais se estabeleceram as forças de pacificação. Chega, assim, à constatação do lugar de desconfiança que a Justiça gradualmente ocupa para a população, além de evidenciar a alarmante ampliação do papel dos militares na política, indo ao contrário do esperado para o desenvolvimento e consolidação de um Estado democrático.
No quarto livro de sua série “Comunidade dos espectros”, o filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini coloca algumas questões para pensar em um novo tipo de filosofia: “em que condições é a cosmologia o conhecimento que pode explicar problemas tão cruciais como a imortalidade ou a diferença sexual? Em que sentido se pode falar, filosoficamente, de um Multiverso numa época em que a ciência parece incapaz de satisfazer as exigências dos espíritos criativos?”. Após refletir sobre a produção do pós-humano no antropotécnico, o autor debruça-se sobre o desenvolvimento de uma “para-metafísica”, “uma abertura para conceitualizações que podem acompanhar um novo despertar do pensamento no alvorecer de uma das maiores mutações civilizacionais da história, onde o futuro dos seres vivos de Gaia está em jogo como nunca antes”, escreve.
Proposta de leitura da história da literatura brasileira que a abre aos diversos fluxos de criação contemporâneos: canção, tradução, redes sociais, vozes indígenas, feminismo, diferenças. Ao propor tal abertura, revisita os modelos tradicionais estabelecidos pela crítica literária, por nomes como Antonio Candido e Roberto Schwarz, e suas limitações, e abre o diálogo à história e à antropologia contemporâneas. O livro resulta da pesquisa de pós-doutorado de Luis Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Su, e de seu repertório acumulado durante 40 anos lecionando história da literatura brasileira.
Reedição expandida de um dos clássicos estudos sobre a vida e obra de Machado de Assis, lançado originalmente em 2008. Através de seus verbetes, pode-se explorar aspectos biográficos do autor de Dom Casmurro, aspectos de sua obra em todos os gêneros, assinaturas e pseudônimos com os quais assinava, editoras e jornais nos quais publicou, pessoas com as quais se correspondia, além de uma diversidade de minúcias íntimas e pouco conhecidas da vida do escritor. Como escreve Cícero Sandroni no prefácio da obra, “o Dicionário registra cada fato da vida de Machado, suas alegrias e decepções, amores, manias e fragilidades, apresentando ainda um grande número de material inédito, que escapou à argúcia dos biógrafos”.