Poesia em fogo pelos ares
(Foto: Lewy Moraes/Folhapress)
Gás de decolagem
A presença recorrente dos meios de transporte na poesia de Ana Cristina Cesar produz imagens poéticas da velocidade, do lançamento, e do voo: “último trem subindo ao céu”, “aviso que vou virando um avião”, “decolagem lancinante”, “carro em fogo pelos ares”. Partindo das reflexões de Gaston Bachelard, poderíamos entender que se trata de uma poesia “aérea”, na qual predomina a “imaginação dinâmica”, ou seja, a força de transformação da imaginação, por meio da qual sequências de imagens se substituem e rompem com a inércia das imagens estáticas. No poema “instruções de bordo”, por exemplo, os enjambements e a intercalação entre versos curtos e longos, além do recurso à listagem, contribuem para tal impressão de mobilidade. As palavras parecem desdobrar-se e transformar-se umas nas outras: “Degolar, atemorizar, apertar/ o cinto o senso a mancha”; “alto esmalte nau/ dos insensatos supervoos”; “despetaladamente/ pelada/ pedalar sem cócegas sem súcubos.”
Como num carro em alta velocidade, seu voo-corrida em rasante pela contramão, sustentado sempre no instante, não pode ser associado à leveza: necessita da explosão que vence a inércia, do ronco de um motor, ouvido, por exemplo, na aliteração da fricativa sonora: “aviso que vou virando um avião”. Segundo Viviana Bosi, para a geração de setenta, a “convicção de que o tempo se encolheu e só existe este único (e último) instante” ecoa o imaginário do risco da morte iminente. Note-se que o “carro em fogo pelos ares”, em “mocidade independente”, não é um carro voador, voa apenas na medida da sua explosão, do estouro de arranque: o voo de Ana C. é um arriscado voo ígneo.
Em “fogo do final”, poema da velocidade ígnea, o verso “Ancorada no carro em fogo pela capital” anuncia o tom contraditório de uma escrita que se ancora na corrida e encontra sua fixidez no movimento veloz. Mas o risco real do lançamento é também a coreografia marcada de um truque. Performática, como quem executa perfeitamente cada um dos movimentos diante dos olhos da plateia, saboreia a reação de espanto: “Bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil. É só para você y que letra tan hermosa. Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a tua cabeleira de um só golpe, e o teu espanto! Não tenho pressa”.
Não há, porém, continuidade crescente até um ápice que faça gozar a leitura acelerada: o ritmo é interrompido sempre pelos retornos espiralares às conversas telefônicas: “Corto meu jejum com dedos de prosa ao telefone”. A última interrupção fecha o poema com a evocação de outro texto, que sugere o retorno ao real: “Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de dar recados.” A evocação do caderno terapêutico neste que é o último poema do último livro publicado em vida pela poeta carioca talvez me desculpe o pecado do biografismo no qual vou incorrer a seguir (“Ratazanas esses psicólogos da literatura”, diz o remetente “r” em “Três Cartas a Navarro”). É que estamos diante de um problema da imaginação literária, do qual já não podemos fugir: ao falar dos poemas que se lançam pelos ares, continuaremos em silêncio sobre a poeta que se lançou pelos ares?
O pecado do biografismo
Desde a morte precoce da poeta carioca, sua crítica, formada primeiro por amigos e conhecidos, deparava-se com o seguinte desafio: honrar o sentimento de perda e não deixar, ao mesmo tempo, que a tragédia obscurecesse, explicasse ou reduzisse a relevância e qualidade da sua obra poética. Com o passar dos anos, muitas leituras de seu trabalho passam a destacar a importância da construção da intimidade na sua poesia, enfatizando o afastamento do texto em relação à experiência vivida. O nobre esforço de libertação da obra em relação à vida-morte da autora parece ter se consolidado, e a poesia sobrevive à queda. A biografia começa a soar, então, como pecado crítico, e falar da morte da Ana começa a parecer falta de seriedade na leitura.
No livro Ensaios de possessão, irrespiráveis, Ana Cristina Chiara (outra Ana Cristina) perguntou se não estávamos exagerando na morte da autora morta, ignorando excessivamente sua morte voluntária, para poder fazer viver seus poemas. Chiara provoca os críticos-amigos (e mesmo nós, que não a conhecemos, mas continuamos vasculhando suas gavetas) com perguntas mordazes: “Você soube que a amou, enquanto a amava? Ou só depois quando linda borboleta fixada? Você poderia ter sido um príncipe, um beijo que a despertasse? Por que não abraçamos mais forte as pessoas? A mente exausta de tanto amar? Economizamos na vida para gastar no texto?”.
A angústia expressa por Ana Chiara traduz o problema irreparável da crítica diante do suicídio, que é uma forma, digamos, mais grave, do problema da crítica diante do autor e sua vida-morte. Explicita, além disso, uma vivência compartilhada pelos leitores de Ana Cristina Cesar: espécie de pacto silencioso de testemunhas, que carrega certa solenidade, mas que não deve, a princípio, informar nossas leituras sérias.
Não há solução no ensaio de Chiara. Ela não defende uma leitura diretamente informada pela biografia, mas retorna a questão trágica da morte de Ana Cristina Cesar à cena da leitura, colocando nosso desejo de defender a literatura acima de tudo (contra as ratazanas de nós mesmos), em xeque: “O que fazer depois com os poemas? O que importa a poesia diante desse voo?”, “Não adiantam as instruções da aeromoça, se o avião cair, estou ferrada. Quero meu mundo de volta”.
É possível caminhar a linha tênue entre a morte do autor, preconizada por Barthes (que nos sugere olhar para o texto descolado da sua produção concreta e da subjetividade do seu autor), e a exigência (muito atual, aliás) de recuperação das condições materiais e subjetivas de sua produção? O tema do suicídio parece tornar aguda e tensa essa contradição.
A crítica feminista tentou (pensando agora em linhas gerais e não em Ana) reviver a autora, diante da morte do autor. Sabemos que a saída pode ficar fraca: projeta-se a tal “experiência vivida” no texto (especialmente narrativo), encontra-se na produção um espelho da vivência, uma “expressão” da vida, e corre-se o risco de matar a literatura para fazer viver a autora. Com os textos em prosa, o achatamento pode ser, talvez, mais facilmente aceito, o erro menos óbvio. A poesia não deixa. A poesia complica um feminismo pouco afeito a sutilezas, enquanto, do outro lado, nosso feminismo chia quando lemos qualquer mulher como “poesia pura” (assim faz o leitor “Gil”, personagem de Ana). “Expulsamos o autor pela porta, mas ele volta pela janela”, disse a professora Cristina Henrique da Costa, em uma aula sobre Machado de Assis: “o autor é um morto-vivo, cadáver de olhos abertos”.
A crítica fica então em uma escolha de Sofia entre o texto e a vida: autor numa mão, livro na outra, decidindo quem deixar cair no abismo. Se matar um autor morto é mais fácil do que matar um autor vivo (cujos paratextos se reproduzem ainda), não será pura crueldade matar novamente um autor suicida? O “ser ou não ser” do autor no texto já é bicho de sete cabeças, acrescenta-se o problema do gênero (porque a autora não é o autor), então temos oito cabeças, e somando a este o problema do suicídio, ficamos com nove. Quisera poder transformá-las em nove vidas de um gato, redobrar a morte sobre si mesma tantas vezes a ponto de transformá-la em sobrevida. A imaginação se esforça.
O gesto final, concreto, não explica o voo dos poemas de Ana C. e seu “gás de decolagem”, e nem os poemas preveem o suicídio. Ponto pacífico. Quando nos deparamos, porém, com as imagens poéticas do voo arriscado, do lançamento aéreo e ígneo na sua poesia, será possível pensar alguma confluência entre imagem vivida e imagem poética, que não reduza a leitura da poesia, mas a faça ecoar ainda mais? Arrisco sugerir que as imagens poéticas devem guiar o caminho: “O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca.”
Voos de fogo
Em Fragmentos de uma poética do fogo, obra póstuma de Gaston Bachelard, o filósofo parte justamente de imagens da rapidez ígnea para discutir o mito da fênix. Os pássaros de fogo, segundo Bachelard, não são imagens da substância do fogo, são imagens da rapidez, são traços de fogo. É, segundo o filósofo, o ato de consumir-se a si própria que faz da fênix uma figura da renovação. A poesia de Ana C. está repleta desses “traços de fogo”, modernos e motorizados, veículos que correm “pela capital”, “ao som de Revolution”. Sua escrita segue também, com frequência, o esquema imagético do combustível: o poema parece consumir-se para gerar energia e novas imagens em velocidade, mantendo-se no pico da imaginação. A recorrente poética do voo ígneo de Ana C. poderia mesmo ser uma poética da fênix, cujo dinamismo se dá justamente pela autocombustão.
Na figura da fênix, o risco de morte não é apenas um risco (no sentido duplo também do traço), mas uma certeza que, no entanto, representa renascimento. Diz Bachelard: “Ela é o símbolo da ressurreição universal: a lagarta se transforma em borboleta, todos os animais juntos renascem como erva, as carnes enterradas são apenas adubo. À Fênix o privilégio de renascer de si mesma e não das ‘cinzas’ dos outros.” Ao renovar-se pela autocombustão, o mito, segundo Bachelard, permite renovar também as imagens desgastadas da tradição. Nesse sentido, o trabalho de apropriação e transformação dos textos da tradição na poesia de Ana C. pode ser lido também como gesto de atear fogo à autoria (própria e alheia), incêndio renovador da poesia. O potencial autogerador de tal criatura única não representa, portanto, qualquer retorno à imagem do sujeito unívoco. Ao contrário, ler a poesia pelo viés do símbolo da fênix pode evidenciar o caráter provisório dessa e de outras categorias. Novamente, enquanto criatura única capaz de se autogerar, a fênix remete ao hermafroditismo, tornando a categoria do gênero provisória. A poesia aérea e dinâmica de Ana Cristina Cesar joga sempre com a mobilidade dessa categoria (“ser a Greta, o Garbo”, “posso ouvir a minha voz feminina, estou cansada de ser homem”), provocando seus leitores com a tentação de transformar-se tal qual a personagem Orlando, de Woolf: “hem? hem? quital ser Orlando na vida real?”
Fogo do final
O mito da fênix pode ser também uma chave para o problema do morto-vivo da literatura. Ou, ao menos, para dar lugar à nossa angústia diante dos poemas que restam depois da poeta suicida (ou da morte que resta nos poemas). A escrita de voo ígneo e explosivo de Ana Cristina Cesar sempre performa truques de mágica: faz desaparecer e reaparecer, morrer e reviver o objeto, o sujeito, a linguagem. Mesmo quando a morte aparece nos seus poemas pelo prisma escuro das águas mortais, é sempre acompanhada da resistência (barca adernando mas fixa), da recusa ao afogamento, ou, ainda mais próxima à fênix, da promessa de retorno: “daqui a dez anos estarei de volta”. É sempre enquanto fênix que a morte ronda a poesia de Ana C., pela simbólica do elemento que resiste a si mesmo, da pirotecnia explosiva que renova e faz retornar, reviver, pela recriação constante de si e da tradição poética.
O eterno retorno do fogo que “contém em si um contrafogo” (ainda Bachelard), ou seja, contém a sua própria resistência, está também em “fogo do final”, na despedida em corrida alucinante. Assim termina o último poema do último livro em vida, com a promessa do retorno, renascimento, repetição: “O terapêutico não se faz de inocente ou rogado. Responde e passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata. E de novo.” (grifo meu).
Talvez seja possível dar espaço à imagem poética do voo-queda se pudermos “acreditar um pouco, só um pouco…” na fantasia do retorno simbolizada pela fênix. Bachelard afirma que é preciso, na fenomenologia, “que se creia numa imagem inacreditável, sem, no entanto, se entregar à credulidade”. A “morte do autor” é um problema que pode ser recolocado não apenas por meio da recuperação (cautelosa, espera-se) da figura da autora (exigência que o feminismo anunciou, mas que ainda não sabemos plenamente equilibrar), mas como problema textual, poético, a ser explorado não como explicação do texto, mas como repercussão imagética, combustível de leitura. Recuperar a fênix do voo ígneo na poesia de Ana C. é uma forma de acreditar na sobrevida da poesia, tentando, porém, não matar a tragédia, a vida-morte da autora. Irresponsáveis pela vida, tomemos responsabilidade pela preservação da imaginação poética de Ana Cristina Cesar e do dinamismo produtivo, livre e móvel, das suas imagens.
Erica Martinelli Munhoz é doutora em Teoria Literária pela Unicamp. Concentrou sua pesquisa originalmente em Ana Cristina Cesar e hoje seu trabalho abarca outras poetas e a crítica feminista. Também escreve poesia, tendo publicado a plaquete Pânico de Terrorismo.