Poesia experimental portuguesa

Poesia experimental portuguesa
(António Nelos. “Ali é a nação, 80”)

 

Um não Movimento de um não Grupo sem Manifesto, a Poesia Experimental Portuguesa, que, entretanto, reuniu uma série de artistas para romper com a estagnação cultural pela qual passava Portugal nos anos 1960, chegou ao Brasil. A primeira exposição inteiramente dedicada à PoEx (como ficou conhecida a poesia experimental portuguesa) aconteceu em Brasília, DF, de outubro a dezembro de 2018, na Caixa Cultural, e ocupa agora, entre os meses de setembro e novembro de 2021, o Piso Flávio de Carvalho do Centro Cultural São Paulo, na capital paulista. Organizada pelos curadores Bruna Callegari, da Espaço Líquido, e Omar Khouri, a exposição trouxe, além da possibilidade de se ver algumas obras originais portuguesas pela primeira vez, um catálogo que se constitui como uma coletânea inédita da PoEx publicada no Brasil.

A PoEx surge em Portugal nos anos 1960, influenciada em alguma medida pela poesia concreta brasileira e os movimentos de vanguarda que eclodiam na Europa nos anos 1950, como “um caminho novo e certo que se tentava abrir na abulia cultural da noite (geradora de equívocos e incertezas) que Salazar impunha ao País”, nas palavras de E. M. de Melo e Castro, em texto de 1977, publicado no catálogo. Costuma ser considerada uma “vanguarda tardia” (fato contestado pelos poetas), devido ao isolamento de Portugal na época, que só se tornou possível graças às viagens internacionais realizadas pelos poetas portugueses e às cartas que trocavam com artistas em todo o mundo. António Aragão, um dos responsáveis pela concepção da poesia experimental e idealizador da primeira publicação conjunta dos poetas em Portugal resume a situação em uma declaração:

(…) inseri-me noutro contexto (…) onde se viviam determinadas vivências e se faziam determinadas experiências de tipo criativo, sobretudo França e Itália, e aí eu concebi uma nova maneira de recriar aquilo que tinha deixado para trás e que era uma tradição da poesia portuguesa. Quando passados tempos chego novamente a Portugal encontro tudo na mesma, estratificado, politicamente inacreditável, e então eu vi que a gente chega aqui e realmente sufoca. Dá-se um encontro ocasional com mais um poeta e começo a falar: – “É pá, isto aqui não se passa nada, estamos enquadrados numa situação política terrível que se reflecte na actividade criativa; temos de fazer qualquer coisa, isto não pode continuar assim.”

E assim a “coisa” se fez, e realmente enquanto “coisa”, se pensarmos na característica mais geral da poesia experimentalista: a exploração radical de todas as possibilidades da matéria verbal – som, visualidade, sentido, e até mesmo o gesto –, e não verbal, a fim de transformar o poema em objeto concreto, como se pode conferir nesta edição que traz impressões, pinturas, caligrafias, fotografias, objetos, transcrições de áudios e imagens de vídeos – obras limítrofes plástico-poéticas, todas elas, poemas.

Para lançar a primeira publicação conjunta da poesia experimental em Portugal, os Cadernos de Poesia Experimental, Aragão reuniu em torno dele outros poetas também interessados na nova poesia, como E.M. de Melo e Castro, um dos maiores expoentes da PoEx até hoje, em prática e teoria; e Ana Hatherly, poeta, artista plástica, cantora lírica e ainda pesquisadora, que além de toda a sua obra criativa foi a responsável pelo resgate da tradição experimental da literatura portuguesa barroca, constituindo um enorme acervo de obras de referência e estudos teóricos, que sempre acompanharam as publicações da PoEx.

Foram publicadas duas edições dos Cadernos, uma de 1964, outra de 1966, ambas custeadas e produzidas pelos próprios artistas, que se reuniam em Lisboa nas madrugadas para fazer a impressão nos porões de uma gráfica fechada pela PIDE, a Polícia Internacional de Defesa do Estado. Uma vez impressos, os cadernos eram escondidos em caixas de doces ou fundos falsos costurados nos carros, para depois serem distribuídos, também clandestinamente. Ao menos essa é a história contada pelos poetas, mas até hoje não há nada que se confirme.

Os Cadernos estão representados neste catálogo por algumas obras, como os clássicos poemas gráfico-caligramáticos de Salette Tavares – uma das primeiras mulheres a encabeçar um movimento de vanguarda –, com “aranha” (1964), no qual as letras esticam as pernas para formar a imagem de uma aranha que arranha a página; ou “Efes” (1964), em que o texto se arranja de forma a compor a imagem de três letras f, e se esparrama em aliterações ferrrruginosas.

Desse período inicial também ali está presente um trecho de “Poesia encontrada” (1964), de Aragão, que evoca outra vertente bastante explorada pela PoEx: o acaso. Duas das páginas desse poema são colagens de letras, palavras e frases de jornal, e o processo de leitura e construção do sentido é altamente centrado no leitor, que é convocado a encontrar a poesia “assente na própria realidade cotidiana” e recriá-la. É um poema tirado de uma notícia de jornal, procedimento conhecido nosso e que será depois aplicado pelos experimentalistas a diversos tipos de textos cotidianos (cartas comerciais, telegramas, etc.), tomando-os de empréstimo para intervir e criar novas realidades e sentidos. O próprio Aragão repetirá o procedimento em Metanemas (1981), no qual há colagens de imagens tiradas de jornais de todo o mundo, ao que se somam palavras e jogos de letras de militância, num poema de crítica social e denúncia da violência policial.

Ao observar a variedade das obras, nota-se que o experimentalismo português começa, portanto, na corrente das inovações poéticas inaugurada pela linha mallarmaica, de ocupação do espaço da página e exploração dos recursos tipográficos, passando pela via caligramática de Apollinaire, até encontrar o concretismo brasileiro e logo ultrapassar – se é que existem – todos os limites entre as artes, abrindo-se às experimentações plásticas, gráficas, sonoras, informáticas, performáticas, etc. Foi assim que veio o grande NÃO, proclamado por E. M. de Melo e Castro, “um resoluto NÃO ao triste ‘caldo cultural’ que nos era obrigatoriamente servido (sentimentalismo, discursivismo, patrioteirismo, idealismo nústico, vedetismo, oportunismo, brilhantismo, sebastianismo, provincianismo, carreirismo, etc., etc.)”. Ao dizer não a um status cultural imobilizado e a um discurso de poder imposto, os experimentalistas assumiam o compromisso com a criação de uma nova forma estética estreitamente vinculada a uma função sociológica.

Se a escrita é uma forma de institucionalização da sociedade e de suas leis, então subverter a escrita, como apontou Ana Hatherly, era contribuir para o desagregamento das estruturas ideológicas e psicológicas que fundamentavam a sociedade. Assim, o instrumento do experimentalismo era a língua: sobre ela que eles refletiam e nela trabalhavam. Propunham, então, a desconstrução do discurso político “salazarento”, como o chamavam, via desconstrução do discurso linguístico, isto é, a desconstrução de um tipo de linguagem de poder instituído – uma forma de vida, como diria Wittgenstein.

Essa desmontagem-remontagem da escrita se expande em diversos níveis. Dez anos depois do surgimento da PoEx, Silvestre Pestana, no emblemático “Povo Novo”, cuja primeira versão data de 1975 – um ano depois da Revolução de Abril –, deixa a página para utilizar o próprio corpo como suporte e, com a própria coisa (o ovo), criar o poema com o jogo de palavras: (p/n)ovo. Pestana, que já havia explodido a bomba H da poesia, em seu poema-ato atômico, “construir o poema/destruir o objecto” (1969), publicado na Revista Hidra 2, realiza também o primeiro trabalho de videoarte feito em Portugal, em 1979: nove obras que nunca chegaram a ser conhecidas, pois foram apagadas para simples reutilização da fita em que fora regravada para outros fins. Perderam-se.

“povo novo”, Silvestre Pestana, 1975

.Inserido já nesse universo da incorporação da tecnologia às artes graças ao período em que viveu exilado na Suécia e na Inglaterra, de 1969 a 1974, Pestana foi também um dos precursores da arte digital, tendo composto em 1981 a série “Computer Poems”, na qual o processo de composição no computador é o próprio texto poético, derivado de um programa/código. Este poema é uma recriação digital de “povo novo”, tema que se mantém na poética engajada de Pestana, e que ainda hoje se reinventa de acordo com a tecnologia, como em “Cor Dor”, de 2018, GIF-poema-animado também presente no catálogo, feito em referência à situação política do Brasil atual.

A videoarte, no caso ora chamada videopoesia, foi também bastante explorada pela PoEx. Outro exemplo emblemático são os Fractopoemas, de E. M. de Melo e Castro, dos quais constam alguns registros no catálogo: imagens de fractais aleatórias geradas por algoritmos matemáticos e RodaLume (1968), videopoema que aparece transcrito quadro a quadro, uma combinação de poesia-sonora-visual, num integrar e desintegrar-se de combinações geométrico-alfabéticas até encontrar a chave que abre o foco da lente: fogo!

Em outra direção, a PoEx também gerou os principais artistas-performers portugueses, sobretudo com Fernando Aguiar, cujo trabalho plástico-poético-performático é reconhecido internacionalmente. Uma curiosidade: além de multiartista e depositário do maior acervo da Poesia Experimental Portuguesa (e internacional), com milhares de obras e documentos, Aguiar é o autor do que talvez seja o “maior soneto do mundo”, com 110 metros de comprimento por 36 metros de largura, um poema plantado num terreno em Matosinhos, cidade de Portugal. Trata-se de um “soneto ecológico”, projeto que envolveu 70 árvores distribuídas em 14 filas, com 5 árvores cada (4 + 4 + 3 + 3 = estrutura do soneto), que rimam conforme a espécie de árvore plantada. Mais uma vez, é o experimentalismo, atuando para além da página, convocado com função social, para chamar a atenção para o problema mundial do meio ambiente.

Como se pode ver, não há uma unidade formal, nem um grupo formado, a que se possa reduzir a poesia experimental – que é arte combinatória, arte cinética, arte postal, poesia visual, happenings, poesia sonora, performance, serigrafia, tipografia, eletrografia, fotografia, caligrafia, entre muitas outras coisas, de poetas que são, tal como queriam se fazer conhecer, poietés, do grego: “fazedores”. O apanhado de obras reproduzidas no catálogo dá uma ideia disso, justificando sua importância como primeiro registro impresso exclusivo da PoEx publicado no Brasil, de um lado; e, de outro, guia para descoberta do amplo universo da poesia experimental portuguesa, que se encontra em boa parte digitalizada e disponível on-line no site po-ex.net, projeto do poeta e estudioso Rui Torres.

Além dos artistas citados acima, estão presentes no catálogo obras de Abílio-José Santos, Américo Rodrigues, António Barros, António Dantas, António Nelos, César Figueiredo, Emerenciano, Gabriel Rui Silva, Jorge dos Reis, José-Alberto Marques, Nuno M. Cardoso, Rui Torres; além de capas e trechos de revistas e coleções. Essa composição faz da publicação um documento importante para a difusão da PoEx, ainda mais porque a obra está disponível para visualização integral gratuita no site da Espaço Líquido.

Não bastasse a recolha de poemas, apresentados em boas reproduções em cores, a obra traz uma apresentação dos organizadores, Bruna Callegari e Rafael Buosi; um texto sobre a PoEx, do poeta e professor Omar Khouri; a reprodução do texto “A poesia experimental portuguesa”, de E. M. de Melo e Castro, escrito para a XIV Bienal de São Paulo, em 1977, e a transcrição da conversa registrada em vídeo entre os poetas portugueses nessa mesma ocasião; um texto de Ana Hatherly, de 1987, que traça um panorama geral e o contexto político e linguístico da poesia experimental; e uma Breve Cronologia do Experimentalismo Poético em Portugal (escrito exclusivamente para o volume), de Fernando Aguiar, que consiste em uma cronologia detalhada do movimento-acontecimento, desde seu surgimento nos anos 1960 até o presente, recontando a associação de novos poetas e a abertura da PoEx à poesia visual em geral, na década de 1980. Ao final, a obra traz uma minibiografia de todos os artistas participantes e também a tradução dos textos em inglês.

Pode-se afirmar hoje que os catálogos têm sido uma das principais formas de difusão e manutenção da poesia experimental e visual pelo mundo. Muitos poetas experimentais têm parte de suas obras conservada graças a eles, como Timm Ulrichs e a poesia concreta suíça-alemã em geral, a poesia visiva italiana de Spatola e Lora-Totino, e até mesmo o poeta francês mais vendido na França, Guillaume Apollinaire, tem algumas de suas obras acessíveis apenas pelo catálogo das exposições realizadas sobre ele. Muitas vezes, é o catálogo que permite que essas obras limítrofes, plástico-poéticas, possam ser registradas e difundidas, sobretudo quando consistem de exemplares únicos ou edições limitadíssimas, como é comum na poesia experimental. Dessa forma, este catálogo cumpre sua função, de registro e memória de uma outra forma de vida inventada num momento crítico para e por um povo, que se fez novo.

Juliana Di Fiori Pondian é doutora em linguística pela Universidade de São Paulo, semioticista especialista em poesia experimental e está organizando, junto com Julio Mendonça, a “Jornada Internacional de Poesia Visual”, realizada pela Casa das Rosas, USP e Unesp.


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