Poesia em pleno vigor

Poesia em pleno vigor


Alcides Villaça

A cada novo livro, Ferreira Gullar vai consolidando uma poesia movida pela capacidade de espanto, disposição para o combate e vocação para as interrogações. O espanto advém, em parte, da beleza do mundo, de tudo que sabe nascer e florescer nas manifestações da vida, da luz, convocando os sentidos do ser para a percepção mais intensa de seu corpo e do corpo das coisas; mas também provém do absurdo do ser e do mundo: tudo que é belo apodrece e morre, deixando a sensação da fulguração inútil. Também o combate se duplica: entra na ordem política do mundo, para confrontar a injustiça e a opressão sociais, como também investiga no fundo das palavras o poder de revelação da poesia, sua eficácia na luta. E as interrogações multiplicam-se nos poemas porque o sentimento primitivo de um grande absurdo (do maior espanto) ameaça instalar-se como definitivo – e as perguntas nascem como que tomando satisfações dos propósitos da ordem e da desordem do cosmo.

Nessas linhas gerais, busco reconhecer o poeta que nunca desistiu daquela ampla luta corporal do livro da década de 1950, quando deu início aos espantos, aos combates, às interrogações. A luta expandiu-se e revelou-se existencial, política e metafísica, variando a intensidade com que cada ímpeto desses preponderou ao longo da vida. Desde algum tempo Gullar passou a orquestrar com apuro essa divisão resumida de forma tão bela no poema “Traduzir-se”: “Uma parte de mim / é todo mundo; / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo”), divisão que leva à pergunta: “Traduzir uma parte / na outra parte / – que é uma questão / de vida ou morte – / será arte?”. Entre a experiência prosaica do corpo cotidiano e o abismo cósmico, o poeta investiga se a arte é uma instância de tensa conciliação, de tradução, de participação: “uma parte / na outra parte”.

Obsessiva inquietação cósmica
Pois essas partes gullarianas estão de volta no título e no corpo de seu novo livro: Em Alguma Parte Alguma. O lugar definido e ocupado na vida e na linguagem inclui o lugar nenhum da morte e do silêncio: repõe-se, de outro modo, a perturbação do jovem poeta, quando via a luz do mundo irromper para nada, e para o nada cantar soberbamente o galo no alto da cerca. Em seu novo livro, uma corola “apenas fulge / em alguma parte alguma / da vida”, e o poeta considera o tempo em que, depois de tudo, ele estará “sorrindo ainda naquela nesga / azul celeste / pouco antes de dissipar-me para sempre”. O espanto continua, como continua a luta para sondar o absurdo de um corpo sensível aos fascínios que supõem (paradigma íntimo?) o fermentar da morte. De fato, nossa comoção diante das belezas mais altas está no impulso que elas prometem para além do limite da morte, sem o qual, no entanto, não saberiam ser tão altas. Neste livro, exacerbam-se as perguntas que processam o protocolo mortal, protocolo cósmico que baixa sobre a areia ensolarada da praia e faz o poeta desejar para si o seu duplo, “livre da morte / e do morto”, que “pelas ruas da cidade / vejo-o passar / com meu rosto”. Não há o que duvidar: o poeta sabe que há nele “um outro / que é mais Gullar do que eu”: esse Gullar que muitos continuarão ouvindo e lendo pelo tempo afora. Lembro de um evento público em que o poeta admitiu buscar o poema pela necessidade de ter outro corpo.

A particularidade de seu novo livro parece-me estar na obsessão crescente da inquietação cósmica, da interrogação das esferas, cuja contrapartida lírica acaba por ser a reafir-mação, igualmente obsessiva, do cotidiano, do espaço daquele “menor” bandeiriano carregado de poesia. Agora a “tradução” artística de Gullar convoca, na plena maturação, os sentidos da poesia como sortilégio, que dribla a limitação das palavras pelo recurso ao mito (“se a fruta / não cheira / no poema / nem do galo / nele / o cantar se ouve / pode o leitor / ouvir / (e ouve) outro galo cantar / noutro quintal / que houve”), como também recorre às palavras para reconhecer no próprio corpo, ironicamente, a resistência e a duração inesperadas: “a parte mais durável de mim / são os ossos / e a mais dura também”. Há um diálogo crescente, ao longo dos poemas, entre a corporeidade da pessoa, do mundo do poeta – sua cidade, seus amigos, seus artistas, seus amores – e a instância (absurda?) em que tudo se dilui, a despeito da força do viver e da poesia. Do já antológico poema “Rainer Maria Rilke e a morte”, podemos reencaminhar a Ferreira Gullar a pergunta (com resposta inclusa) que ele dirigiu a Rilke: “E quem dirá / por ele / o que jamais sem ele será dito / e jamais se saberá?”.

Em Alguma Parte Alguma
Ferreira Gullar
José Olympio
144 págs. – R$ 30

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