A poética indecidível de Emily Dickinson

A poética indecidível de Emily Dickinson

 

 

Mais ou menos à época em que ainda redige as “Cartas ao Mestre” (1862), Emily Dickinson escreve cartas similares a T.W. Higginson, pedindo que a aceite como sua “aluna”, enviando-lhe uma quantia surpreendente de poemas, muitos dos quais hoje são clássicos escolares na língua inglesa. Ora, Higginson era, então, um crítico literário de renome, e, como abolicionista e progressista, costumava abrir espaço para a publicação de poetas mulheres em importantes revistas e jornais. No entanto, apesar de sempre responder às cartas de Dickinson, Higginson jamais moveu uma palha para publicar seus poemas. Pior do que isso, usou ideias de Dickinson para publicar, em abril de 1862, na Atlantic Monthly, uma “Carta a um Jovem Colaborador”, na qual não se poupava a dar conselhos sobre como deveriam vir os versos que ele gentilmente acolheria! Cinco anos após a morte de Dickinson, quando seu nome já é uma lenda, Higginson confessa seu arrependimento, e se transforma, oportunamente, no primeiro editor de sua poesia (junto com Mabel Loomis Todd, em 1890).

Do mesmo modo, Samuel Bowles, editor do Springfield Republican (um dos jornais de maior circulação na costa leste dos EUA), recebeu numerosas cartas e poemas de Dickinson, e talvez a nenhum outro ela tenha jogado tantas indiretas quanto à sua vontade de vê-los publicados. É verdade que Bowles acabou publicando alguns, mas nunca os que ela enviou. Publicou-os, e de forma anônima, quando enviados por Susan, a amiga, e posteriormente cunhada, Emily Dickinson.

Ao mesmo tempo em que ia sofrendo essas recusas, Dickinson ia enviando mais e mais cartas com poemas a vários parentes, amigos a amigas. Muito provavelmente, tais poemas eram transcritos em outras cartas, que circulavam, e, através desse correio, se tornavam conhecidos e apreciados. Não é à toa que a mais renomada poeta contemporânea de Dickinson, Helen Hunt Jackson, a convidaria a enviar poemas para uma antologia que estava organizando, por volta de 1878. A princípio, Dickinson hesita e recusa, mas acaba enviando poemas, depois que Jackson criticou a sua indecisão: “Você é uma grande poeta – e é um erro para o tempo no qual que você está vivendo, que não cante mais alto”.  Mas a verdade é que ela cantava, embora não desejasse o “mais alto”. Num poema de 1865 – “I was a Phebe – nothing more –” [F1009; M460] – Dickinson se compara a um pequeno pássaro cinzento, nativo e habitante da costa leste dos EUA, a phebe (Sayornis phoebe). Seu canto monótono e delicado, e seu nome é também associado a Febe, deusa grega (na verdade titânide associada à lua), que regia os oráculos:

I was a Phebe – nothing more –
A Phebe – nothing less –
The little note that others dropt
I fitted into place –

I dwelt too low that any seek –
Too shy, that any blame –
A Phebe makes a little print
Upon the Floors of Fame –

 

Fui uma Phebe – nada mais –
Uma Phebe – nada menos –
A notinha que outros largavam
Eu arranjava –

Escondida, ninguém nota –
Tímida, ninguém chama –
Uma Phebe nem deixa marca
Na Calçada da Fama – 

Essa diminuição da sua persona se associa com as suas recusas e com a sua “indecisão” quanto à forma final de seus textos. A verdade é que essas atitudes já vinham se formulando no espírito de Dickinson desde a própria elaboração dos fascículos. Daí o número crescente de variantes dos poemas, e de alternativas que ela vai acrescentando à margem ou abaixo dos poemas, mesmo quando passados à limpo em cópias. Num poema como “A little madness in the Spring” (F1356, M686), a quantidade de alternativas a um dos versos se transforma numa espécie de abscesso poético:

A little madness in the Spring
Is wholesome even for the King
But God be with the Clown
Who ponders this Tremendous scene
This sudden legacy of Green
As if it were his own –

line 5: [This] gay . bright . quick . whole . swift – . fleet . sweet . whole [legacy of Green] [This] fair Apocalypse of Green – . This whole Apocalypse of Green – . [This whole]
Experience – . Astonishment – . Periphery – . Experiment . wild Experiment [of Green]

 

Uma folia na Primavera
Mesmo a um Rei regenera
Mas Deus proteja o Bobo
Que essa Tremenda cena pondera –
Esse súbito Legado de Verde –
Como se ele é que fosse o dono –

v. 5 [Esse] alegre . brilhante . súbito . inteiro . rápido – . fugidio . doce . inteiro [legado de Verde]
[Esse] belo Apocalipse de Verde – . Esse inteiro Apocalipse de Verde – . [Essa inteira] Experiência – . Esse Espanto – . Periferia – Experimento – selvagem Experimento [de Verde]

 

Por outro lado, os seus escritos vão adquirindo cada vez mais uma propensão para o “indecidível” e “aberto”, sobretudo a partir de 1870, como demonstrou Marta Werner na sua edição dos “open folios” (e mais recentemente, dos “envelope poems”). Werner chega inclusive a destacar o caráter de visualidade dos poemas de Dickinson, sugerindo uma ruptura com o verso e a metrificação em prol de uma forma que se valeria do jogo entre a escrita e o espaço da página. De fato, as diferenças entre os poemas dos fascículos, mais estruturados formalmente em torno das noções de verso e estrofe, e os últimos poemas é marcante. Sobretudo quando olhamos para os manuscritos. Isso gera todo um debate, ainda em curso, sobre se a poesia de Dickinson seria mais “visual” ou “sonora”, debate que define opções de edição de seus manuscritos.

Nesse sentido, se tomarmos o famoso poema “A Route of Evanescence” (c. 1879, F1489, M619), encontraremos sete versões (uma das quais, enviada a Helen H. Jackson), das quais restam cinco cópias manuscritas e duas transcrições. Nas referências que Dickinson faz aos poemas em suas cartas, aparece constantemente o termo “Humming Bird”, o que levou as primeiras edições a colocarem o título ao poema (“Beija-Flor”), embora Dickinson jamais tenha usado títulos para seus poemas (como se vê nos fascículos). Na carta enviada a Jackson, em resposta ao pedido dessa de escrever sobre o pássaro papa-figos (“oriole”), lemos, em transcrição diplomática, a versão F1489B, que inclui um fragmento da carta em que o poema aparece:

[RECTO]

 

Dear Friend,
…………….To the Oriole
you suggested
I add a Humming
Bird and hope
they are not Untrue –

A Route of
Evanescence
With a revolving
Wheel
A Resonance of
Emerald
A Rush of
Cochineal

 

[FRENTE]

 

Cara amiga,
…………….Ao Papa-Figos que você sugeriu
Eu acrescento um Beija
Flor e espero
Que eles são sejam Inverdades –

Uma Rota de
Evanescência
Com uma roda
giratória
Um Ressoar de
Esmeralda
Um Ruflo de
Cochonilha

 

 [VERSO]

 

And every
Blossom on the
Bush
Adjusts it’s
tumbled Head –
The Mail from
Tunis, probably,
An easy Morning’s
Ride –

 

[VERSO]

 

E cada
Flor em seu
Arbusto
Ajusta a
Cabeça franzina –
Quiçá, vem
Carta de Túnis
A boa Viagem
Matutina –

 

 

Em que pese essa forma gráfica do manuscrito, todos os editores de Dickinson (Higginson, Mabel Todd, Johnson e Franklin) entenderam que a forma gráfica era uma contingência do espaço do papel, e que o poema deveria ser devolvido à sua forma métrica original, levando em consideração a predominância do common metre em sua poesia, e o uso de maiúsculas para iniciar um novo verso. Assim, na edição de Cristanne Miller, lê-se:

A Route of Evanescence
With a delusive wheel                 [a] dissembling. renewing. dissolving wheel –A Resonance of Emerald
A Rush of Cochineal
And every Blossom on the Bush
Adjusts it’s tumbled Head –
The Mail from Tunis – probably –
An easy morning’s ride –

 

Uma Rota de Evanescência
Com uma roda ilusória –          [roda] dissimulada –. renovada – . dissoluta –Um Ressoar de Esmeralda
Um Ruflo de Cochonilha
E cada Flor em seu Arbusto
Ajusta a Cabeça franzina –
Quiçá – vem Carta de Túnis –
A boa viagem matutina –

 

Essa é a única das sete versões em que o segundo verso difere: em todos os outras edições (inclusive as de Johnson e de Franklin), lê-se “With a revolving Wheel” (“uma roda a rodopiar”, na tradução de Aíla de Oliveira Gomes). No manuscrito “A”, transcrito por Miller, a opção por um adjetivo mais abstrato – “delusive” – vai justamente na contramão de uma associação direta com o pássaro, que aparece nos manuscritos seguintes, e que encanta a maioria dos críticos, que veem no poema todo uma imageria relacionada ao pássaro. Na verdade, tanto quanto o pássaro, é importante pensar o que significam a “cochonilha” e “Túnis” aqui. Como procuro mostrar no meu artigo “Imaginary Geography: Dickinson Latina” (publicado em Oxford Handbook Emily Dickinson), sobre a “geografia imaginária” de Dickinson, o beija-flor talvez seja apenas mais um elemento na paleta de cores com que Dickinson descreve as cores da manhã neste poema, passando pelo esmeralda, pelo carmim (extraído da cochonilha mexicana) e pelo púrpura (extraído desde a antiguidade do múrex tunisiano). Em “The pedigree of Honey” (F1650, J1627), a poeta afirma que a abelha e a borboleta não estão interessadas no “pedigree do Mel”, nem na “linhagem do Êxtase”, mas no caminho que leva direto a Trípoli, outra cidade fenícia antiga que produzia o corante púrpura usada na toga picta (e também na toga praetexta) dos césares, e que se tornou símbolo de poder e esplendor (aqui associado às cores rubras do amanhecer e do entardecer).  É possível que ela pense simultaneamente nas cores da manhã e no irisado das penas do beija-flor, mas é bem mais interessante pensar que o poema nos conduza a essa zona de indeterminação em que as coisas são evanescentes, em que as sensações se confundem. Por isso, a importância da sinestesia (“Resonance of Emerald”, “Rush of Cochineal”), que faz de Dickinson uma contemporânea de Rimbaud e dos simbolistas franceses – o que explica o valor que lhe devotaram os poetas imagistas, influenciados pelos franceses.  Além do mais, na cópia retida por Dickinson (i. é, todas as demais cópias foram enviadas em cartas), que é a que Miller estampa em sua edição, Dickinson anota três “alternativas”, que tornam a imagem menos óbvia, para o verso 2: “dissembling Wheel”; “renewing Wheel”; “dissolving Wheel”.

 

POEMAS INÉDITOS DO VOLUME 2

 

Finding is the first Act
The second, loss,
Third, Expedition for
The “Golden Fleece”

Fourth, no Discovery —
Fifth, no Crew —
Finally, no Golden Fleece —
Jason,  sham,  too –

 

Descobrir é o primeiro Ato
O segundo, perder,
O Terceiro, Jornada
ao “Tosão de Ouro”

O Quarto, sem Descoberta –
O Quinto, sem Tripulação –
Enfim, sem Tosão de Ouro –
E, vergonha, sem Jasão –


Faith — is the Pierless Bridge
Supporting what We see
Unto the Scene that We do not —
Too slender for the eye

It bears the Soul as bold
As it were rocked in Steel
With Arms of Steel at either side —
It joins — behind the Veil

To what, could We presume
The Bridge would cease to be
To Our far, vacillating Feet
A first Necessity.

 

 

A Fé – é Ponte Sem Pilar
Que sustenta o que A Gente vê
Até a Cena invisível –
Aos nossos olhos, tão tênue –

Suporta a Alma audaz
Como se, esteada em Aço
Com braços de Aço nas pontas –
Levando – além do Véu – ao passo

Em que, A Gente presume,
A ponte já não carece de
Ser, a vacilantes Pés –
Primeira Necessidade –


Said Death to Passion
“Give of thine an Acre unto me.”
Said Passion, through contracting Breaths
“A Thousand Times Thee Nay.”

Bore Death from Passion
All His East
He — sovereign as the Sun
Resituated in the West
And the Debate was done.

 

Disse a Morte à Paixão.
“Concedei-me, dos teus, um Acre”,
Disse a Paixão, ofegante
“Mil vezes, digo Não.”

Retirou a Morte da Paixão
Todo o seu Leste
Esta – como um Sol soberano
Instalou-se no Oeste
E o Debate acabou –


Crumbling is not an instant’s Act
A fundamental pause
Dilapidation’s processes
Are organized Decays.

Tis first a Cobweb on the Soul
A Cuticle of Dust
A Borer in the Axis
An Elemental Rust —

Ruin is formal — Devil’s work
Consecutive and slow —
Fail in an instant, no man did
Slipping — is Crash’s law.

 

Desabar não é Ato instantâneo
Parada fundamental
Processos de Dilapidação
São Quedas organizadas –

Primeiro a Aranha na Alma
A Cutícula com Poeira
O Cupim furando o Eixo
A Ferrugem na correia –

A Ruína é formal – do Demo
Consecutiva, em intervalos –
Fracasso súbito, não há
Desastre vige – é nos resvalos –

 

Adalberto Müller é professor da UFF, escritor e tradutor. Foi pesquisador visitante na Universidade de Münster (WWU) e no Instituto Leibniz/ZfL Berlin. O presente texto faz parte do prefácio da obra Poesia Completa. Volume II:  Folhas Soltas & Perdidas, com tradução, notas e prefácio de Adalberto Müller, a ser lançado neste ano pela Editora da UnB/Editora Unicamp.

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