Poemas da oficina de Tarso de Melo

Poemas da oficina de Tarso de Melo

 

Os poemas aqui reunidos foram escritos durante a oficina de poesia realizada no Espaço CULT nas noites de terça e quinta entre 14 de julho e 6 de agosto de 2020, sob minha coordenação. A cada encontro, apresentei aspectos da obra de um poeta (Paulo Leminski, Orides Fontela, Manuel António Pina, Ana Cristina Cesar, Mano Brown, Wislawa Szymborska e Carlos Drummond de Andrade), li seus poemas, comentei e, com tudo isso, tentei demonstrar o que eles nos ensinam sobre escrever poesia – a deles, claro, e a nossa.

Já faz muitos anos que venho tendo – e criando – oportunidades de dar oficinas de poesia. Algum tempo atrás fui convidado a falar sobre essa experiência e dividi o depoimento em duas partes, apenas para dedicar a primeira a dizer “o que não é uma oficina de poesia”. A primeira parte, sim, porque, a meu ver, o mais importante é deixar logo claro o que eu considero que não se deve buscar, muito menos prometer, numa oficina de poesia. Em resumo, uma oficina de poesia não é um curso no sentido tradicional (idiomas, corte & costura ou formação de motoristas, por exemplo), em que alguém entra sem saber nada e, ao final, sai com uma habilidade nova e um certificado embaixo do braço.

A oficina de poesia pode até ter um conteúdo definido, mas a relação de cada participante com aquele conteúdo, em razão do seu próprio repertório e do momento em que vive aquela experiência (ainda que isso valha, no geral, para toda verdadeira experiência de ensino-aprendizagem), é sempre única e, mais ainda, imprevisível e inestimável. Não há uma lâmina precisa cortando o que é certo e o que é errado. Não há notas. Não há aprovados e reprovados.

O que se pode esperar de uma oficina de poesia é, portanto, poemas – mas sabemos que poemas são bichos arredios, que às vezes demoram anos para sair de sua toca escura. O poema provocado pela oficina de 2020 pode nascer apenas em 2021. Ou 2030… Como lidar com isso? Penso, então, que o melhor que uma oficina de poesia pode oferecer é um encontro intenso com a forma como os poemas revelam um pensamento sobre a poesia. É isso que tento fazer, como forma de estímulo e provocação às palavras de cada um dos participantes, que, claro, aprendem mais sobre poesia, mas partem para uma jornada que é sempre solitária em busca de algo que é apenas seu – mas desconhece.

Na parte coletiva dessa jornada, no entanto, lembramos a lição de Leminski: o poema é uma espécie de reação à provocação que vem de fora, mas ele só virá, com toda sua potência, se o poeta se dedicar, anos a fio, a um longo e complexo treino, como uma espécie de condicionamento para o poema, que exige muito estudo, muita leitura, muita escrita e reescrita, muita reflexão, muita vida. Ou nas palavras do poeta: “um bom poema/ leva anos/ cinco jogando bola,/ mais cinco estudando sânscrito,/ seis carregando pedra,/ nove namorando a vizinha,/ sete levando porrada,/ quatro andando sozinho,/ três mudando de cidade,/ dez trocando de assunto,/ uma eternidade, eu e você,/ caminhando junto”.

Costumo também citar muito outra grande lição sobre poesia: o desesperador “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade. Desesperador, claro, porque um poema cujo título promete algo sobre a procura da poesia, escrito por alguém que, como pouquíssimos, a encontrou, dedica a maior dos seus versos a dizer NÃO – “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia” –, fechando todas as portas pelas quais alguém poderia querer entrar facilmente no “reino das palavras”. Não, não e não, é o que diz Drummond.

É diante desse tensionamento extremo – é impossível escrever poesia, mas é preciso escrever poesia – que o poeta se encontra a cada verso e, também, antes e depois de cada poema. Espero que nosso mergulho nos versos desses poetas que dedicaram (aliás, dedicam, porque Mano Brown está vivíssimo!) suas vidas a vencer esse impasse tenha mostrado a importância de colocar toda sua energia nessa tarefa aparentemente tão “secundária”, mas que se revela fundamental quando nos encontramos – nos completamos – nos poemas alheios e, mais ainda, quando sabemos que alguém se encontrou nos nossos.

Certamente, muitos leitores se encontrarão nos poemas aqui reunidos, que registram muito da experiência da oficina, mas a transcendem, porque trazem elementos – do país, da época, da experiência individual – que só mesmo cada um dos participantes sabe onde buscar. E todos buscaram. Aliás, não posso deixar de notar que a oficina ocorreu durante um dos momentos mais difíceis que nossa geração já atravessou, enfrentando uma pandemia que, durante nossos encontros, já havia vitimado mais de 100 mil brasileiros. Esses poetas, espalhados por todo o Brasil, conectados pela internet, escreveram à sombra de um noticiário devastador e atravessados pelas angústias da quarentena.

Minha função, aqui, foi apenas escolher um poema de cada um dos participantes que toparam essa outra aventura que é a publicação. E o fiz com muita alegria. Ler e escrever, sem dúvida, são as tarefas principais dos poetas, mas a publicação abre a janela para que outros tantos, neste e noutros tempos, possam também participar dessa conversa entre versos – lendo, multiplicando.

Foi a primeira oficina que dei em ambiente virtual, sem poder olhar de perto a forma como cada um, cada uma reagia à pancada dos poemas lidos, ouvidos, comentados. Uma oficina sem o som das ideias girando no céu da sala, sem os sorrisos, sem os olhos esbugalhados. Mas gostei muito, muito mesmo. Foi incrível saber que aqueles poemas estavam ligando, por um tempinho ao menos, pessoas de vários cantos do país. E as palavras saltando no chat, no e-mail, no zap, foram também boas companhias nessa travessia. Tenho certeza de que, toda vez que voltar a estes poemas, eles me levarão de volta para aquelas noites, suas palavras, seus silêncios e seus voos. E será lindo e forte – de novo e de novo. Muito obrigado a todos – sigamos por perto!

TARSO DE MELO (Santo André, 1976) é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. É autor dos seguintes livros de poemas: A lapso (1999), Carbono (2002), Planos de fuga e outros poemas (2005), Lugar algum (2007), Exames de rotina (2008) e Caderno inquieto (2012), reunidos no volume Poemas 1999-2014 (2015); Íntimo desabrigo (2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima, 2018), Alguns rastros (2018) e Rastros (019). E organizou diversas obras coletivas e antologias.

SEGUNDA RODADA: a partir de 20/10, começa uma nova turma da oficina, com outros autores e ideias. Inscrições abertas aqui.

 

***

POETAS

 

Alice Osti (Rio de Janeiro/RJ)

Ana Carolina de Carvalho (Brasília/DF)

Ana Cláudia Romano Ribeiro (Campinas/SP)

Andrea B. Azevedo (São Paulo/SP)

Andreia Cunha (Goiânia/GO)

Axé Silva (São Paulo/SP)

Bruno Carrara (São Paulo/SP)

Bruno Ramalho (Brasília/DF)

Carla Oliveira (Duque de Caxias/RJ)

Carlos Luiz da Silva Souza Filho (Niterói/RJ)

Carolina Delboni (São Paulo/SP)

Carolina Hidalgo Castelani (São Paulo/SP)

Claudia Saldanha (Salvador/BA)

Constança Guimarães (Belo Horizonte/MG)

Cris Ventura (São Paulo/SP)

Daniela Arêde (Belém/PA)

Deborah Brum (São Paulo/SP)

Denis Zanin (São Paulo/SP)

Denise Magalhães (Salvador/BA)

Fabiana Pacola (Campinas/SP)

Felipe Secondo Perin (Santo André/SP)

Giovanna Malvar (Salvador/BA)

Gustavo Sada (Porto Alegre/RS)

Jacqueline Gama (Salvador/BA)

Joana Biondi (São José dos Campos/SP)

João Góes (São Paulo/SP)

João Miola (Porto Alegre/RS)

Joelma Felix Brandão (Salvador/BA)

Julia Pantin (Indaiatuba/SP)

Juliana Ramos (Osasco/SP)

Kathlen Felix (Brasília/DF)

Katia Marchese (Campinas/SP)

Keissy Carvelli (Guarapuava/PR)

Mariana Cobuci (São Paulo/SP)

Mariana Moreira de Menezes (Rio de Janeiro/RJ)

Maurício Rodrigues (São Paulo/SP)

Maurício Simionato (Campinas/SP)

Mayara Blasi (Maringá/PR)

Michaela v. Schmaedel (São Paulo/SP)

Monique Revillion (São Leopoldo/RS)

Paulo Nonato (Guarulhos/SP)

Rogério Bernardes (Brasília/DF)

Rosa Acassia Luizari (Rio Claro/SP)

Rosa Gonçalves (Vilhena/RO)

Rosane Preciosa (Juiz de Fora/MG)

Sheila Dálio (São Manuel/SP)

Stephan Chang (Porto Alegre/RS)

Sumaya Lima (São Paulo/SP)

Talita Castro (Recife/PE)

Thiago E (Teresina/PI)

Thiago Lucali (Bauru/SP)

Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG)

Tina Zani (Campinas/SP)

Vanessa Corrêa (Lins/SP)

Victor Brum Calaça (São Paulo/SP)

William Feitosa (Teresina/PI)

 

***

REDEMOINHO DE ILUSÕES

Alice Osti

Andei às cegas, por travessias turvas, como sonhos interrompidos.
O mar de tormentos era um cabo de guerra entre a vida e a morte.
Com a razão à deriva, o coração era o próprio despenhadeiro.

Até que a dor se tornou tão neutra quanto paredes brancas.
Afinal, a melancolia constituiu-me ou eu a constituí?
Eu sou a forma concreta, ela é o conteúdo abstrato
como um bebê que se reconhece no espelho e ri.

 

***

Ana Carolina de Carvalho

A lua me convidou para brincar,
escondendo-se entre as árvores,
pique-esconde de menina travessa,
menina da cara redonda, amarela,
hora aqui, hora acolá.

A lua me convidou para dançar no meio da madrugada,
sapecando por aí, bebendo alegria,
vomitando tristezas,
soltando balões de ar,
amarelos como o meu sorriso.

A lua me convidou para amar,
Brilhando plena, iluminando a escuridão,
Fazendo eu me sentir criança novamente,
Onde o presente é a definição do eterno.

Ah lua!!! Brinca comigo,
– Sorri para mim.
Deixa o tempo correr, deixa o clima mudar,
Deixa as tristezas passarem…
– Vem lua!!! Vem brincar comigo.

 

***

ADVENTO

Ana Cláudia Romano Ribeiro 

para Deise

 

antes de chegar percebo o pulso
o que vai dividir meu mar
e transformar água salgada em rio

abrimos juntas a porta
sua presença, presença minha
em sendo o que se é

podemos enxergar
podemos não partir
montar tenda, plantar árvore

vontades lembranças futuros
mais da metade já passou
ouro agora é tempo
café forte de cada manhã

 

 ***

NOTA FINAL

Andrea B. Azevedo

 

no asfalto quente
buzinas e gritos fluem
para o coração paulistano
mas nós não
nossos rostos derretem e
as bocas secas cantam
a famigerada fome
dos nossos filhos
enquanto as mãos vermelhas
estacam ocas
no comício final
aquele em que você não discursou

bandeiras a meio mastro
você massa de borracha
mirando às cinzas e
ao pó de estrelas
abandonando nossos jardins
com translúcidas florezinhas
permanecemos com sua enxada
e planos quinquenais por escrever
nossa ciranda de mulheres
girando no vão
entre as sombras de araçá-rosa
buscando o salto vital

coda caliente pairando no ar

 

***

DIÁRIO 1

Andreia Cunha

À Ana C.

 

03 de abril

Não achei a chave, impregnada de sono, minhas pálpebras se colam. Ismena remexe minhas coisas, deita-se no sofá, pernas dobradas. Mexe as linhas da manta. Me chama de mau caráter. Dou meu melhor sorriso.

 

04 de abril

Ismena é qualquer coisa, sem graça. Oto chega com a papelada do divórcio. Não gosto de Oto, mas ele quer que eu seja amigável, coisa que não sou. “Senta!”, eu me sento. Boa moça.

 

05 de abril

Ismena me xinga novamente. Digo que isso está virando rotina, ela achando que não me mostro porque não quero. Não me mostro. Pronto. Não sou [ainda]. Mostrar o quê?

 

06 de abril

Papéis assinados. Ismena [quase] me odeia, eu sei, eu sinto, faço que não noto. Quer colocar veneno no meu whisky barato. Oto diz que Ismena me inveja. Ele acha que sabe alguma coisa das mulheres.

 

07 de abril

Mergulho os pés na água do mar enquanto um homem joga um baldinho de criança na cabeça da mulher. Avanço pra cima dele. Besta incontrolável.

 

08 de abril

Desequilibrada. Oto me diz que só confirmo o que todos, todos, está me ouvindo? Falam de mim. Levanto os ombros. Não tenho mesmo nenhuma vergonha na cara.

 

09 de abril

Perdi a chave. Ismena remexe minhas coisas. Por que ainda perco meu tempo com ela? Deita-se no sofá, pernas dobradas. Oto acha que me entende, ela diz. Dou meu segundo melhor sorriso.

 

***

JORNAL

Axé Silva

 

o folhetim
sépia
dança com Éolo
sob a trilha de um alfabeto indecifrável

 

 ***

Bruno Carrara

 

Cachoeira, uma palavra
Minha e sua, compartilhada
Uma palavra, minha e sua
Nossa língua inventada

Já existia quando chegamos
A cachoeira inominada
Um vento fresco, um som bonito
Sabor de pedra, limo, água

Água correndo sobre a pedra
Pedra escorrendo sob a água
Dura
Curvando-se ao tempo
O tempo das pedras, esse senhor lento

Para nós tudo é tão rápido
Existia quando chegamos, a cachoeira
Existirá quando partirmos

O tempo é curto, o meu e o seu
Que somos pele, carne, osso
O que é de pedra é muito antigo

E mesmo a pedra passará
Tem conosco semelhança
Mas não se preocupa com o futuro
Apenas está, enquanto
Eu ouço a pedra:
— Estou aqui, pode entrar

Passo debaixo da queda d’água
Sinto na pele seu peso limpo
Eu ouço a pedra, ela me diz:
— Agora ou passará

Quero sentir sua língua
Ainda que só uma vez
Agora
Duro

Encosto as mãos, o peito, o rosto
Na pedra fria, no limo e água
A minha língua encontra a dela
Dura

 

 ***

 PROTEÇÃO

Bruno Ramalho

 

quero que este poema seja pedra.
não. que seja muro
e força de proteção
para esse coração que bate
em tudo o que me passa vida:
as coisinhas, as costuras, as lucidezes,
o que sai da palavra que escrevo
e volta,
cabe na mala em que me carrego.

quero escrever um universo
ou qualquer coisa que seja enorme,
múltipla, coisa de mulher.
não. a fuga do que for pouco
porque há orgulho em ser maior
com humildade
densa o bastante para encontrar
sem fraquezas
a palavra certa para a poesia.

quero escrever uma fala do tempo,
para datar o atemporal,
espírito incauto e escorregadio
a conectar caminhos diversos,
em traços apátridas,
sem a ditadura das formas,
proteção e guarda dos agoras.
sim. a língua dos jovens,
as ruas e os ressignificados.

quero o sentido achado em sua falta.
sim. eu sou, enfim, de muitas personas
e, aqui, algo Orides,
com uma certa antipatia aparente,
mas a inchar-me de humores,
amores e o que mais houver que caiba aos poetas,
e que você possa sorver
em quatro estrofes de nove versos.
percebido, sim ou não, protejo-nos neste poema.

 

***

MÃOS DE COZINHEIRA NÃO QUEIMAM

Carla Oliveira

 

varremos o chão dez vezes pensando nas crianças,
deixamos os chinelos na porta como alerta,
mas nossos próprios pés não escapam de encontrar os cacos.

temos marcas para mostrar onde sangra,
e não temos sangue para mostrar onde marca.

desconfio, minha mãe, que entendi tua resposta
é que só agora tenho as solas grossas como as tuas
e carrego nas mãos camadas mortas pelo tempo.

 

 ***

FILTRO

Carlos Luiz da Silva Souza Filho

 

Às vezes brigo
Com o espelho,
E quase sempre perco

Nele
Minhas multidões
Mutilações
Não doem
Não são
São só ilusão
Como pura imagem
Maquiagem

O que os olhos
Não veem
O coração ressente
Talvez por isso
Não vejo
Meu coração no espelho

O vidro
É o coador
da minha dor,
E eu …
Eu sou só o pó
Úmido e usado

Ante as ruínas
de mim mesmo
Mantêm-se intactos
Meu reflexos
Meus retratos

Não tremem.
Não sangram.
Não choram.

A imagem
Não sofre
As feridas da vida,
Ou do mundo.
Já eu sinto,
Um pouco de tudo.

 

***

O AMOR NOS TEMPOS DE COVID

Carolina Delboni

 

Reside na lonjura
Nos sintomas abruptos
Das saudades
Ah o coração anda bombeando um acúmulo delas
Em decorrência do amontado
Sequelas
As enfermidades dos tempos
Onde não é permitido que dois ou mais corpos
Se toquem
Nem um minuto de reconciliação
Lacunas vazias
Todas editadas no tempo presente
Um aglomerado
À mercê do medo
Da morte
Até do vento forte
Tormenta

Entra
Repare bem na bagunça

 

***

 MÃE

 Carolina Hidalgo Castelani

 

o cheiro da poesia exala de pontos
contos tantos esses que causam
espanto a cada folhear de folhas
poesia é homeopatia: doses curtas e vagarosas
de sílabas nos segundos rápidos dos dias –
uma dose, outras mais, de gim
szymborska – livro a livro
e mergulhar em atenção
tão afoita na beleza das palavras
no preciso movimento da criação de uma
linguagem que tem léguas de história
poesia é aerossol que entorpece
chuveiro que pinga poucas gotas
biquinha d’água que dá mais sede
é a professora do ensinar errado
o farelo de pão no chão
que não esquecido vem um pássaro manso,
e bica, e voa, e some alto
no céu

 

 ***

SALTO POÉTICO 

Claudia Saldanha

 

O que me assalta que ata o salto?
Voltas moebianas infinitas
atam letras em uma palavra
em uma cadeia

Não há salto se só há assalto
O abismo do salto eleva a dor
Poço eleva a dor
ou posso falar a dor?

Um corte desata o a que se ata ao salto:
um salto a dar
Arte poética que faz cair o a
Afrouxa, desamarra, separa
O salto já estava no a-salto

A saltar,
um desejo aponta
Com a ponta do fio do desejo
enlaçar o salto poético
A poesia é um salto

 

***  

Constança Guimarães

 

penso no meu pai
quando flagro as cartelas de cigarro vazias na gaveta do móvel pesado
que carrega as plantas da casa
que cada dia mais vigorosas

outro dia
tomando café ao sol filtrado da janela
calculei o peso dos vasos
pelo peso da terra vegetal comprada online
replantei tudo nesses meses
(te mandei fotos, vc viu?)
quase sempre nos domingos – aos sábados limpava frenética os sacos
vasos e adubos
e se não sei ao certo cada vaso
sei quase ao certo quanta terra
tá ali estocada criando raízes

nunca mais dormi – exceções quando estou desatenta
com o pijama velho furado
tenho medo de ser internada de
madrugada
ainda uso as calcinhas velhas
chamo essa angústia de beleza exterior

mudei a xícara de tomar café
para a amarela
passei a achar que amarelo combina
com café
mas não estou usando o pires
penso que depois de – no domingo
tomar vinho na xícara transparente
(que parece um copo Lagoinha
com alça)
ela desistiu de cheirar a café

minha mãe me deu uma cafeteira
italiana verde abacate
chegou pelo correio
o porteiro colocou a caixa no elevador
e limpei
deixo pronta à noite
e de manhã
ponho no fogão – sempre na trempe pequena em fogo baixo
tomo o café quando bate sol
no móvel pesado que suporta
as plantas na xícara amarela

também mudei a mesa da sala de lugar
e quis arrancar as janelas
mas depois mudei de assunto
fingi que não vi os centímetros a menor
da altura do chão ao teto

não fui eu que cresci foi o tempo
o ar preso aqui dentro
que mesmo corrente não sai

O sol mudou de lugar e
desde a semana passada
queima meu quarto às tardes
e só por isso sei que a semana passada
passou
nunca tinha observado o sol
em trânsito pelas paredes da casa

O tempo
se você me diz que há um mês
ou ontem mesmo
estávamos no bar disputando
a voz com a música
na fila do banheiro
posso acreditar
porque, sabe, cato pela casa parâmetros
(o que são horas)

por certo limpo a razão do tempo
esparramado no chão
com o aspirador de pó

 

***

LÍDIA

Cris Ventura

 

Carrego Lídia nos olhos
ao atravessar a ponte
e cruzar a Marginal
para chegar no trabalho

Carrego Lídia nos olhos
ao navegar na enchente
e andar a pé do bairro a cidade
nos dias sem condução

Carrego Lídia nos olhos
ao regressar à ponte
e visitar a vizinhança antiga
nos dias de eleição

Carrego Lídia nos olhos
ao lembrar da rua de lazer
e do carrinho de rolimã, da pipa, do peão,
brincadeiras que não mais se veem

Carrego Lídia nos olhos
ao ouvir os Racionais
e visualizar o abacateiro, os bailes na laje,
antiga e viva casa de infância

Carrego Lídia – viva – nos olhos
jardim de flores desconhecidas,
sementes venenosas, heras resilientes,
capim de terreno baldio

Carrego Lídia – viva – nos olhos:
Lídia não é a princesinha do Capão.

 

***

CORPO FURADO 

Daniela Arêde

 

No amontoado de carne
Uma parte necrosou
Dessintonizou a tela
Rasgou o papel

Emudeceu o voo
O ínfimo de prazer apareceu
Por sorte apalavrou o buraco
Centelha espalhada

Anunciada na chegada
Da inter-nação
Missão eterna
De escavar a fera

Que cai na tigela
Deixa banguela de emoções
Sequestradas nos balões
De outras esferas

Severas palavras
Importadas da solidão
No eco da singela multidão
Desnuda o coração

 

 ***

Deborah Brum

 

por entre minúsculas
faz-me falta sentir as peles moles, duras
as rugas entre os dedos, tentando acariciar o tempo
em sua pele de pluma.
o tempo, as bocarras abertas falam
e falam por entre letras minúsculas, sem a pausa do tempo
do texto,                                             da voz,
do corpo endurecido.

faz-me falta o recolhimento da fala diante do gesto
da imobilidade do silêncio
das plumas, das palavras sem intenções.
o movimento de Pietá,
meu filho,                                         meu filho,
rogai por nós.

 

***

AURORA

Denis Zanin

 

Preto, pobre, vagabundo:
chamam ele assim.
Enfim… no fundo,
a velha história sem fim.
Racista? Sim!

Eduardo é seu nome.
Carrega uma mochila vermelha
(e uma família inteira),
na raça, sem graça,
na caça, comendo fumaça.

Pro app, ele faz o corre
(quase morre), escorre,
sempre quando bate a fome,
não dele (que passa),
mas de uma dona sem nome.

Corre! Corre!
Parou! Pára tudo!
Tem blitz dos homem

“Abaixa a cabeça!
Vai! Vai! Pega teu rumo!”

E segue,
pro outro canto do mundo.

Imundo!

Numa entrega sem frete,
bem depois das dezessete:
carrega uma gourmitex
pra esposa do Seu Alex,
de salto alto,
desce do seu duplex.

“Débito ou crédito, senhora?”
Descrédito! Inédito!
Reclamou da demora!
Agora, chega! Vambora!

Põe a mão no bolso
e reza,
pois essa,
essa é só uma parte da história.

 

***

AS JANELAS

Denise Magalhães

 

O que são janelas?

As janelas são como o olhar
Dão vista, horizonte, finitude
Sentidos fugazes emoldurados

As janelas são também vozes
Do burburinho do mundo
Escuta dos que nelas se debruçam

As janelas muitas vezes são espelhos
Devolvem assustadas o nada de tudo
Vidraças gastas, trovoadas senis

As janelas invasivas de Hopper
iluminando o inerte, o ermo
A solidão dos homens

As janelas de Drummond
Olhando devagar
O segredo da existência vã

As janelas indiscretas de Hitchcock,
as janelas tímidas atrás das cortinas
as janelas que tudo encobrem
e as janelas que são portas
penduradas por aí
como uma janelinha qualquer
no décimo primeiro andar.

 

 ***

PERDIÇÕES

Fabiana Pacola

 

me perco às vezes. inconscientemente.
desvio das peculiaridades do olhar
para checar se a torneira está pingando

me perco às vezes. grosseiramente.
insignificâncias atormentam
me pinçam de efêmeros deleites

me perco às vezes. indevidamente.
pequenezas sabotadoras soberanas
subtraem brutalmente a quietude da alma

me perco às vezes.  desavisadamente.
eclipse do que realmente importa me acomete.

me perco às vezes. prazerosamente.
diluída num lapso temporal finito

me perco. sempre.

me perco.

m                                                                    e

 

 ***

TESTAMENTO

Felipe Secondo Perin

 

a quem possa interessar
caso eu venha a faltar
deixo em vida como herança
aquilo de mais valioso
que acumulo em um caderno vistoso
desde quando era criança

minha coleção de selos

o primeiro selo
do endereço de onde nasci
onde dei os primeiros passos e caí
onde senti o cheiro de lar
cheiro de comida quente
onde perdi meu primeiro dente
e assistia a máquina de lavar

outro importante selo
da infância à juventude
foi o da escola onde pude
aprender algo de verdade
os primeiros amores
as piores dores
e algo chamado amizade

há também aqueles selos
das rotas das viagens
de diferentes paisagens
lugares que conheci
amores que tive
amores que não tive
e, depois de tudo, cresci

variada é a coleção de selos
dos locais de trabalho, das festas
dos encontros, dos cinemas, das serestas
emblemas de lugares em que sempre estive
símbolos de sentimentos
representantes de momentos
de saudades, dor de quem vive

quem ficar com meu caderno de selos
verá somente folhas ao vento
pois os selos são meus pensamentos
memórias de uma vida
cuja missão querida
era escrever, neste testamento
que, mais importante que ter,
a razão do ser
é sê-lo.

 

***

PAREDE EM BRANCO

 Giovanna Malvar

 

a permanência é como a confecção de um azulejo português
como bonecas matrioskas – vazias de quem?
as formigas vêm anelar os dedos, o tempo persiste
como um anjo de porcelana indecente – o sagrado ou a matéria?

o ato de permanecer, por si, já é maltratado
como escavadeiras e minhocas derradeiras no cimento
o amor não perdoa as pedrinhas de asfalto no sapato
como um êxtase pulmonar de quem respira cacos de plástico

digo permanecer? há desdobramento, filamento, autoritarismo?
como os dentes que ditam os espasmos das bochechas
ao cérebro, o labirinto; ao coração, a labirintite
como quem personifica a tragédia, polariza a corda-bamba

a permanência é um porcelanato da rua nunca minha
o ladrilho dum barro desossado, lamaçal de injustiças
brilhante vidraçaria humanoide; umbral do acrílico

quem permanece bode expiatório das xícaras
já não passa de um azulejo português
sugando olhares cansados
num museu de uma rua sem saída

 

 ***

 DEZ PASSOS PARA UMA FORMAÇÃO COMPLETA

 Gustavo Sada

 

  1. escolha uma única leitura de um único curso
  2. releia demorando o máximo que puder
  3. reduza, a cada leitura, a quantidade de palavras lidas por período
  4. reduza ainda mais – até sobrar uma única palavra/dia
  5. se a palavra de hoje lhe tocar, a escreva nas paredes de casa
  6. siga assim até o livro acabar, ou o espaço nas paredes
  7. siga apenas em contato com o que foi escrito
  8. não pense mais com a própria cabeça, ouça atentamente as paredes
  9. não faça nada
  10. deixe infusionar em água fervente – por tempo indeterminado – até adquirir a coloração desejada

 

*** 

DO OUTRO LADO

Jacqueline Gama

 

Corria
Batia no murro
Pulava

O muro

De palavras
Que eu
Escrevia.

 

 ***

ESCONDERIJOS 

Joana Biondi

 

Nesses tempos,
em que o sol parte
tudo em dois,
presa ao diafragma,
aquela mesma lâmina
retalha aqui dentro
o que diariamente
insiste em arder.

Nem te contei que na insônia de ontem
saí correndo pelas ruas às três da manhã.
Foi prazeroso suar sozinha no ventre da noite.
Uivei pra lua e depois voltei. Todos dormiam.

Ela já vai fazer seis anos
e dos meus mamilos o leite ainda pinga
e meu útero contrai.

Estou contida em minha própria placenta
Incapaz de abrir as pernas e expelir.
Do meu calor me sirvo,
estarei segura enquanto estiver em mim.

Se te leio num golpe me dá vertigem.
Olhos enclausurados.
Fala por mim o que de mim desaba.
Fala o oposto que me cala.

Ainda assim procuro
sob os escombros.
É meu corpo esses pedaços.

Atravesso a selva
Recordo o ritmo
Extremo ou externo?
É dentro,
o desejo.

E a inevitável morte
acaricia meus cabelos
E de salto me morde
Pra lembrar que dói.

A morte,
Não.
A vida.

 

***

João Góes

 

se o que os poetas têm a dizer
deve ser inesquecível
mas tudo muda
para quem resta memorável?
ora, o outro
invencível e renovável
incrível insaciável
um fio seu, meu, inesgotável

*

sei lá
mas sempre se transforma mesmo?
a todo momento? não cansa?
acho que sim
acho que já transformei de novo
enfim

*

atenção
à rima
da palavra com a palavra
e sua rima
porque é na esquina que se termina
que se mostra fina,
finda a insígnia
do significado
ressignificado
e toda essa ousadia se comunicaria
mas só na poesia

 

*** 

 

POESTENIA

João Miola

 

Quis fazer minha lista de utilidades

palavras
letras
ideias
pensamentos

mas não consegui:
onde ecoam os contextos
os sem-textos aparecem
refletindo sentimentos

úteis ou inúteis
essenciais

o que é, de fato, importante?
o que, de todos
os fatos,
é essencial?

sigo sem saber o que é
mas não vivo sem minhas
palavras
que fogem
por medo em se definir
como sendo úteis a alguém

o inútil a nada serve
objeto nada
que nem boia
nem afunda

serve inutilmente
por isso o que se escreve
não cabe nas palavras
nem se pode reparar

então melhor fazer a lista
em letras minúsculas
menores que as miúdas
evitando que alguma utilidade
venha me roubar
das ideias tão inúteis
que me fazem singular

 

***

O AR

Joelma Felix Brandão 

 

O poema não passa pela língua
sai da cabeça e trava no nariz.
Coça, dá arrepio, quer sair como espirro,

mas a língua trava, prende, condena

a palavra a ser mastigada sem sal.
A língua não entende o pensamento.
Assim, vou respirar pela boca,

nariz, pulmão e diafragma.
Sussurrar um fonema,
dissolver um problema,
sortear um tema,
ser menos acadêmica
e acabar com a regra cafona e tão pequena da rima.

 

 ***

 CADERNO DO ALUNO DE POESIA

Julia Pantin

 

  1. Silêncio: maior aliado, inimigo inalienável
  2. Acho que às vezes escrevo pra transpassar o que dói
  3. Querer absolutizar tudo. Maneira mais ridícula de querer fugir-me.
  4. Princípio de jardinagem (lembrar): depois da poda, querendo ou não, as plantas sempre crescem mais verdes;
  5. Brincar com o mundo como exercícios lúdicos
  6. Vê no vazio também o movimento das formas e o que não podes dizer, acolhe
  7. Desapegar das formas intuídas, selvagem. Adentrar o espaço de outro. Deixar que me adentrem.
  8. Sylvia Plath – Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos; Júlia de Carvalho Hansen – Romã; Walt Whitman – Dias exemplares; Koselleck – Futuro passado; Lacan – O seminário; Sebastião Salgado – fotografia; Sontag – diários
  9. Que nem sempre toda mudança é transformação. Às vezes crescemos pela permanência. Deus não é virginiano.
  10. Ouvir o corpo, até o dia em que seja sério
  11. O que conhecemos uns dos outros se revela nas palavras que trocamos

 

*** 

 

COMO UM MAPA 

Juliana Ramos 

Para Manuel António Pina

 

Dispersos sobre a mesa,
a xícara, o copo d’água e a taça
traduzem o tempo melhor que o velho relógio.
É aqui onde vivo, à mesa.
Frente a ela, alieno as melhores horas
da minha juventude
(alguma beleza, algum fôlego)
e procuro as outras horas que já perdi.
Tanto sol lá fora. O que é mesmo que faço aqui?

Presa à cadeira persigo este mundo encalacrado
com estas palavras que já não dizem:
espera, doença, ausência, solidão.
Apenas a borra disforme do pires
figura algo que não é bem uma resposta,
mas um caminho que me ensina, a cada dia,
como habitar esta casa.

 

***

 

 POEMA DA AUTOCRÍTICA

 Kathlen Felix

 

É divertido escrever. Mas o que tenho a dizer?
Nada posso ser, se em comparação aos que já fizeram e conseguiram permanecer.
De fato, não tenho nada a dizer…
Se não for o que sinto e me permito fazer. Sobre o que escrever?

Nem sei se a estrutura está certa, minha rima é direta pouco estética,
talvez uma cópia meio idiota de pouco ritmo sem muita harmonia.
Sem mais a dizer.
Estar no momento é ser livre de olhar o que já fizeram, ser cego ao que vai acontecer.

Delírio pensar que talvez tenha achado o amor da minha vida e não era eu.
Vem de mim o ímpeto de escrever as coisas maravilhosas que sentia.
Muito delas perdidas, outras rasgadas, produções na calada da noite,
lamúrias na madrugada.

Ser agraciada e agradecida por esse fato me arrebata.
Talvez ainda não me expressei bem,
ainda crua experimento o que me convém.

 

***

 

DESENHO PARA EMÍLIA

Katia Marchese 

 

Quando tua Aranha
dobra os joelhos
e reverencia o Nada,
é a hora exata da Luz.
Oscila a folha no caule.
Oscila o calor nas sedas.
Oscila a pálpebra diante da ilusão.
Trama ou Flor?
Sabemos – o amanhã destrói.

 

***

 

CONCEPÇÕES 

Keissy Carvelli

  

Poesia não é:
o metro fixo
o método submisso
o  i s s o &  a q u i l o
a natureza morta
o facão cego
a porteira gasta & fechadura emperrada

[poesia não se fabrica feito garfo &
automóvel & parafuso]

Poesia é:

o caos dentro do mundo
o grito calado & confuso
a besta selvageria humana

[poesia não se ensina feito álgebra &
arquitetura & trigonometria]

poesia-viva
toque & tique & saque
osso cerne
que dilacera & bate
& fica & fica & fica

 

***

 

Mariana Cobuci

 

A varanda do quarto
guardada por duas portas de vidro
não houve estilhaço
embora caminhe por ruínas
um trincado grande ao canto
por cima o durex
– amarelado
a ponta revirando-se
sem cola –
não esconde
o desejo antigo
por reparo
e o receio
– o pavor –
de ter mais um gasto

*

arrancar da dobra
o músculo quente
desfazer no

o dente

*

espremo o olho
até produzir uma
substância oleosa
que facilita a fricção
que desprende o corpo

desenlaço o traço
e ninguém
me devora
completamente desarmada
mole e
molhada

*

ainda
não sei que
louça me
espia
nem que casa
o cão
esconde

 

***

 

 QUASE SONETO  PROFISSIONAL

Mariana Moreira de Menezes

 

Onde eu nasci tem uma serra
E noites claras de luar
Mas hoje moro na cidade grande
Onde me mudei para estudar

Já subi muitas montanhas
E a terceira mais alta do país
Hoje estou sedentária
E me pergunto se sou feliz

Leio por prazer
Escrevo por necessidade
Nas palavras onde extravaso a alma
Nunca ganhei o pão

No longo e solitário percurso
Da graduação ao mestrado
Aprendi mais sobre mim
Do que sobre o mundo

Tenho pretensões pequenas
E sonhos grandes
Benefício é ter liberdade

Disponibilidade para mudanças
E para viagens
Sou nômade de mim

No lattes não cabem
As receitas médicas
As noites em claro

Tampouco as lágrimas
Do paradoxo de cada dia
Se matar um pouco mais
Pelo ofício que se ama

 

***

 

CONFISSÃO NA PÁGINA DE UM CADERNO QUALQUER

 Maurício Rodrigues 

 

Eu te quero como quem traduz uma urgência das extremidades dos dedos. Queimadura epidérmica, que rompe nervos e escava os ossos. O pó bárbaro que se varre por todo o corpo calcifica superfícies que se estilhaçam nas curvas, juntas e vincos. Eu me vou sem nenhuma intenção, soprado pela quentura do tempo: instinto. Diluído no caldo espesso das cavidades que se inscrevem em tantas pequenas e grandes poças de águas turvas, mornas, translúcidas e oceânicas. Embebido no núcleo desastroso das células, que reivindicam caminhos e não reconhecem pedras, buracos, cercas ou muros. Sigo. Às cegas, à loucura. Deliroso de magias, mas cético. DNA sem arqueologias, incrustado em rochas já desaparecidas. Escondido em ecos longínquos, às margens de paraísos inexistentes. Camuflagem do medo e da ousadia. Em lágrimas e solavancos, descomponho a paisagem e rasgo o impossível.

 

 ***

 

QUINTAL DAS HORAS

Maurício Simionato 

Para Orides Fontela

  

Sob as pedras ao redor das árvores do quintal
subsistem:
besouros telepatas.
cobras-cegas clarividentes
tatus-bola poliglotas
e filigranas de raízes cheias de som e fúria

A decomposição das horas
está no amontoado de folhas rasteladas
anteontem, chão afora,
para o lado do pé de amoras

A cantoria das aves
fez ecoar acolá
a badalada da Ave Maria,
às seis em ponto, outrora ouvida.

Faz-nos aguar, na boca que queira,
pensar a doçura do fruto
que brota naquela ameixeira.

E paralisada fica a existência
no meio de qualquer tarde inteira
entre os entulhos da ausência.

 

***

 

EFEITO DO ENQUANTO

Mayara Blasi

 

o dia era o mesmo pra todo mundo
mercado, trabalho, faxina
uma amiga fazia aniversário
outra chorava a perda de um filho

o mercado nem tá cheio,
sorte a nossa que
credo,
cadê a cor das maçãs?

em casa
a louça do almoço e a sujeira no chão
observam minha inanição até que
busco o telefone
acendi uma vela pra você,
vai ficar tudo bem

a vela engorda o silêncio da oração
e o nada que segue
e sono
não, não esqueci
parabéns, amor! teve bolo e velinha?
claro, comemoramos outro dia

eu pilotava um carrinho de choque no parque de diversão
e me acertavam, rindo
os pilotos e seus pescoços maciços
riam, era medo, adrenalina
estavam vivos

tô bem, mãe. e vocês?

eu esperava o tempo acabar pra descer do carrinho.

 

***

 

AO AMOR PRIMEIRO

Michaela v. Schmaedel

 

Nossos sobrenomes juntos
testados nos cadernos de escola

nas areias da Bahia
as fotografias de viagem

relíquias:
um papel de chocolate de 1990
uma fivela de cabelo de 1994

as fitas cassete gravadas
rock progressivo, músicas de estrada

e os bilhetes de amor

e o futuro
o vento nos nossos
cabelos longos
nossos filhos crescendo
não fosse

a moto
o carro na contramão.

 

***

 

Monique Revillion

 

Se tão longe eu caminhasse
até o ponto de não retorno
para a dita ilha sem nome
levaria comigo as vigas
de minha cabana de palha

Meus gatos e suas savanas
o sol domesticado onde lembram
de seus tempos de presas e caçadas
e ronronam ao meu gesto, soberanos
em seus tronos de almofadas

Na mala, ainda, meu aniversário de seis anos
o riso de Maria Lucia, um tear de pregos
e o terceiro beijo, aquele, de quando
descobri amar José sem deixar de amar João

Meia dúzia de galinhas chocas
um galo de peito rubro
um isqueiro e cinco poses de yoga
que jamais alcançarei

Nas mãos, um punhado de terra fértil
esperança o quanto baste
o calendário lunar do tio Zeca
e sementes em minhas tranças
como as das meninas Nagô.

Todo poema que sei de cor
o caderno de receitas, um altar vazio
(as culpas jogarei no mar)
e um livro inteiro em branco
a ser escrito antes do fim

 

***

 

FONTE: ELA

Paulo Nonato

 

Há um sentimento de solidão
Depuração infinita.
Há luz no caos,
Uma imagem e várias outras também se esvaindo.
Há um sentimento de depuração
Solidão infinita.
Ela, poeta miserável vai desistindo.
Eu, leitor miserável vou acolhendo.
Há um sentimento.

 

***

 

PEDRO PONDERA

Rogério Bernardes

 

pedro pondera
na velocidade da luz de neon
que pisca sem parar à noite
na fachada da igreja
de pastor escandaloso
em frente à sua casa

até a luz de neon queimar
ou o espírito santo descer
e calar os peixes
afogando em aleluias
ele insiste em ponderar

pedro pondera
nesta e outras terras
mas ninguém o vê
porque o neon
chama mais atenção
enquanto pisca

pedro não pisca
pedro pesca

e quem pesca espera
não arranca
do peixe nenhuma esperança

o peixe
sempre pensa que a rede o ama
e o anzol lhe alimenta
e aquele que grita e cospe
e invoca e expulsa
e passa a sacola
um dia o liberta

sem sermão
simão pedro pondera

só quer ser pedra
pra voar de estilingues
rachar testas
edificar igrejas sem gritos
sem mala feia
sem feliz cigano
sem pedir mais cedo
e outros trocadilhos mundanos

pedro pondera
enquanto impera
o engano

 

***

 

AMOR APAGADO

Rosa Acassia Luizari

 

O amor que toca o meu íntimo
figura nestas palavras amarras
escritas em tons de azul e látex:
desconstrução à beira do caos.

Um sentir misturado à lógica
ao teu irrisório sorriso opaco
à letra inebriada em viva luz
presa à hipótese já anunciada.

O amor desmedido na página
escrito com palavras desertas
cheias de si à frente do espelho
mas nuas em frias linhas tortas.

É o amor a descobrir-se certo
e abrigar sonhos universais
no tato ausente a olhos nus
criador do céu e do concreto.

Sinônimo de sentir ternura
em parcas palavras a mais
então desfaço-me de todas
com o látex de versos atrás.

 

***

 

FUGA DA ESCRITA

Rosa Gonçalves

 

Ainda escrevo poesia,
Ainda falo em poesia,
Ainda leio poesia,
Ainda respiro poesia.

No entanto, a poesia distancia-se de mim,
ando dias e horas a fio
em busca de traçar as letras,
construir palavras e versos.

Gotejam na alma o transcrever,
os dedos tentam, deslizam rabiscos,
surgem rascunhos desconexos,
ela debocha nas mãos do ourives.

Com a desistência, inerte,
em direção ao horizonte, encontra respostas,
vislumbra o resplandecer mágico do ocaso,
lentamente surgem novos riscos, pois
ela vive em mim.

 

 ***

 

Rosane Preciosa

 

o que é miúdo
pode nos salvar da brutalidade
das coisas enormes
lembro do passinho miúdo da minha vó
ela ia longe devagar
distinguindo as ervas
que colheria para seus chazinhos
das outras belas mas sem serventia
o devagarinho não é nada fácil
como desmontar
um sistema de apressagens
mais difícil ainda
é escutar o som de si
o som dos outros
o som das coisas à nossa volta
a geladeira ontem soltou um suspiro
deu um alívio

 

 ***

 

MAIO

Sheila Dálio

 

Era uma vez
os filhos:
sete homens, sete mulheres.

Era uma vez
sete flechas
e depois mais
sete disparos.

Era uma vez
a órfã mãe.
Então disse Deus:
– bate nela com a tua vara,
e dela sairá água.

Era uma vez
a ininterrupta dor
da pedra –

sete mais sete mais sete
na baixada santista
em vinte de maio
de dois mil e seis.

 

***

 

RELÂMPAGO

Stephan Chang

 

o céu se par

te

num es

tron

do

eu estre

meço

a grama

molhada

nas costas

e do

lado

de

dentro

nada faz

senti

do

 

acordei absorto

trag

ado

por um sonho

alag

ado

quase morto

apag

ado

pronto para

mergulhar

na fenda

aberta no

teu

cor

po

 

o ar emana

cinzas

e roxos

finos traços

iridescentes

e frouxos

tingem

[o ar]

engana

acalma

os ânimos

em gana

o mundo engolido

por um re

lâmpago

en

fure

cido.

 

 

 ***

 

AGORA O DORSO

Sumaya Lima

 

falo do dorso onde repousa um corvo
agora tão quieto que logo penso se
de onde ele veio ninguém o ensinou a
bicar quando eu mesma sou, ah, eu sou
dessas que já mal se senta e começa:
desatando aqui destecendo lá os
filamentos nas unhas e nos vãos
dos dentes as carnes já todas bem
soltas em seguida os cheiros e a infâmia.

só mesmo um parvo distrai-se de um dorso mas
longe de mim cutucar uma intriga.

 

 ***

 

ESTEIO

Talita Castro

 

Porta trancada. Dinheiro na carteira, mas não muito. A voz da minha mãe, o olhar do meu pai. Um abraço apertado, mas nem tanto. Evitar pisar nas linhas no chão. Para não dar nada errado, contar até 100 e depois repetir a contagem ao contrário. Calcinha extra na bolsa. Dipirona e Rivotril na carteira. Quando a analista levanta as sobrancelhas e balança positivamente a cabeça. Girar 3 vezes a chave na fechadura e checar a maçaneta em múltiplos de 7. Rezar o Credo e o Pai Nosso após cada pensamento impuro ou negativo. Atravessar a rua de mãos dadas. Evitar situações sociais. Lavar as mãos com álcool e sabão quantas vezes forem necessárias para o meu sossego. IgG positivo. Menstruação no dia certo. Bater na madeira 3 vezes e desvirar os chinelos. Ouvir, ler ou sentir que ele me ama e haver verdade na reciprocidade. Ler um livro que já me leu antes. Não estar sozinha mas poder ficar só às vezes. Ter listas para cumprir e calendários organizados antecipadamente. Começar a ler um texto e reler o mesmo parágrafo até ter certeza que compreendi perfeitamente. O calor do cachorro nos dias frios. Dormir coberta dos pés à cabeça. Seguir a rotina sem imprevistos.

Mas se o inesperado vier, prender a respiração por 7 segundos e contar os azulejos no chão.

 

 ***

 

O NASCIMENTO DO SOL 

Thiago E

 

vem por albinas, damianas
quem te chama assim, chanana?
boas-noites, onze-horas
cecílias ou nove-horas
e as flores-do-norte? ah
são flores-do-guarujá

quantos nomes, malvas vãs!
duram o cheiro da manhã:
esta quente experiência
como achar sua pronúncia?
na mata, a gata, uma briba
e amor-crescido onde caiba

 

 ***

 

PALETAS

Thiago Lucali

 

Cabelos brancos ignoram quarentenas,
não fazem espera ao largo do porto,
desconhecem o esforço dos meus ossos,
brotam pelos meios-fios do mundo
no pente fino dos espelhos corajosos.
Ignoram epifanias e explicações banais,
as brechas, as poltronas, o messias.
Brincam de esconder a última pedra
no radiano das têmporas pungentes,
o verde-maduro, o vazio, a visita da cegonha,
não há tempo da poeira baixar,
fila pra prever que bicho vai dá,
se é bolo, chá de cadeira, engavetamento,
que tudo parece mesmo só questão de tempo,
de dar tempo ao tempo e as ilusões grisalhas
que rasgam as cabeças da espécie humana.

 

 ***

 

O POEMA ECOA O SILÊNCIO

Tida Carvalho

 

I

Arrumar a cama
Toda manhã
Seria uma forma
De preparar o dia
Para a poesia?

Fazer algo que se refaz
A cada dia
Que se desarruma
A cada noite
Seria forma de encenar
O eterno recomeço
Do riso e do açoite?

Com que palavras
Gestos
É possível estar assim
Tão perto
Do dia e da noite?

II

Procuro o lugar imóvel do poema
Tudo o que acaba e começa
Que renasce e cessa
Confunde-se no caminho
Enrola-se no redemoinho
Como se fosse pelo lado de dentro

III

Sei fazer assim

Dar um salto de mim
Ao alvo
Há muitos alvos em mim
E se não souber nomear
O que existe?
O silêncio persiste?
Um poema é ciente
Do silêncio intransigente?
O poema ecoa o silêncio.

 

 ***

 

O POEMA E O MURO

Tina Zani

 

pororoca é um fenômeno natural que

acontece com as águas.

é uma grande onda

um encontro de correntes.

águas fluviais,

águas oceânicas.

a pororoca nasce do encontro,

um grande encontro de águas doces e salgadas.

é uma onda

uma linha

uma camada de água levantada,

destacada da superfície de águas planas.

acontece perto da foz,

em rios muito volumosos,

quando águas doces e salgadas se encontram

sobem se levantam.

a pororoca transcende o fluxo.

 

*** 

 

Vanessa Corrêa

 

se só uma coisa
pudesse ser carregada
eu levaria “risadas”

não sarcásticas
nem amargas
mas de genuína
matéria bem humorada

e quando a vida
fosse irônica triste
ou safada

mesmo em lágrimas

eu abrisse a mala
e recuperasse a graça
da viagem

 

 ***

 

CANÇÃO DO MAR OCULTO

Victor Brum Calaça

 

Quero abrigar o azul escuro que escorre do sangue da noite com luzes e pessoas.
Mas somente há o frio e um desesperado tormento no canto de um quarto à boca da madrugada.
Quero resgatar aquela língua quase-morta
– Paraíso Ferido –
Das risadas e conversas dos amigos músicos e artistas no bar.
Mas por essas incertezas da saúde viramos cárceres de nós mesmos há meses
Nesses picadeiros da pandemia.
Pandemônio desse circo fascista.
Quero poder colher o sumo da canção
Mas o coro não vem, só as vozes em formigueiro
em minha cabeça
cristalizando clepsidras amarguras.
De tudo, contudo, fica no início do hoje
Esse poema – o Verso que se fez raiva entre Nós.
Que não pede licença
Com suas palavras
De fogo mordendo sonho e desejo
Atravessa esses tempos
De beijo de Nephente Rajah
Na terra dos futuros pesadelos
Que ainda não foram despertados.

 

***

 

William Feitosa

 

a linha é tênue
entre afinidade
e distância
até tem um affair
atraem-se os opostos
os semelhantes    não?
minha questão
afeto  afinidade
é estação
primavera      verão
outro sim
outonão
inventam invernos
em prosa e versos
só pra quebrar o gelo
ou quem sabe   mantê-lo
a ver   dádiva
não existe
o par primordial
é estória
mesmo que banal
seja
o desejo ter
perto    tua boca
longe    tua boca


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