Um texto pegando fogo: sobre um poema inédito de Ferreira Gullar
O escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro Ferreira Gullar (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
O período de quarentena, onde ela de fato aconteceu, alterou os sons da rua que invadem as casas, e as diferenças no cotidiano das cidades deixaram pássaros, gatos, cachorros, onças, cobras e cabras mais confiantes em fazer barulho ou passear próximo das casas desse bicho que constrói cidades e espanta outros animais livres. O poeta Ferreira Gullar foi apaixonado pela paisagem sonora das cidades, escreveu “ouvindo apenas” o que chegava na janela do apartamento em Ipanema, Buenos Aires ou Copacabana, vozes da feira, vento nas folhas, a data e o local. Um jeito de escutar o tempo.
Estar em casa foi matéria da poesia de Gullar. Nos seus poemas os sons da rua ou da casa, mas também os demais acontecimentos para tato, cheiro, visão, equilíbrio, paladar e reflexão, comunicam o tempo e o lugar, e esse é o problema: como comunicar. É recorrente seus poemas terminarem com alguma data ou localização, quando não são intitulados pelo mês ou ano em que escreve. Espantado com o açúcar, “flor que se dissolve na boca”, o poeta lembra de quem o fez, e o paladar comunica a divergência entre a matéria e o trabalho, oferece ao poeta escutar tempo e lugar dos materiais quando eles acontecem para quem escreve:
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Como se escreve um diário ou uma carta, o poema datado delimita uma experiência, mas o que foi dito extrapola a hora e o lugar. Como se vive um momento único, o poema datado demarca o inesquecível, mas o que foi narrado é muito banal. Como se faz na burocracia, o poema datado organiza os documentos, mas “esta manhã em Ipanema” foi uma manhã anterior a 1975, quando o poema foi publicado em livro, como pode ter sido a manhã do dia em que você lê esse texto, depois de 2019. A literatura produz tempo, se poderia pensar.
Um poema de Manuel Bandeira, “O bicho”, que narra, na forma de uma charada, uma pessoa “catando comida entre os detritos” (“O bicho, meu deus, era um homem”), foi datado: “Rio, 27 de dezembro de 1947”. A pessoa procura, sozinha, e no dia seguinte (“Vi ontem um bicho”, assim começa o poema), a ceia atrasada do Natal. A data, o local: traços da solidariedade humana, de quem vive um tempo comum, num espaço comum. Talvez Ferreira Gullar tenha encontrado nos meses e nas cidades um motivo para a vida comum (provisória e urgente), escrevendo poesia numa língua esgarçada pelos continentes do planeta.
Inventou, no entanto, para essa obra em português uma assinatura com sotaque estrangeiro. Ferreira Gullar, o poeta, nasceu lendo. Antes dele, o adolescente José de Ribamar Ferreira andava encantado com sonetos, gramáticas e dicionários. Alguns momentos colaboraram para a metamorfose de José de Ribamar, mas num depoimento em 1978 o poeta considerou uma cena de leitura como experiência radical: “Talvez tudo isso tenha começado numa tarde quente, em São Luís do Maranhão, num pequeno quarto da casa do quitandeiro Newton Ferreira, à Rua Celso de Magalhães, 9”.
Lendo um velho livro de contos de E. T. A. Hoffmann no quarto sombrio num dia ensolarado, o moço de vinte anos se pergunta sobre o sentido da literatura a partir de uma contradição. O leitor “abandonado pela infância” procura no livro algum sentido para o mundo que se oferecia gratuito fora do quarto, fora do livro. Ele desconfiava de um “fogo de vida” guardado pelo escritor: “O ato de ler funda, assim, a verdade da literatura. Porque, de fato, a página é rasa e a palavra não é mais que um rabisco impresso nela. Só a carência de outro homem [ou mulher] pode oferecer um corpo onde de novo se faça vida o que o poeta falou”.
Procurar uma assinatura foi, para Gullar, procurar um corpo, ou melhor, “o poema como um corpo vivo”. Em certo sentido, foi um desvio de classe, numa literatura escrita por Azevedos e Andrades, cujos escritores de infância mais pobre foram, eles mesmos, se desviando de seus nomes mais domésticos: o Joaquim Maria (Machado de Assis), o Afonso Henriques de (Lima Barreto), embora, claro, fosse esse um procedimento recorrente nas suas épocas. Gullar inventou um nome, era preciso acender no poema o corpo, para o leitor do futuro, sob o risco de se desintegrar.
Aqui começa a razão dessa releitura. Colaborando para a edição da revista do projeto p-o-e-s-i-a.org, passei a ler o acervo da Biblioteca Nacional, procurando detalhar a trajetória de Ferreira Gullar desde a divergência com as ideias da poesia concreta, em 1957, até a realização da exposição de arte neoconcreta, em 1959. O acervo público e online disponível aos pesquisadores em quarentena proporcionou uma descoberta curiosa. Em fevereiro de 1957, Gullar publicou um poema no Jornal do Brasil que revela, pela concepção, a leitura que fazia da poesia concreta e, pelo estilo, contradições que adensam a trajetória do poeta.
É um texto para se ler devagar. As palavras vão se combinando espalhadas pela tela, mas mantêm o peso do verso, linha a linha. As partes do poema desdobram as principais imagens: osso, fogo, flores, poeira, e o rufar da fogueira. É um poema infernal, duro, difícil, dramático. Que osso é esse sobrevivente ao fogo do tempo que transforma as flores em poeira, cantando, crepitando, fazendo barulho? Espantado com o mal do poema, o jovem Gullar o desmonta, ao mesmo tempo em que organiza a percepção do leitor, adensando as imagens a cada parte do texto. O fogo parece o modelo mesmo da forma do poema, fogo de fogueira organizada, as palavras dançam na página como labaredas, ao ponto de desenharem uma pequena fogueira ao final, quando se lê, letra a letra: “olhorufogo”, olho, rufar, fogo. A poesia, osso, mas não fóssil: o olho do leitor queimando.
O poema não foi publicado, depois, em livros de Gullar. Em 1980, quando reuniu a obra em Toda poesia, organizou os versos escritos entre 1954 e 1960 na seção “O vil metal”, livro inventado dentro de outro livro. O poema de fevereiro de 1957, contudo, não estava lá. Nos ensaios e depoimentos em que rememora a aventura nas vanguardas de poesia, Gullar lembra do livro A luta corporal, lançado em 1954, depois lembra do poema O formigueiro, exposto em grandes páginas nas mostras de arte concreta a partir de 1956, e salta para os poemas visuais publicados a partir de março de 1957 no Jornal do Brasil, poemas dedicados às cores, a paisagens naturais, à palavra sem frase.
Apesar disso, o poema de fevereiro de 1957 apresenta “o movimento do fogo” como modelo para os versos em perpétuo deslocamento na página, desalinhados em zigue-zague, o que vai caracterizar a figuração do poema na obra de Gullar, segundo a imagem formulada pela professora Viviana Bosi. Além disso, o poema de fevereiro representa outro momento agônico na trajetória do poeta nos anos 1950, como o desfecho de A luta corporal ou a experiência supostamente malograda do “poema enterrado”, mas dessa vez em diálogo franco e diferente com a poesia concreta e o poema inaugural de Stéphane Mallarmé, Um lance de dados jamais abolirá o acaso, que se escreve como um prisma decompositor das imagens.
Embora, quando publicado, houvesse alguma ambiguidade na ordenação das partes em função da disposição na página do jornal, optei por apresentar o poema na ordenação mais coerente, e o leitor vai notar a necessidade de completar as palavras da parte IV nas linhas da parte V. Além disso, a falha de impressão ou digitalização do poema no jornal não permitiu decidir sobre uma palavra da parte IV, mas para a apresentação do poema optei por manter a transcrição literal mais provável, o neologismo “extesta”.
Nos 90 anos de Ferreira Gullar, gostaria, como leitor de poesia, de oferecer a outros leitores essa pequena traição ao poeta, ao publicar um poema que ele não publicou em livro. Fazendo, no entanto, justiça à história da poesia brasileira, pois o poema foi impresso para o público em 1957, essa homenagem lembra o Gullar leitor, o Gullar nos primeiros anos como poeta leitor da própria obra, o Gullar aos 26 anos de idade publicando poesia no jornal, repensando o que publicava nos livros, escolhendo e sendo escolhido pelo que, ano a ano, José de Ribamar Ferreira chamou de literatura.
Um poema concreto de Ferreira Gullar
I
FOGO
osso
DO
CORPO
furna
DO
OSSO
urna
DO
oco
ORCO
fosso
DO
corpo
II
o fogo
a fera
sem osso e o couro
em chaga
o fogo
a lepra
erma
rufa nas flores
o seu tambor
III
as flores
hérnias
celestes hienas
cegas
as
flores os
postes
do vão
rufam
no luto
feito poeira
IV
a poeira
a desfeita
coroa extesta
rumor do facho em ru
e fa
a falha o rastro a pira a ru
fa
r
u
f
a
V
ina árvore esparsa
lha
ga do verso a puída
la a poeira
no osso
VI
o rufo
o osso da fala
o fogo armado
o h
l o
r
u
f o
g o
clarão carvão
na boca
o rufa
o pelo
da hiena
osso
da hérnia
tambor
do luto
o
culto
troféu na fera
Abaixo, o poema em seu formato original, para que seja possível visualizar os espaçamentos delimitados pelo poeta
Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa é professor de português e literaturas no Colégio Pedro II, autor de Pacote de maldades (7letras) e A mão, o olho: uma interpretação da poesia contemporânea (Oficina Raquel).