Pitanga, um pouquinho de saúde, um descanso na loucura
Sobre o filme de Beto Brant e Camila Pitanga
Beto Brant, diretor de cinema premiadíssimo, junto com Camila Pitanga, na posição de co-diretora, realizaram um filme lindo. É isso, um filme simplesmente muito bonito, no sentido estético, como tudo o que Camila faz, pela atriz que é, como tudo o que Beto faz, pelo diretor que é. A perfeição do filme não poderia ser pensada sem essa colaboração que, de algum modo, se torna visível no filme construído também por uma equipe maravilhosa que inclui Marçal Aquino e Xarlô no roteiro, este último também na direção de arte, participando da intensidade estética da obra.
Pitanga é um filme eticamente muito bonito também. Categorias estéticas e éticas não são tão separadas como muitas vezes podemos pensar. Se a beleza, a bondade e também a verdade são desconsideradas, abusadas e deturpadas pelo poder ao longo da história, se elas foram falsificadas e são usadas de maneira opressivas contra muita gente, não podemos negar que no fundo de nossas experiências humanas – subjetivas e objetivas – esperamos sempre por sua reconciliação que seria a superação de todos os nossos horrores sociais, éticos e políticos. Em um sentido muito positivo, o termo amor seria, entre nós, aquele que agregaria essa tríade tão complexa em que o respeito, a generosidade e a sinceridade aconteceriam ao mesmo tempo, no momento único de um gesto.
Pitanga é um gesto ético e estético, um gesto de amor. Ele se torna ainda mais potente em uma época como a que estamos vivendo agora, dominada por afetos autoritários, por violências de todo tipo, por um aterrador desrespeito à pessoa humana. Em tempos como os de hoje, os gestos de amor que vão na contramão da brutalidade, entre nós cada vez mais banal e comum, tem um intensidade ainda maior. Eles são como sol depois de uma tempestade, como chuva na seca, como cura em meio à doença, como reconhecimento em meio a esquecimento e descaso.
Pitanga é um gesto cinematográfico de alta voltagem poética, é mais que um documentário, não apenas um filme, nem tão somente cinema. Um gesto cinematográfico intensamente poético na sua forma amorosa de se dar. Ao ver o filme, pensei naquela frase, tão necessária para meditar e seguir em dias sombrios como os atuais, a frase que aparece na voz de Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde. Um descanso na loucura”. O filme me deu a sensação de que algo assim tinha acontecido.
Pitanga era o nome desse amor todo que o filme mostra generosamente, ciente do lugar de reconhecimento ao homem, ao ator, ao amigo, ao pai que é Antonio Pitanga.
Nesse gesto poético encontramos seu retrato vivo. Antonio Pitanga, grande ator de mais de 60 filmes, o rosto do Cinema Novo… Eu poderia dizer um retrato cinematográfico de Antonio Pitanga, mas isso seria um redundância, pois não há outro modo, senão o cinematográfico, de falar desse homem cuja vida se confunde com a história do cinema brasileiro. Ali nos aparece o homem público e privado, o namorador e o amigo, o pai, o avô e o marido, o personagem em faces diversas. Ele aparece enquanto ele mesmo se mostra sem, contudo, se exibir. Sem teses, sem explicações, sem justificações, Antonio Pitanga é o que é e seu estar se confunde com um devir de si mesmo dentro do próprio filme.
Alegre, animado, dançante, um corajoso, um lutador, alguém que pensa e discerne, Antonio Pitanga atravessa seu próprio filme, experimentando fazer o filme no qual ele não é só um objeto de pesquisa ou de exposição. Nesse retrato em movimento, nesse retrato-tempo sua característica mais essencial nos surge como um convite para estar na vida de um modo mais aberto: a alegria de viver bem que poderia ser um direito.