Piano de cauda
A valsa triste ocupa a sala do apartamento na tarde abafada da antevéspera do Natal. Um menino de 12 anos toca o piano de cauda. Sentada ao seu lado, uma lacraia descomunal metamorfoseada num corpo de mulher acompanha o dedilhar temeroso.
A asquerosa invade as coxas do menino com sua pega frenética. A intrusão o paralisa.
– Não mandei parar… – sussurra a lacraia.
O menino retoma a melodia. A peçonhenta avança sobre a presa até alcançar o cós da bermuda. O barulho do zíper correndo apavora o menino. A ânsia de vômito faz a golfada beirar a garganta.
Um homem de bigode grosso apertando um cigarro acesso entre os dentes se aproxima do piano e espalma a mão sobre a cabeça do menino.
– Isso é que é macho! Garanhão desde pequeno!
O interfone toca. Grato, o menino, de súbito, se levanta. A lacraia serpenteia ligeiro aquele corpo mal saído da infância e logo mergulha na cauda do piano. O homem de bigode desaparece na baforada do cigarro.
Na cozinha, o menino estende seu braço franzino para atender à chamada, levando o fone à orelha cercada pelos cabelos grisalhos do adulto.
– Alô? – Pausa ofegante de escuta. – Pode subir, é o pessoal que vai içar o piano. Obrigado.
O adulto recoloca o interfone no gancho. Em seu punho, cicatrizes cobertas por tatuagem em letras aprumadas: Fé na Vida.
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