Peter Handke, a escrita e o risco da literatura
O escritor austríaco Peter Handke (Foto: Divulgação)
Em 1984, Peter Handke publica “A tarde de um escritor”, uma curta novela na qual um personagem escritor espanta-se, diante de uma crise sem nome, por ter perdido “a intimidade com a palavra”. Ele está no seu local de trabalho, o lócus onde escreve – “a casa dentro da casa”, como ele mesmo diz -, mas encontra-se paralisado. Sente-se impotente justamente por não ter escrito, recentemente, nenhuma anotação que o completasse, que o alterasse e levasse a sua prosa adiante. Se a inspiração da escrita o abandonou, ele, o escritor-personagem resolve fazer desse abandono um ato literário.
Embora não seja de fato uma novidade, esse gesto de abandono de escrita revela a encruzilhada que Handke foi tecendo ao longo da sua obra. Para ele, o escritor que usa a literatura apenas para representar o mundo individual está fadado a cair no que ele chamou, num famoso seminário do Gruppe 47 em Princenton, de “impotência descritiva”. De forma esparsa, a escrita está no cerne do projeto literário de Handke. Uma escrita, contudo, que é tensa, ambivalente e que se furta de uma delimitação concreta, precisa. A escrita de Handke é sempre movente e tensiona-se num vai e vem entre fronteiras de gêneros – como a poesia, o romance, o teatro, a prosa, o ensaio –, mas também de mídias, como o rádio e o cinema.
Um nova subjetividade
Escritos com pouco mais de vinte anos, os primeiros romances e peças teatrais de Peter Handke dialogam diretamente com o emergente paradigma de uma Nova Subjetividade, termo cunhado pelo crítico Marcel Reich-Ranicki. Um olhar mais atento, no entanto, constata que Handke tece complexos gestos diante dessa nova subjetividade. Suas aproximações são paulatinamente cadenciadas por um constante apagamento da experiência subjetiva. Nesse recorte, as suas Peças faladas são exemplos seminais de uma radical ruptura diante de uma certa excessiva primazia da subjetividade. Numa peça como Insulto ao público, de 1968, Handke dispõe quatro atores diante da platéia e avisa, desde o início, que nos últimos minutos todos os espectadores serão deliberadamente xingados. Há um gesto de afronta, mas também uma aposta em diluir e mesmo abolir o tácito pacto teatral que une – pela centralidade do verbo colado ao enredo – os jogos de projeção e identidade entre a estória, os personagens, a trama, e os espectadores.
Quando nos debruçamos nos romances de Handke dessa época, temos, contudo, uma interessante metamorfose. Em meados dos anos 1960 ele inicia uma série de romances com tons abertamente autobiográficos. Na maioria dos casos, os protagonistas são escritores que contam, narram, descrevem e relatam fatos abertamente autobiográficos.
Em 1972, logo depois de publicar O medo do goleiro diante do pênalti, Handke é arrematado pela notícia do suicídio da sua mãe. Foi nesse impulso que ele se pôs a escrever a novela Bem-aventurada infelicidade, que a partir dessa notícia conduz o leitor a uma viagem pela Eslovênia, onde Handke passou sua primeira infância, e pelas ruínas de Berlim logo após a Segunda Guerra Mundial.
Nessa novela, Handke modula suas emoções, sua imagens, e oscila entre um pathos evidente para a sua suavização diante da paisagem de abetos cobertos por neves. O que é uma morte diante do mundo? O que é um suicídio da mãe diante da nossa pequenez e as paisagens que nos cercam por todos os lados? Esse romance é exímio nas modulações do mote subjetivo, o prenúncio do que hoje chama-se “autoficção”, e uma descrição que conduz o olhar do leitor como se fosse uma câmera, uma fotografia, uma imagem do mundo mediado por letras.
Em 1981, Handke publica História de uma infância, outro livro abertamente autobiográfico e que faz parte de uma importante tetralogia – composta por História da infância, Sobre as aldeias, Lento retorno e O mestre de Sainte-Victoire. Nessa curta novela, ele faz um relato da sua experiência como um pai solteiro; de como educou sozinho sua filha Ânima, depois que obteve a sua guarda. Sem datas, nomes nem períodos claros, a infância passeia límpida pela pena de Handke entre verões, outonos, invernos, primaveras. Sua criança torna-se criança enquanto ele se transforma em um pai. Não há mais uma clássica separação de sujeito e objeto, mas um mútuo processo de constituição da criança no pai e do pai na criança; numa dinâmica delicada, tensa, que algumas vezes reforça o patriarcalismo para, outras, sublimá-lo.
O deslocamento, a aposta na descrição e a Ekphrasis
Em 1984, Peter Handke lança o livro O mestre de Sainte-Victoire, mistura de ensaio, com um percurso de formação, no qual ele se fia nas imagens, nos locais e nos fios deixados por Paul Cézanne em Aix-en Provence, onde o pintor viveu os últimos anos da sua vida. Handke viaja para Aix-en-Provence e é esse trajeto que ele descreve com afinco e minúcia.
Ao se aproximar de Cézanne, Handke faz da sua prosa um gesto muito bem refletido que suscita uma nova forma de paisagem. Se em Hopper a paisagem ainda é representativa, edulcorada por um belo clássico, e mimética, com Cézanne ela é uma forma de proximidade, uma maneira de estar presente quando ausente, ou ausente quando presente. É uma paisagem evidentemente materialista, na qual se vêem as pinceladas, os traços e, aos poucos, de tanto pintar a montanha por anos e anos a fio, Cézanne passa a vê-la no instante e nas flamas da sua desaparição. As pinceladas tornam-se mais esparsas. Elas ocorrem enquanto simultaneamente esboçam uma desaparição. É aqui que vemos o cerne da influência de Cézanne: gesticular para uma escrita, uma imagem, que pisque um desaparecimento no mesmo instante em que acontece, num ato estético que conjugue presença com desaparecimento. Numa das descrições que faz do quadro de Cézanne, Handke chega ao conceito de Coisa-Imagem-Escrita (Ding-Bild-Schirft).
Indissociáveis, a materialidade, a imagem, e mesmo a escrita precisam pulsar na mesma vibração. Como se Handke se voltasse contrário a um certo cisma iconoclasta que maculou a história da literatura ocidental, no qual a imagem prescinde da palavra e esta daquela. Ao remeter à Cezanne, Handke busca uma ontologia da escrita que não negue a imagem e uma forma de despertar imagens que não faça do verbo um suporte expressivo de representação. Cézanne e Heidegger, juntos, tornam-se os profetas de uma escrita que busca sua própria espacialidade para emergir como um evento autônomo, independente. Se, para Heidegger, o ser ocorre num aparecimento e numa ocupação do espaço – instaura uma temporalidade própria que o cria enquanto é criado – a escrita de Handke torna-se, delicadamente, uma experiência sensível dessas elaborações estéticas e filosóficas.
Em O mestre de Sainte-Victoire, Handke passa, deliberadamente, a ser um adepto das Ekphrasis. Na sua acepção mais difundida, Ekphrasis são descrições verbais de obras visuais. São formas de aludir a imagens que não estão diante dos olhos. Imagens ausentes, que o verbo reacende numa química efêmera, fugidia, fulgaz. Permeada pela perda, pela sombra do Ut pcitura poesis de Horácio – da pintura como poesia – e, sobretudo, maculada pela desaparição, a Ekphrasis assume-se mais frágil que uma narração, uma narrativa, ou mesmo a ação aristotélica, já que ela gera imagens individuais, ausentes e distantes de telas, imagens íntimas e subjetivas dos eventos que descreve. De certa forma, o projeto poético-literário de Handke visa trazer novas faíscas visuais às imaginações, à força das imagens que cada palavra carrega e transmite consigo – sozinha, no seu choque, na sua combinação com outras e outras palavras.
Peter Handke e o cinema
Desde o início da sua carreira como escritor, o cinema pairou sobre horizonte de Handke. Ele foi cinéfilo, roteirista de obras seminais de Wim Wenders, com quem colaborou em pelo menos quatro filmes, e, por fim, possui uma obra cinematográfica individual. Deve-se, primeiramente, salientar que Handke não é um caso isolado de escritor-cineasta. Na geração literária européia do pós-guerra havia um constante estímulo de produtoras de cinema e de televisão em convocar escritores para realizar roteiros e filmes. Como se fosse o projeto de reconstruir as ruínas da guerra perpasse por reunir escritores e as novas mídias. Escritores da Escócia à Itália, como Peter Weiss e Pier Paolo Pasolini, e sobretudo escritores franceses vinculados ao nouveau roman, como Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras, construíram obras cinematográficas paralelas à suas literaturas.
Com Wim Wenders, Handke foi roteirista da sua própria novela O medo do goleiro diante do pênalti. Em seguida elaborou uma livre adaptação de Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, que tornou-se o filme Movimento em falso. Por fim, em 1986, colaborou com as falas de Asas do desejo, talvez o filme mais famoso da parceria entre Handke e Wenders. Bem recentemente, em 2016, essa parceria obteve a filmagem de Os belos dias de Aranjuez, realizado em 3D, e como uma adaptação de uma peça homônima de Handke.
Um tanto bissexto, o diretor Handke realiza filmagens nos intervalos seus trabalhos literários, como se fosse um refúgio, um descanso dos seus tormentos com as palavras. Em 1971, a TV alemã o contrata para dirigir Chronick der laufenden Ereignissen, uma obra experimental que flerta com a performance, elementos do teatro do seu tempo e atores que também estiveram em suas peças dos anos setenta. Em 1978, Handke filme em Paris A mulher canhota, certamente seu filme mais melancólico, que possui sua antiga casa como locação. Lançado no Festival de Cannes, mostra o auge literário-cinematográfico de Handke. Em 1985, ele realiza em Salzburg a adaptação de La Maladie de la Mort, romance homônimo de Marguerite Duras, o qual inicia-se com a mão do diretor escrevendo e traduzindo o romance de Duras, como se o ato de escrever filmes fosse sempre uma tradução de um meio, de uma mídia para a outra. Por fim, em 1992, Handke realiza A ausência, que é, sem dúvida, o seu filme melhor acabado, no qual atores como Bruno Ganz e Jeanne Moreau contracenam em sequências que impregnam na memória e enaltecem belas paisagens de vários deslocamentos pela Europa. Em cada um desses filmes, é a escrita e seu abandono que Handke busca, de forma obsessiva, recorrente, incansável. Escreve enquanto filma e filma para escrever de outra forma, para forjar uma auto-transformação.
Handke foi obsessivo em buscar uma escrita performática, que instaura um movimento. Uma escrita que inventa um local e que se furta, propositadamente, do fardo de uma representação, de uma imitação, de uma mimésis. Uma escrita não restrita ao livro, às tradicionais mídias da literatura, mas que se declina em imagens, palcos, filmes. Uma escrita que aposta na descrição, para elaborar lentas imagens que instaurem uma duração. É assim, numa aposta radical e consistente de escrita que Handke arrisca-se e risca, simultaneamente, algumas das tradições literárias mais naturalizadas dentro da história da literatura. O riso traçado por Handke é duplo, sempre ambivalente, e é por isso mesmo ele, em si, outro gesto de escrita.
Pablo Gonçalo é doutor em Comunicação pela UFRJ e professor adjunto do curso de Audiovisual e Publicidade da UnB