Perverso e delicado

Perverso e delicado

Poucos intérpretes chegaram tão perto do marquês de Sade quanto Roland Barthes.

 

Há sempre algo de perverso nas leituras de Roland Barthes. Há sempre algo de desviante nas interpretações que ele oferece ao leitor. Tome-se, por exemplo, o livro Sade, Fourier, Loyola ao abordar o libertino, sua atenção recai, não na violência do desregramento erótico como é corrente, mas na volúpia da linguagem; no utopista, ao invés de reiterar a imagem contestatória do revolucionário, ele sublinha a “gulodice da palavra”; no jesuíta, não é o místico abandonado à interlocução divina que o atrai, mas o sujeito “arrebatado pelo jogo da escrita”. Trata-se, portanto, de uma crítica que evita os sentidos genéricos e consagrados, para explorar os pormenores, as miudezas, as filigranas do texto.

Focado nas particularidades, o olhar de Barthes para a literatura – essa “mestra de nuances”, segundo se lê em O neutro – guarda forte afinidade com seu modo de ver a fotografia. Ao studium, que concentra mensagem histórica da imagem segundo os códigos culturais, impõe-se o punctum, o detalhe significativo que se apodera da sensibilidade do observador e produz a elaboração mental da foto. Como se saltasse da cena, o ponto destacado pelo olhar incita a uma contemplação de caráter íntimo, muitas vezes tocando em aspectos essenciais da vida, como o amor e a morte.

De fato, essa chave interpretativa pode perfeitamente valer para a atividade de leitura, já que ela também aciona formas de conhecimento investidas pelo afeto. Assim, se a melhor foto é aquela que, aguçando nossa consciência afetiva, nos convida a fechar os olhos e divagar, como propõe o autor em A câmara clara, o melhor texto é igualmente aquele que nos conduz às paisagens interiores. Não é por outra razão que Barthes está sempre atento às repercussões da escrita na existência do leitor, em especial quando elas se transformam em fonte de prazer. E isso acontece, diz ele, precisamente “quando o texto ‘literário’ (o livro) transmigra para dentro de nossa vida, quando esta escritura (a escritura do Outro) chega a escrever fragmentos de nossa própria cotidianidade, enfim, quando se produz uma co-existência”.

Esboça-se aí uma convivência íntima entre escritor e leitor. Melhor dizendo, uma amizade que, sendo tão silenciosa quanto intensa, supõe a descoberta de um campo particular de afinidades eletivas que se sustenta, sobretudo, no prazer da leitura. Por isso, completa o crítico em Sade, Fourier, Loyola, o ato de ler pode ser atravessado por uma espécie de ordem fantasmática, advinda dos detalhes, dos gostos e das inflexões de cada autor. Trata-se, para o leitor, de encontrar na escrita um sujeito oculto que se manifesta como “um simples plural de encantos”, como “o luar de alguns pormenores tênues”, ou ainda como “um canto descontínuo de amabilidade”. Descobre-se, assim, que o escritor é “um sujeito para se amar, mas tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”.

 Barthes, leitor de Sade

Com um tal ponto de partida, não estranha que o autor de O prazer do texto ofereça novas e inesperadas chaves de leitura ao abordar uma figura tão susceptível aos estereótipos como o marquês de Sade. Cada ponto – não deveríamos dizer punctum? – que lhe chama a atenção no escritor setecentista parece estar em franco desacordo com o “sadismo” muitas vezes reiterado como seu traço distintivo. Seja a maneira provençal de que se vale o libertino ao empregar a expressão milli (senhorita) quando nomeia as jovens destinatárias de sua correspondência, ou então o registro minucioso de suas preferências gastronômicas nas cartas de prisão; sejam as descrições dos figurinos ostentados nos rituais devassos da Sociedade dos Amigos do Crime, ou ainda o detalhamento rigoroso da mobília do deboche no castelo de Silling – o que Barthes pretende revelar do criador de Justine é, como ele mesmo definiu, sua “felicidade de escritura”.

A visada do crítico recai, portanto, na tessitura das palavras. Valendo-se desse desvio, ele liberta Sade de suas cauções tradicionais – o mal, a violência, o egoísmo –, para então realçar o “princípio de delicadeza” que preside toda a linguagem do deboche, cujo fundamento repousa precisamente nos gostos, nos caprichos, nas fantasias. A delicadeza sadiana, afirma Barthes, não é um produto de classe, um atributo de civilização, um estilo de cultura: ao contrário, ela é uma operação verbal que surge invariavelmente para contrariar as expectativas e, por isso mesmo, constitui “uma língua absolutamente nova, fadada a subverter (não inverter, mas antes fragmentar, pluralizar, pulverizar) o sentido mesmo do gozo”. A delicadeza sadiana, conclui o autor em O neutro, é pura perversão.

Ora, como não perceber aí traços daquela co-existência que, reunindo autor e leitor num espaço fantasmático, faz com que a escrita de um descreva o outro? Como então deixar de associar a admiração barthesiana pelo marquês à sua reiterada afirmação da singularidade do desejo? Como, enfim, não reconhecer no elogio à inclinação perversa dos princípios libertinos – inclusive a delicadeza – a utopia de burlar o paradigma a todo custo, moto perpetuo de Barthes? Tal como num jogo de espelhos, o ensaísta e o escritor se repercutem mutuamente nesses textos, deixando a descoberto um projeto singular que, sendo pessoal e crítico a um só tempo, visa a identificar a “verdade do afeto”.  

Por certo, um projeto ousado como esse comporta riscos. Nem sempre as afirmações de Barthes sobre Sade são convincentes, sobretudo se confrontadas com as leituras de outros intérpretes vigorosos, como Annie Le Brun, Marcel Hénaff ou Michel Delon, que tendem a privilegiar o pensador sobre o literato. Convém lembrar, nesse sentido, que o próprio marquês insistiu, em diversas passagens de sua extensa obra, no diferencial de seu “modo de pensar” – determinado por um trabalho conjunto e intensivo do corpo e do espírito –, o que por certo supõe uma dimensão mais existencial que literária.

 Essa vertente interpretativa, justamente por privilegiar a experiência instituída pelo pensamento, pode levar a caminhos bastante distintos daqueles apresentados por Barthes. Por exemplo, ao defender a idéia de que a viagem dos personagens sadianos nada ensina, e, ainda em Sade, Fourier, Loyola, sustentar que ao libertino não interessa educar este ou aquele personagem, mas somente o leitor, suas conclusões talvez sejam apressadas. Basta lembrarmos do intenso processo de educação para o crime por que passa a menina Eugénie, em La philosophie dans le boudoir, para discordarmos. O que não dizer, então, do monumental Les 120 journées de Sodome, a que o próprio autor alude como “escola de libertinagem” onde, além de se rememorar todos os requintes do vício, também se formam novos adeptos do deboche, como é o caso da personagem Julie?

Contudo, discordar de Barthes exige certo cuidado, já que seu texto não parece vir com o objetivo de provocar polêmicas, e isso faz com que confrontos dessa ordem percam a razão de ser. A rigor, ele não é um autor provocativo, mas sim desejoso de estabelecer com o interlocutor uma via sensível de comunicação, como se acreditasse que as diferenças de interpretação podem coexistir sem engendrar conflitos. Assim concebida, cada nova leitura surge apenas para acrescentar algo ao texto de referência, sem ter que destruir as anteriores. E não é isso que podemos depreender de quem sonha, na Aula, com “um luxo que toda sociedade deveria proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quantos desejos houver”?

Nada mais delicado, convenhamos. Nada mais perverso. Nada mais sadiano. Por isso mesmo, para além das divergências de leitura, talvez se possa afirmar que poucos intérpretes chegaram tão perto do marquês de Sade quanto Roland Barthes.

Eliane Robert Moraes
é crítica literária e professora titular de Estética e Literatura na Puc-SP e no Centro Universitário Senac-SP. Publicou, dentre outros, Sade – A felicidade libertina (Imago, 1994) e O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002).

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