Percepção de risco e exposição ao vírus na pandemia
O fator Bolsonaro explica muito, mas não explica sozinho o estado de coisa em que nos encontramos (Foto: Fernando Alves)
Fevereiro de 2021 termina com grande parte do sistema de saúde dos estados e municípios brasileiros entrando em colapso diante da nova onda de Covid-19. Há pelo menos um mês a chamada média móvel está acima de mil mortes por dia. As novas e mais contagiosas variantes da doença saturam a capacidade dos hospitais ao mesmo tempo em que incapacitam os médicos e enfermeiros da linha de frente.
Já completamos um ano convivendo com a tragédia, e a sensação que se tem é que voltamos ao pior patamar alcançado no ano de 2020, se é que não estamos em pior situação. Um pesadelo sem fim.
O bolsovírus
Sabemos, claro, que não estamos nesta situação por acaso. Os especialistas têm muita clareza de que muitas dessas 250 mil mortes teriam sido evitadas se não tivéssemos no comando do país Jair Bolsonaro, sua incapacidade de gestão, seu narcisismo de louco que não permite compartilhar poder e cercar-se de gente competente, suas convicções de fanático avesso a ciência e a conhecimento, sua paranoia política que lhe impede de escutar quem quer que não seja convertido às suas crenças ideológicas e pensar um país para todos. O fator Bolsonaro explica por que faltam vacinas, por que não há um cadastro de vacinados nem uma fila clara e indiscutível de vacinação, dentre outras tantas coisas que todo mundo sabe.
Mas nem toda autoridade política no país é composta de gente de padrão moral tão vil a ponto de politizar ao extremo, e da forma mais amesquinhada, medidas sanitárias, de um lado, e a vacinação da população, do outro. Nem da combinação absolutamente letal de uma personalidade paranoica – que resolve ser presidente República e ministro da Saúde ao mesmo tempo por não confiar em mais ninguém – com um perfil de incompetência tão absoluto que nada que não possa ser realizado apenas com saliva, factoides, perdigotos, maldade e insultos é efetivamente feito pelo governo central do país.
Temos gestores dignos nos estados e municípios que tiveram respaldo da opinião pública e do STF para, na medida do possível, tomar medidas para minorar a pandemia para os seus governados. Além disso, tivemos um jornalismo que, em geral, foi responsável, consciencioso e corajoso ao ponto de enfrentar a insensatez mortal do presidente e dos seus seguidores do movimento bolsonarista. Sem mencionar os pesquisadores e divulgadores científico que foram aos meios tradicionais e aos meios digitais de comunicação para defender fatos e evidências e enfrentar as campanhas de fake news e narrativas de complôs da extrema-direita.
Entretanto, apesar de tanta informação de qualidade e de tantos gestores que assumiram corajosamente todas as medidas possíveis para a evitar a disseminação acelerada da doença e a sobrecarga dos hospitais, uma parte da população desafiou as informações oferecidas, desobedeceu às determinações das autoridades para uso de máscara facial, isolamento e lockdown, e sabotou todas as medidas sanitárias consideradas essenciais para evitar o estado de coisa em que nos encontramos.
Por que uma parte dos cidadãos insiste em se expor ao vírus?
É da mentalidade dos brasileiros que as explicações preferidas para os problemas sociais coloquem a maior parte da responsabilidade nos ombros de quem governa. E Bolsonaro e Pazuello facilitam esse trabalho, tanto pelo que não fizeram quanto pelos seus feitos e malfeitos. Mas o fato da inépcia e da sabotagem das duas patéticas figuras não explicam, sozinhas, as festas clandestinas durante a pandemia; as aglomerações, a resistência ao uso de máscaras em lugares públicos, a recusa a cooperar com regras mínimas de isolamento social.
E, é claro, não vamos nos iludir,
nem todos os que se entregaram
a este ano de desobediência civil
eram bolsonaristas, muito
embora inegavelmente parece
haver uma correlação entre a
ideologia bolsonarista e a
resistência às medidas sanitárias.
Existe uma área multidisciplinar de pesquisa desde os anos 1960 que estuda a chamada “percepção de risco”. Percepção é um julgamento subjetivo, uma opinião ou sentimento pessoal. A percepção de risco é a sensação ou julgamento subjetivo que as pessoas fazem sobre a gravidade envolvida em uma determinada situação.
Muitas das atitudes e dos comportamentos adotados pelas pessoas nesta pandemia dependem da percepção do risco de se contaminar, do risco de morrer ou do risco de que outras pessoas morram e se contaminem por causa das minhas atitudes e comportamentos. É razoável supor que quanto maior a percepção de risco de morte ou doença, maiores os cuidados e precauções, e quanto menor a sensação de que se pode morrer ou adoecer gravemente, menor adesão às medidas de saúde recomendadas e menor colaboração com as autoridades.
Muita gente não compreende como as pessoas continuam se expondo a todo tipo de risco nesta pandemia e apostam que isso decorre da falta de informação de qualidade. Mas o que menos faltou neste período foi um fluxo constante de informação correta, transparente e confiável, apesar das campanhas de desinformação do obscurantismo bolsonarista. Não é certo que todas as pessoas que se expuseram intensamente, de maneira constante ou eventual, à contaminação, eram todas mal informadas ou desinformadas, muito menos dogmáticos bolsonaristas.
Na verdade, a questão social mais relevante não é quanta informação exata as pessoas têm, mas como fazer com que as pessoas tenham percepções exatas sobre os fatores pessoais e sociais de risco, como aproximar a percepção de risco e o risco real e objetivo. O que, infelizmente, não são a mesma coisa. A sensação de risco não depende apenas de fatos, mas também da nossa mente e da nossa cultura, é uma construção psicológica subjetiva, influenciada pela variação cognitiva, emocional, social, cultural e individual que há entre pessoas diferentes e até mesmo entre sociedades distintas.
Não conheço pesquisa sobre percepção de risco e a vontade do público de cooperar e adotar comportamentos para a proteção da saúde durante pandemias no Brasil, mas há alguns estudos internacionais já publicados, inclusive comparativos, que li esta semana. Há certas descobertas que talvez nos ajudem a compreender a resistência à cooperação neste país.
Tudo indica, por exemplo, que quanto mais a informação em circulação na sociedade é magnificada, ampliada, em ambientes familiares e amigos, maior a percepção de risco e maior a adesão às políticas de prevenção e isolamento. Ou seja, quanto maior a coesão familiar na convicção sobre o risco de morrer, maior a adesão do indivíduo a esta avaliação e maior a probabilidade de que adote comportamentos correspondentes. De colaboração ou de desobediência.
Outro fator importante tem a ver com mentalidade. Quem é mais pró-social, isto é, quem pensa que é importante fazer coisas em benefícios dos outros e da sociedade mesmo que isso lhe custe pessoalmente alguma coisa, tem mais percepção de risco e, portanto, expõe-se menos à contaminação. Por outro lado, quanto mais individualistas forem as suas visões de mundo, menos riscos as pessoas percebem. Aqui temos um componente interessante, onde a posição ideológica na polarização política é muito importante, mas também conta a diferença entre uma mentalidade mais e menos hedonista, voltada para a própria satisfação e prazer. Perspectivas individualistas e perspectivas pró-sociais são decisivas para a sensação de risco e, portanto, para a adoção ou rejeição deste ou daquele comportamento.
Além disso, quem teve experiência direta e familiar com adoecimento grave e morte percebe, naturalmente, mais riscos em comparação com aquelas que não tiveram experiência direta.
A confiança na ciência e no pessoal da saúde foi constante e positivamente correlacionadas com a percepção de risco. Assim como se descobriu que os homens têm percepções de riscos mais baixas do que as mulheres em muitos países. É de se esperar também, por observação, que jovens se sintam mais invulneráveis que velhos, que esportistas se considerem menos vulneráveis do que sedentários.
A conclusão é que talvez as campanhas de comunicação nesta pandemia, as governamentais e as das empresas de jornalismo e de plataforma, não tenham entendido que comportamentos não são modificados apenas com base em informação ou dados exatos, confiáveis e atualizados. Que entre a informação, de um lado, e a atitude e o comportamento, do outro, estão os julgamentos subjetivo e intersubjetivo sobre riscos e sobre a própria imunidade. Que a sensação de risco é socialmente negociada com base nas experiências pessoais e sociais, nos valores e nas crenças na própria invulnerabilidade. Uma campanha de comunicação precisaria também ser uma campanha de comunicação de risco, para diferentes públicos, entendendo exatamente, portanto, como cada um deles avalia o próprio risco de se contaminar ou morrer.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)