Pequeno glossário gramsciano
Alvaro Bianchi, professor da Unicamp, e Daniela Mussi, professora da UFRJ, explicam alguns dos conceitos básicos do filósofo italiano Antonio Gramsci:
Bloco histórico
O conceito, inspirado na obra de Georges Sorel (1847-1922), foi utilizado por Gramsci para repensar as relações entre estrutura-superestrutura em uma chave anti-economicista. Expressa a unidade entre estrutura e superestrutura, natureza e espírito. No bloco histórico, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias, as formas. Mas essa distinção entre forma e conteúdo é apenas didática, uma vez que na realidade histórica as forças materiais não seriam concebidas sem suas formas e as ideologias não teriam eficácia sem essas forças materiais. O conceito de bloco histórico não designa uma aliança de classes ou partidos políticos.
Cultura
Tema persistente nos escritos de Antonio Gramsci, cultura adquiria sentido amplo e uma série de desdobramentos em seu pensamento. Nos artigos de juventude, a cultura aparecia associada à atividade intelectual necessária para o fortalecimento “interior” do ambiente socialista, capaz de superar tanto as reduções neopositivistas do marxismo como o neoidealismo que avançava sobre as ideias de Karl Marx, revisando-as e incorporando-as em um paradigma liberal. Nos cadernos redigidos da prisão encontramos essa concepção ampliada e complexificada, resultado do interesse e contato de Gramsci com a experiência soviética desde 1917, além dos demais desdobramentos da crise aberta com a I Guerra Mundial na Europa, especialmente na Itália sob o fascismo. A cultura passava a ser pensada, ainda, como reforma intelectual e moral, ou seja, como o coração de uma estratégia de organização política. Também era investigada como parte de uma nova historiografia que reconhecia na formação do Estado moderno a unidade contraditória entre as formas da vida e atividade de governados e governantes.
Estado
Nos Cadernos do cárcere o conceito de Estado aparecia de duas maneiras. Primeiro, em um sentido mais usual na linguagem política corrente, o Estado designava a sociedade política, o conjunto dos aparelhos governativos e coercitivos que permitem realizar as funções de domínio. Em sua segunda acepção, o termo adquiria maior complexidade e passava a designar o conjunto de instituições da sociedade civil e da sociedade política, unificando, desse modo, as funções de direção (hegemonia), próprias da sociedade civil, e de dominação, características da sociedade política. Nesta última acepção o conceito de Estado assume, segundo Gramsci, uma dimensão orgânica e mais ampla, integral. Esta maneira de conceber o Estado é, frequentemente, é sintetizada na fórmula de “Estado ampliado”, embora a expressão não apareça nos Cadernos do cárcere e seja da lavra de Christine Buci-Glucksmann .
Filosofia da práxis
Trata-se de uma expressão emprestada por Gramsci do filósofo italiano Antonio Labriola (1843-1904), mais precisamente do livro Discorrendo di socialismo e di filosofia (1898) onde aparece a ideia de que “a filosofia da práxis é a medula do materialismo histórico”. Nos Cadernos do cárcere, Gramsci usou essa expressão em substituição a termos como “marxismo” e “materialismo histórico”, o que levou muitos intérpretes a considerá-la uma estratégia de escrita para evitar a censura fascista e outros tantos a supor o abandono das ideias de Marx. Esta segunda hipótese não se sustenta e a primeira, embora possua alguma consistência, não dá conta do fato que Gramsci absorveu a fórmula de Labriola em uma agenda de pesquisa da relação estabelecida por Marx com as tradições filosóficas dominantes em seu tempo, particularmente com a filosofia hegeliana. Gramsci valorizava o fato de Labriola ter sido o primeiro intelectual a identificar a “dignidade filosófica” do marxismo e considerá-lo como uma “cultura superior” em relação àquelas tradições. Partindo dessa premissa, o pensamento gramsciano avançou na elaboração de hipóteses de trabalho para estudo da circulação da filosofia da práxis depois da morte de seu criador, identificando dois caminhos principais: o de popularização das ideias de Marx por correntes simpáticas ao seu pensamento (o “marxismo oficial” em sentido restrito), o qual tendeu a subsumir o marxismo na filosofia materialista; e o de absorção das ideias de Marx por correntes intelectuais rivais ao seu pensamento (dentre as quais o neoidealismo era a mais importante). Em relação a esses dois “revisionismos”, por fim, a filosofia da práxis gramsciana era, antes de mais nada, a retomada de uma agenda de trabalho intelectual que apontava para a reunificação entre alta cultura e cultura popular, entre Renascimento e Reforma.
Hegemonia
O conceito, usual no léxico político do movimento socialista russo desde o início do século 20, era utilizado para designar o papel dirigente do proletariado em uma aliança de classes. Nos Cadernos, Gramsci fez um uso original do conceito no âmbito de sua nova teoria do Estado integral e o utilizou, em primeiro lugar, para estudar o papel do partido moderado na unificação italiana. Afirmou que os moderados haviam exercido uma atividade hegemônica antes de chegar ao poder, ou seja, que haviam sido capazes de dirigir política e culturalmente os grupos sociais aliados. A hegemonia, entretanto, só se realizaria plenamente quando os grupos políticos dirigentes pudessem mobilizar o aparelho estatal e implementar um programa pedagógico que lhes permitissem concentrar as forças intelectuais da nação e afirmar por meio delas uma nova concepção de mundo. Gramsci ora afirmou que hegemonia é igual à direção política e à organização do consenso exercida no âmbito da sociedade civil; ora que a hegemonia se caracteriza por uma combinação de coerção e consenso, ou seja, de dominação e direção, às quais em uma situação “normal”, própria das democracias representativas, se encontrariam em uma relação equilibrada.
Intelectuais
No pensamento de Gramsci, o conceito de intelectual foi ampliado ao longo do tempo em relação ao sentido habitual (como atividade profissional, formalmente estabelecida, no mundo das letras) e intimamente associado ao desenvolvimento dos conceitos de Estado integral e de hegemonia. Seria especialmente na sociedade civil que os intelectuais operariam e sua principal função seria a de organização e conexão desta com a sociedade política. Objeto de reflexão central nos escritos antes e depois da prisão, os intelectuais sempre estiveram no centro do pensamento de Gramsci. Antes da prisão, apareciam em seus artigos jornalísticos como tema e ponto de partida para a crítica das correntes político-culturais italianas e europeias. Contudo, com o ensaio Alcuni temi della questione meridionale, redigido nos primeiros meses de 1926, pouco antes da prisão, os intelectuais passaram à condição de objeto consciente de investigação. Gramsci desenvolveu a hipótese interpretativa de que na Itália a hegemonia burguesa Setentrional se realizara depois da unificação nacional por meio da formação de um “bloco intelectual” responsável pela coesão do “bloco agrário” apesar da desagregação social da região Meridional nesse processo. Grandes intelectuais meridionais, como o filósofo Benedetto Croce (1866-1952), eram os expoentes desse bloco, formado ainda por intelectuais pequeno-burgueses que passaram a compor o pessoal estatal depois do Risorgimento. Já nos Cadernos do cárcere, a pesquisa sobre os intelectuais foi expandida e diversificada, dando lugar a uma história transnacional das correntes intelectuais na modernidade. Nesse novo momento, o estudo dos intelectuais foi inserido em um plano de estudos sobre as vicissitudes da expansão da experiência de formação dos Estados modernos, os efeitos desagregadores e as tendências de integração global contidas neste processo, bem como sobre as crises resultantes dos choques culturais, políticos e sociais resultantes dessa experiência.
Revolução passiva
A expressão apareceu originalmente na obra de Vincenzo Cuoco (1770-1823) em sua obra sobre a revolução napolitana de 1799, na qual o povo não teria tomado parte e teria permanecido passivo. Gramsci utilizou o conceito para explicar o Risorgimento, o processo de formação do Estado nacional italiano no século 19, como uma “revolução sem revolução”, a qual, diferentemente da Revolução Francesa, teria ocorrido por meio de mudanças graduais e sem uma ruptura revolucionária. A seguir, expandiu o uso do conceito, primeiro para explicar o processo de formação dos Estados nacionais europeus por meio de uma série de reformas ou de guerras nacionais que teriam ocorrido sem uma fase jacobina; depois para analisar o americanismo e o fascismo, como processos de transformações moleculares nos quais o Estado assumiu a função dirigente. Nas revoluções passivas as transformações políticas e sociais se caracterizariam por processos de conservação e inovação, preservando as antigas relações sociais, ao mesmo tempo que estas eram atualizadas, permitindo seu desenvolvimento sob novas formas.
Senso comum
Era para Gramsci “a concepção de vida e moral mais difusa” de uma pessoa ou grupo social, ou seja, uma “visão de mundo” de caráter incoerente e fragmentado. Em Gramsci o senso comum não era concebido de maneira imóvel ou rígida, mas sempre como resultado de processos históricos que produzem a fixação temporária de opiniões filosóficas, noções científicas, culturais, econômicas etc. Por esse motivo, com o tempo toda “concepção de vida” seria deslocada por novas concepções com as quais passa a conviver como “sedimentação” de concepções passadas. A expressão “senso comum” acompanhou a pesquisa de Gramsci nos Cadernos do cárcere desde o início. Aqui, encontramos a ideia, análoga à reflexão a respeito dos intelectuais, de que todo estrato social possui o seu senso comum e, portanto, que em uma sociedade muitos sensos comuns convivem entre si. Assim, o conceito de senso comum seria difuso e não se aplicaria apenas a um grupo social, movimento analítico que permitiu a Gramsci realizar uma completa renovação do conceito de ideologia e de sua relação com a política. Assim como a ideologia, o senso comum corresponderia ao momento de reprodução e circulação de uma determinada concepção de mundo e indicaria o funcionamento normal da hegemonia de um grupo dominante. Contudo, apesar de existir nas mais diversas e contraditórias formas, por meio de “tortuosidades” e fragilidades de tipo lógico ou, ainda, como visão de mundo atrasada, o senso comum nada mais seria do que a forma popular das filosofias dominantes passadas. A percepção de uma visão de mundo como “senso comum”, portanto, seria um dado histórico relevante que indicaria não apenas a passagem de uma filosofia para o campo do folclore, mas a presença de outro elemento ativo nos processos de conformação das visões de mundo populares: o bom senso.
Sociedade civil
Nos Cadernos, Gramsci iniciou sua reflexão sobre a sociedade civil distinguindo o sentido que comumente era encontrado nos escritos dos intelectuais católicos, como sinônimo de Estado, em confronto com a Igreja e a família, do sentido que atribuía a Hegel, e com o qual concordava, no qual a sociedade civil era o conteúdo ético do Estado. Enquanto a sociedade política seria o lugar da violência e da coerção, na sociedade civil ocorreria a organização do consenso por meio dos aparelhos privados de hegemonia política e cultural, tais como partidos, sindicatos, igrejas, escolas, universidades, revistas, jornais, etc. A sociedade civil não era, para Gramsci, um lugar no qual apenas a autonomia dos sujeitos e projetos emancipatórios teriam lugar, nem uma esfera contraposta ao Estado e ao mercado, como em certas leituras contemporâneas. Nos Cadernos, a sociedade civil era um espaço do conflito entre forças hegemônicas antagonistas. Nas sociedades modernas e de capitalismo avançado, esse espaço do conflito seria decisivo, uma vez que o conjunto de aparelhos privados constituiriam um sistema “trincheiras e fortificações” que tornariam o ataque direto aos centros de poder, a guerra de movimento, ou inviável, ou ineficaz.
Subalternos
As expressões “grupos subalternos” ou “grupos sociais subalternos” apareceram sempre no plural nos Cadernos. Gramsci não utilizou essas expressões como sinônimo de classe operária ou de proletariado. Elas assumiram um sentido mais amplo, abarcando um conjunto de grupos sociais heterogêneos os quais teriam em comum uma posição de subordinação política na sociedade. A história desses grupos, segundo Gramsci, seria marcada pela fragmentação e por episódios de rebelião espontânea. A cultura dominante tenderia a marginalizar e impedir a unificação desses grupos, reafirmando constantemente a subordinação destes. Para superar essa condição subalterna, ou seja, para pôr um fim à subordinação, seria necessário imprimir a essa atividade espontânea uma direção consciente, capaz de afirmar e conquistar a autonomia desses grupos, o que só ocorreria mediante um longo e complexo processo que teria seu início no âmbito da sociedade civil.
Para saber mais:
Gramsci entre dois mundos: política e tradução
Alvaro Bianchi
Autonomia Literária
360 páginas – R$ 60
Socialismo e Liberalismo antes do Fascismo
Daniela Mussi
Zouk
206 páginas – R$50