Pequeno glossário fanoniano
Complexo inato, complexo de inferioridade, ego, colonizado: entenda conceitos fundamentais na obra de Frantz Fanon (Foto: Reprodução)
Amor-fracasso
O amor-fracasso entra nas linhas de Fanon quando ele analisa a posição do reconhecimento de si do indivíduo racializado. Trata-se de uma observação acerca da impossibilidade de um verdadeiro amor ante um mundo racializado/racista. Em primeiro lugar, a categoria Outro é fundamental na relação do amor fenomenológico. O Outro guarda um segredo, um segredo que é o que sou. Esse Outro é, na verdade, o que indica algo sobre o que sou. Desse modo, esse Outro detém as condições do meu ser ao mesmo tempo que é aquele que me faz saber que há um ser que sou Eu. O que é a relação de amor? Um projeto de recuperação de nosso ser das mãos desse Outro. É o Outro que me dá indicação de como posso recuperar o meu ser. Assim, eu tenho um ser que é um ser-para-outro, eu afirmo o Outro na medida que eu nego que sou o Outro. Se eu quero encontrar meu ser nesse Outro, isso pode ser feito na medida em que eu tenho que diluir esse meu ser. Isso indica algo fundamental para Fanon: é na alteridade que reside minha possibilidade de compreensão. O amor, nesse sentido, é central porque estabelece uma relação de ser Outro para si mesmo. O reconhecimento de Si surge aqui como algo fundamental e que será fatalmente impossibilitado numa sociedade racista. Portanto, impondo para o racializado o amor como um fracasso. Querer ser amado é, para Fanon, impregnar o Outro com nossa própria existência, é constrangê-lo a recriar a nós mesmos perpetuamente como condição de uma liberdade que se submete e se compromete. O amor é aquilo que possibilita a entrada no nosso ser. O amor que se sabe verdadeiro permite meu acesso ao ser que sou em processo justificando minha existência. Ora, se o amor é local em que o reconhecimento se dá e são removidas quaisquer barreiras; se a nossa vida e nossa existência objetiva implica a existência do Outro e a liberdade dele fundamenta nossa essência, como falar de amor numa sociedade em que o racismo fundamentou uma diferença essencialista? É aqui que Fanon debate se a entrega de um amor verdadeiro só é possível com “instâncias psíquicas fundamentalmente liberadas de conflitos inconscientes”, e para que isso ocorra é necessário superar a estrutura que promove a racialidade/racista. O amor-fracasso é o amor impossibilitado pelo apego a racialização.
Cissiparidade
Diferença na relação de tratamento entre um branco e um homem de cor e entre um homem de cor e outro. Diferença que significa assimetria na relação e que envolve a dialética da suposta superioridade (branca) e a construção da inferioridade (negra) por meio da linguagem em sua múltipla expressão.
Complexo inato
Forma racializada de atribuir característica essencialistas a grupos humanos ou indivíduos de acordo com diferenças historicamente construídas e determinadas. O complexo inato é aquele que exemplifica o “natural” comportamento de um indivíduo de cor e sua diferença em relação ao homem branco. De origem positivista, Fanon demonstra como a noção de um complexo inato dado a um humano (exemplo, um negro sempre agirá de determinada forma) se origina na racialização e no racismo inerentes à sociedade colonizada.
Complexo de inferioridade
Inclui a noção fanoniana de que a psicologia do negro, como construto lógico da dominação colonialista, é neurótica-obsessiva e, portanto, não consegue executar nenhuma retração que evite o desprazer, pois carece da sanção do branco. O ego do negro no colonialismo, segundo Fanon, torna-se unilateral perdendo assim interesse por suas atividades e por seus valores. O complexo de inferioridade é então caracterizado por uma falta (dada a perda da relação histórica com o passado) e por uma impossibilidade de ser; um déficit ontológico. Trata-se, em termos psicanalíticos, da busca por uma realização de um eu ideal que se tornou impossível pelos limites da organização social extremamente racializada e colonial.
O que se evidência no complexo de inferioridade num mundo racializado são as distorções e assimetrias geradas pelo desejo de embranquecimento como fonte de realização. Os traços epidérmicos se tornam fundamentais no complexo de inferioridade porque permite aos negros de pele clara a ilusão de se tornarem objetos de amor do branco. Um falso desejo de realização totalmente fetichista e impossibilitado pelo racismo. O complexo de inferioridade introjetado pelas relações assimétricas da racialização social fornecem não só patologias psíquicas recorrentes no homem e na mulher de cor como também sua realização subjetiva – quer do negro ou do mulato – só se efetiva pela sanção e aceitação provenientes do mundo branco. É portanto a incapacidade de reconhecimento de si e impossibilidade de realização subjetiva a partir desse reconhecimento.
Essa característica do complexo de inferioridade é muito importante porque adentra especificidades fundamentais da psicanálise e a bem dizer da filosofia. Há uma relação entre o indivíduo e o Outro, uma relação do indivíduo que pensa a si mesmo no olhar do Outro, e ainda do Outro que pensa esse indivíduo. É um processo um tanto fantasmagórico, na realidade racializada, porque inacessível em sua verdade. O que implica diversos traumas afigurados no corpo de maneira inconsciente: como devo me portar? O que devo fazer para agradar?
Colonizado
Todo povo dominado ao qual foi imposto um complexo de inferioridade, lhe foi negado o acesso ao conhecimento de Si e impossibilitado o reconhecimento. Por colonizado podemos entender um indivíduo cuja cisão do Eu se dá no interior de si próprio. Dito de melhor maneira, não há um outro que possibilite sua realização sem a completa negação de si próprio. O colonizado tem, portanto, fobia de si próprio e desprezo pelo seu Eu organizado no interior da experiência colonial. Desprezo que recai sobre os seus semelhantes. No jogo negativo de semelhança/dessemelhança o colonizado tanto mais ama o dessemelhante quando mais odeia qualquer semelhança que lembre suas próprias características. Noutros termos, o melhor, o bom, o verdadeiro e o justo, é tudo que não é ele ou que com ele se assemelha. Na psique do colonizado está inconscientemente inscrito que quanto mais próximo da metrópole, mais terá a sensação de completude de seu Ego. Essa ilusão perversa da colonialidade é algo evidenciado não só pela negação de seus costumes, como ainda pela reprodução artificial do uso das máscaras brancas, modos de linguagens que o aproximem do branco e que ilusoriamente o deixem mais próximo do “verdadeiro homem”.
Ego
Fanon trabalha a noção de Ego vinculada às grandes descobertas do inconsciente freudiano em sua múltipla tensão. Ou seja, o ego para Fanon também é aquilo que tem como sustentação o princípio da realidade; é a base da mesura das ações e empreendimento do recalque das pulsões. O ego fanoniano também adequa suas vontades e é adequado conforme o meio social inserido. Sua análise do ego, todavia, parte da construção social racializada e seus traumas impostos ao indivíduo racializado: “o homem de cor”.
Inconsciente
Na trilha de Freud, Fanon pensa o inconsciente como esse topos que veicula o grande tensionamento pulsional e compõe tanto os atos que são latentes, aquilo que ainda não veio-a-ser consciência, como aborda os processos de desejos recalcados. Logo, para Fanon, assim como Freud, diferenciando-se inclusive de Sartre, o inconsciente estabelece uma topografia que impõe uma certa logicidade aos desejos e controle do Ego. Um lugar em que estão ocultos, ou postos de forma latente, os desejos. O inconsciente para Fanon trata-se de uma topografia do aparelho psíquico composto pelo quadro geral exposto por Freud, com o adendo de que os traumas evidenciam-se pela racialidade do princípio de realidade do ego.
Linguagem
Para Fanon também o inconsciente já se constituía como linguagem. É importante esse ponto de partida porque sua análise da linguagem, e a forma de compreensão da dimensão para-um-outro do indivíduo racializado, se marcará pela cissiparidade (ver verbete anterior). O Outro, ou para-um-outro propiciado pela experiência imersa na linguagem como forma que descreve esse inconsciente, é o lugar que produz o horizonte de significados compostos pela linguagem em sua multiplicidade. A linguagem, portanto, é o lugar em que a experiência vivida do negro na própria estrutura dicotômica e racializada se dará. Ela é responsável pelo horizonte que aliena o negro e o impede não só ao reconhecimento de si, nos limites em que se assenta, como ainda, em seus limites racializados, impõe a reprodução de sua estrutura. Nesse sentido, a descida aos Infernos que Fanon nos convida a fazer, tem a ver com a suspensão da própria linguagem para seu exame radical. Possibilidade que, a despeito do pessimismo trivial, abre veredas para que o indivíduo racializado passe a reconhecer, via negação do posto pela linguagem, o próprio Si.
Petit-nègre
Forma paternalista assumida em tons condescendentes para lidar com o negro. Para Fanon, a perversão do petit-nègre reside no fato de que presume de saída não só um lugar coloquial e “semi-bárbaro” ao negro, como ainda, o infantiliza. O petiti-nègre sutilmente, ou nem tanto, vê o negro, o colonizado, ou o indivíduo racializado, como alguém incapaz de atingir a maioridade no sentido kantiano do termo. Isto é, incapaz de julgar ética e moralmente suas ações. A despeito das intenções, o que está em questão, quando se parte do pressuposto de um modo de falar e gesticular próprio ao negro, é a sua prisão ao complexo de inferioridade e aos limites segundo os quais o negro jamais poderá alcançar a polidez da língua ou um gosto estético. Dá-se um suposto complexo inato ao indivíduo negro que o determina e o aprisiona em pressupostos coloniais.
Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco?, Esboço para uma crítica à metafísica racial e Racismo.