Pequena “suíte” para vozes e silêncio

Pequena “suíte” para vozes e silêncio

 

O espetáculo Fim de partida, dirigido por Eric Lenate, com o próprio diretor no papel de Hamm, acompanhado em cena pelos atores Rubens Caribé (Clov), Ricardo Grasson (Nagg) e Miriam Rinaldi (Nell) e pelo pianista L.P. Daniel na execução da trilha sonora ao vivo (composta por ele mesmo), é um microcosmo que reúne em si inúmeros elementos do macrocosmo chamado Samuel Beckett. Talvez a maior qualidade da encenação, em cartaz no Auditório do Sesc Pinheiros, seja permitir que o texto do dramaturgo irlandês chegue até o público com a mesma inteireza, imagina-se, de suas apresentações iniciais na segunda metade da década de 1950, quando o misto de lirismo e tragicidade que lhe é peculiar causou espanto às plateias europeias por estar a serviço da dramatização das pequenas lutas por significação travadas, de modo então bastante enigmático, pela dupla de protagonistas.

Embora o enigma Beckett não tenha sido ainda hoje de todo resolvido a bem da verdade, ele nos parece um pouco menos impalpável do que há mais de meio século, muito provavelmente pelo fato de as principais obras para teatro do autor já terem adquirido a alcunha de clássicos da dramaturgia ocidental e serem, por isso, exaustivamente estudadas. Entretanto, não é pelo caminho do clássico reverenciado que opta a montagem dirigida por Lenate; tampouco pela seara do cânone a ser destruído e reconfigurado. Assim, o que chama a atenção na presente encenação é a sobriedade no trato com o texto, compensada, por sua vez, pelas tintas (fumos, talvez?) de autonomia por meio das quais ela deseja imprimir sua marca no universo da fabulação beckettiana.

Definido no programa como uma “pequena sonata dramática para piano e vozes”, o espetáculo faz da música executada ao vivo uma grande aliada dos pequenos e discretos climas instaurados no palco pela presença dos atores, como se à irresolução de palavras, gestos e intenções correspondesse a indeterminação musical adotada como procedimento pelo compositor da trilha. Durante a execução pianística uma tessitura de improvisação é tramada, harmônica e melodicamente, sem abrir mão, no entanto, de fazer uso de certos padrões recorrentes. “A cada vez que é tocada, a trilha será sempre igual e diferente”, afirmam diretor e compositor, lembrando que o procedimento surgiu na segunda metade do século 20 com o trabalho de músicos como Morton Feldmann, John Cage e György Ligeti. Para um dramaturgo tão afeito à forma como Beckett, a transformação do quarteto original de Fim de partida em um quinteto no qual o piano é apresentado como mais um personagem (cuja voz é de pura expressão formal, plenamente destituída da logicidade da palavra) é uma operação das mais consequentes.

Mesmo que não sirvam como forças-motrizes das ações, ou não ações, em cena, as palavras em Beckett adquirem função essencial, deslocando-se constantemente do terreno da dramaticidade para o campo de um lirismo tão especial que acaba por se confundir com o próprio indizível. Assim, as notas musicais que saem das teclas do piano de L.P. Daniel ora conversam com os personagens, ora silenciam diante das palavras usadas por eles, ora ainda se sobrepõem a elas, servindo-lhes de êmulos, embora cientes de gozarem da mesma fragilidade. No delicado texto que dedicou a Beckett, em Exercícios de admiração: ensaios e perfis, o filósofo romeno Emile M. Cioran se pergunta quem terá amado tanto as palavras quanto o autor irlandês: “São suas companheiras, e seu único apoio. Ele, que não se orgulha de nenhuma certeza, se sente bem seguro entre elas. Suas crises de desânimo coincidem, sem dúvida, com os momentos em que para de acreditar nelas, em que julga que a traem, que o abandonam. Sem elas, fica desarmado, não está mais em nenhum lugar. Lamento não haver assinalado e enumerado todas as passagens em que se refere às palavras, em que se debruça sobre as palavras, ‘gotas de silêncio através do silêncio’, como está escrito em L’innommable. Símbolos da fragilidade transformados em bases indestrutíveis”. O mesmo se dá com a música do espetáculo: insígnia da efemeridade do improviso convertida em firme apoio do que se logrou concretizar na cena.

Outra contribuição da trilha sonora – composta na sala de ensaio, em regime mais de exercício de improvisação com os atores do que propriamente de mero acompanhamento dos intérpretes – é o poder que ela tem de se constituir em uma espécie de duplo do intrincado jogo de oscilação entre forma e conteúdo proposto por Beckett na peça. No terceiro volume dos Cursos de Estética, Hegel nos lembra de que “o som é inteiramente abstrato diante do material das artes plásticas”. “A pedra e a coloração”, continua o filósofo alemão, “acolhem em si mesmas a Forma de um mundo amplo, multiforme dos objetos, e expõem os mesmos segundo sua existência efetiva; os sons não são capazes disso. Para a expressão musical, por isso, é unicamente apropriado o interior inteiramente sem objeto, a subjetividade abstrata como tal. Esta é nosso eu inteiramente vazio, o si-mesmo [Selbst] sem conteúdo mais amplo. A tarefa principal da música consistirá, por isso, em deixar ressoar não a objetividade mesma, mas, ao contrário, o modo no qual o si-mesmo mais íntimo é movido em si mesmo segundo a sua subjetividade e alma ideal”. Tudo leva a crer que as fabulações dramatúrgicas de Beckett conduzem ao mesmo caminho da vacuidade de conteúdo, da significação irreconhecível, dos diálogos vazados em nenhum sentido. As palavras para o autor, antes de significarem qualquer coisa, são pura música. Impossível não pensar aqui na situação agônica vivida por Clarice Lispector: “A palavra tem o seu terrível limite. Além desse limite é o caos orgânico. Depois do final da palavra começa o grande uivo eterno. Mas para algumas pessoas escolhidas pelo acaso – depois da possibilidade da palavra vem a voz de uma música, a música que diz o que eu simplesmente não posso aguentar”

A direção de Eric Lenate parece capaz de manter o texto de Beckett em seu fluxo macrocósmico (fazendo ecoar a própria fala de Clov, “Alguma coisa segue seu curso”), enquanto pequenas plasticidades microcósmicas vão sendo exploradas paralelamente pelo trabalho dos atores. Assim é possível compreender a opção do diretor por emprestar à voz de Hamm um tom marcadamente artificial, que pode remeter tanto ao ham actor (ator canastrão) que a etimologia do nome do personagem sugere quanto à ideia de apego a uma forma pura, cuja abstração estabelece relação direta com a polivalência pretendida por Beckett. (“Hamm é um trapalhão e evidentemente um medíocre jogador de xadrez, mas sua força obsessiva tem um componente intelectual, e ele é uma figura de capaz entusiasmo. Não é apenas interpretado por um ator; é um ator também nisso seguindo Hamlet, que tende a acusar-se de ser ator mesmo quando não quer”, nos lembra Harold Bloom em O cânone ocidental). Já na contramão do que se costuma esperar de Clov (clown), Rubens Caribé constrói o personagem negando-lhe a condição de bobo da corte. O ator confere ao adjuvante e antagonista de Hamm uma insuspeita dimensão interior, alternando diante desse Hamlet soberano, mas arruinado o amor de Horácio e o ódio de Laerte. Uma nova ambiguidade que se precipita em um impasse, conforme atesta, uma vez mais, Harold Bloom: “Clov em seus ressentimentos é mais Calibã que Ariel, mas não pode querer partir, porque não há lugar algum para ir”.  Ricardo Grasson e Miriam Rinaldi vivem, respectivamente, Nagg e Nell, os pais idiotizados de Hamm. O Nagg do primeiro é rude e grosseiro, tendendo à rabugice e à obstinação. Já a Nell de Miriam Rinaldi é construída por meio de um tom de sublime imbecilidade. Há um sentimento comovente que se vislumbra em sua face luminosa, embora rapidamente esse semblante se anuvie por esgares ora grotescos, ora infantis.

Alguns críticos gostam de salientar que Beckett interpretou Horácio em uma montagem na juventude na qual ninguém menos do que James Joyce desempenhava o papel de Hamlet. Tal episódio está ligado diretamente à passagem da biografia que Richard Ellmann escreveu sobre o autor de Ulysses, contando da amizade entre Joyce e Beckett (para a qual o próprio autor de Esperando Godot serviu de fonte): “Beckett era dado a uns silêncios, e também Joyce; os dois tinham conversas que consistiam muitas vezes de silêncios dirigidos um ao outro, ambos impregnados de tristeza, Beckett sobretudo pelo mundo, Joyce sobretudo por si mesmo. Joyce sentava-se em sua posição habitual, pernas cruzadas, o dedão da perna de cima sob o peito do pé da outra; Beckett, também alto e magro, caía no mesmo gesto. Joyce de repente fazia uma pergunta, tipo ‘Como pôde o idealista Hume escrever história?’ Beckett respondia: ‘Uma história de representações’”. Desse modo, seria por demais infernal pensar que toda a complexidade que há no jogo entre Hamm e Clov pudesse ser reduzida a um “mero exercício de autobiografia consciente e inconsciente” (a expressão é de Martin Esslin) – o que comprovaria a tese de Lionel Abel em Joyce the father, Beckett the son, descrita pelo próprio Esslin: “Fim de partida tornar-se-ia, no caso, uma alegoria sobre a relação entre Joyce (dominador e quase cego) e seu fascinado discípulo, que se sentiria destruído pela açambarcadora influência literária do mestre”. Como se Beckett e Joyce estivessem vivendo reclusos em uma casca de noz e ao mesmo tempo se considerassem reis do espaço infinito.

A ainda hoje estranha beleza de um texto que está completando sessenta anos irradia-se fugidiamente, como é preciso mesmo acontecer, por uma encenação que não negligencia em momento algum o hiato que se deve estabelecer entre palco e plateia, de modo a nos fazer experimentar alguma coisa de inefável, seja a desorientação de um vozerio próximo-distante, seja a inquietude de um silêncio ensurdecedor.


Fim de partida – Direção: Eric Lenate
Onde: Sesc Pinheiros – Auditório (Rua Paes Leme, 195)
Quando: Até 2 de julho; Quinta a sábado, às 20h30
Quanto: de R$ 25,00 a R$ 7,50
Info: (11) 3095-9400

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