Pensamento do tremor

Pensamento do tremor

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Tenho medo de morrer depois da morte
Tenho medo de morrer antes da vida”
Daniel Faria

 

A água veio do sol, disse o breu (Circulo de poemas) de Marcelo Ariel chegou como uma tempestade, abrindo à força portas e janelas que normalmente deixamos trancadas para não vermos as ruínas do mundo diante de nossos olhos. Para ver estas sombras é preciso coragem e algumas palavras/estiletes que rasguem a opacidade dos cenários compactos que nos paralisam. Marcelo Ariel tem sido um dos poetas mais atentos no Brasil a captar estas turbulências e reagir com seus escritos, que entram em cena como lâminas afiadas. São muitas as palavras, na série de poemas que compõe este livro, que interpelam a sonolência de nosso tempo. Um sono que alimenta o senso comum, e que se impõe “sem nenhum interesse na respiração da realidade”. O ponto de partida é desconfiar das imagens que chegam como uma espécie de veneno, reagir às “ficções perversas” que capturam o que temos de mais precioso: nosso direito à imaginação, à memória, à vida. Cada novo livro de Marcelo Ariel ativa o que Édouard Glissant nomeou como um pensamento do tremor. Assim, aposta na ideia de que a poesia ainda guarda uma missão utópica de perturbar certo funcionamento do mundo que gera muitas misérias, entre elas, uma das mais terríveis, a miséria psíquica como lembrou Sigmund Freud.

Quando terminei a leitura do livro, pensei especialmente em uma árvore que se chama Acoma, típica nas florestas das Antilhas. É uma das maiores árvores daquela região e tem a particularidade de que, mesmo muito tempo depois de cortada, seu cerne continua úmido e cheio de seiva. Foi esta característica que inspirou Édouard Glissant a propor este nome para a revista de crítica literária que ele fundou nas Antilhas. Os poemas que temos aqui são como uma seiva poética que dá forma às vozes que continuam a falar, mesmo depois de serem violentamente amputadas. Estamos diante de uma “operação de revolta”, talvez a função mais importante da literatura e que Ariel evoca em um breve texto poético em prosa que nomeou “Os Sistemas”. Acolher estes murmúrios que resistem aos apagamentos na função sublime do testemunho é um ato que recupera um dos gestos mais humanos: dever de memória pelas vidas silenciadas. São muitas as evocadas neste livro: as florestas, Eldorado dos Carajás, Cracolândia, “cemitérios clandestinos plantados no mar entre o Brasil e a África”, os guaranis da aldeia Tekoa Pyau, a jovem poeta palestina em Gaza Heba Abu Nada, as centenas de milhares de pessoas que morreram na pandemia e os “pulmões colados ao cérebro , e a lista continua. Evoca também Alan Kurdi, a criança síria encontrada afogada em uma praia da Turquia em mais uma travessia fracassada no Mediterrâneo, onde ninguém ouviu a canção de ninar. Assim, Marcelo Ariel constrói espaços poéticos onde possa dar lugar a um pensamento sobre o luto, que, sabemos bem, está na base de todo processo de criação. São palavras migrantes como evoca John Berger em um dos seus poemas, apostando na esperança que possamos reconquistar os lugares que nos foram roubados.

Fazer a travessia deste livro é como percorrer alguns desertos, tendo na bagagem um imenso acervo literário que mata nossa sede. Marcelo Ariel se revela sempre como um grande leitor e inunda seus poemas com inúmeras evocações, referências, citações, convidando muitos outros autores a entrar na conversa. Muitos poemas são escritos em parceria. Neste sentido é também um livro biblioteca: de Robert Musil a Victor Heringer, de Ana Cristina Cesar a Jaider Esbell, de Ricardo Aleixo a Virginia Woolf, de Evandro Carlos Jardim a Emily Dickinson, de Shakespeare a Airton Krenak.

Como sempre faço, comecei a ler este livro com uma caneta nas mãos anotando nas margens as associações que a leitura evoca e assim fui desenhando meu mapa de navegação. Foi uma surpresa perceber a amplitude de lugares, cenários, tempos que os poemas me conduziram. Lembrei especialmente do trabalho da artista marroquina Bouchra Khalili, “The Mapping Journey Project” apresentado na última Bienal de Veneza , dedicada a temática do estrangeiro. Ela apresenta oito vídeos mostrando em um mapa o percurso que alguns refugiados fazem para deixarem seus países em busca de uma condição melhor de vida em outro lugar. O espectador só vê a mão de quem fala, o traçado do percurso que teve que fazer, e o relato das jornadas de violência e riscos enfrentados na travessia feita. A água veio do sol, disse o Breu funciona como este mapa de navegação nos desafiando a percorrer estes trajetos que oscilam entre a dor e o desespero dos desamparados, mas também na esperança, determinação e força dos que buscam avançar no contra fluxo das lógicas de destruição. O traçado no mapa se faz movido pelo pensamento poético. Esta é a energia do poema que convida a “ressurreição da imaginação”. Anoto aqui uma passagem que descreve com precisão como Ariel pensa a poesia: “Existe autêntica força na doçura e vitória na rebelião através da poesia, práticas poéticas imantam práticas políticas, se a multidão desperta”.

O poeta deixa claro desde onde fala quando escreve que “me abrigo entre os sem-voz/ os sem-esperança/os que continuam a vagar/ cansados deste sonho lúcido/vividos de outra ordem”. Constrói assim com sua coletânea de poemas um mundo-abrigo para evocar aqui Hélio Oiticica, mas um refúgio que não silencia. Entra neste abrigo para lançar perguntas aos leitores, como podemos ler no poema Blues para ele mesmo. “Onde tu estavas quando cem mil negros foram trucidados? ”; “Onde tu estavas quando vinte mil mulheres foram empaladas?”; “Onde tu estavas quando quinhentas árvores foram queimadas?”. Podemos a partir daí derivar muitas outras perguntas.

Um livro de poemas, mais do que tudo, é uma partitura musical e nisso Marcelo Ariel é radical. Ele aciona muitas notas dissonantes em seu texto, encontra ritmos inéditos, exigindo uma leitura que precisa de tempo e, sobretudo, presença. Um livro generoso nas tantas referências que oferece e que nos dá a chance de entrarmos de mãos dadas no breu. Aposta que “as éticas da amizade irão superar as leis do mercado”. Haveria alguma esperança fora deste principio?

Há neste livro uma evocação constante aos sonhos. O sonho como uma errância que evidencia os avessos que somos e que tenta abrir espaço por entre os muros construídos pelo Eu. Marcelo Ariel aposta no sonhar em sua função de despertar do sono narcísico. Somos definitivamente estrangeiros e desconhecemos a língua que fala por imagens em nossos sonhos. Assim, vale a indicação desafiadora em um dos poemas: “sair da frente da vida para que ela possa viver”. Estaremos à altura deste desafio?

Edson Luiz André de Sousa é psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Tem doutorado e pós-doutorado pela Universidade de Paris VII. É um dos coordenadores do Museu das Memórias (In)possíveis do Instituto APPOA. É autor, entre outros livros, de Furos no futuro: Psicanálise e utopia (2022).


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