Uma nova vida para Stella do Patrocínio

Uma nova vida para Stella do Patrocínio

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“Eu vim pra Colônia porque eu estava andando na Rua Voluntários da Pátria ao lado do Luiz […] aí veio uma dona me botou pra dentro do Posto do Pronto Socorro perto da Praia de Botafogo, e lá […] ela me aplicou uma injeção, me deu um remédio, me fez um eletrochoque, me mandou tomar um banho de chuveiro […] e aí chamou uma ambulância, uma ambulância assistência e disse: ‘carreguem ela’, mas não disse para onde, ‘carreguem ela’, ela achou que tinha o direito de me governar na hora, me viu sozinha, e Luiz não tava mais na hora […] eu não sei pra onde ele foi, porque eu fiquei, de repente, de repente, eu fiquei sozinha, ele sumiu de repente […] aí me trouxeram pra cá, mandou: ‘carreguem ela’, deu ordem, ‘carreguem ela’, na ambulância, ‘carreguem ela’, carregaram, me trouxeram pra cá, estou aqui como indigente, sem família.”

É assim que Stella do Patrocínio narra como foi, em 1962, involuntariamente internada em hospitais psiquiátricos, sendo que o último foi a Colônia Juliano Moreira, onde ficou entre 1966 e 1992. Era para lá que eram encaminhados “os casos incuráveis”, sendo “o terror das internadas”, segundo Maura Lopes Cançado, em seu Hospício é deus, publicado em 1965, escrito enquanto esteve internada no hospital psiquiátrico Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro. “Fica em Jacarepaguá e contam atrocidades acontecidas lá. […] Cercada de matas espessas, as doentes fugitivas são comidas por animais ferozes, contam. Composta por vários hospitais, homens e mulheres, velhos, imundos, comida infame, camas sujas com percevejos e outros bichos, muitos doentes dormem no chão, sobretudo apanham muito. Não se faz tratamento nas doentes por se considerá-las irrecuperáveis. Várias aparecem grávidas. Os pais das crianças são, geralmente, os próprios funcionários”, continua ela.

Stella do Patrocínio ficou conhecida pela publicação de Reino dos bichos e dos animais é meu nome, organizado pela filósofa Viviane Mosé e foi lançado pela Azougue Editorial em 2001. Morta em 1992 por consequência de uma infecção generalizada, foi enterrada como indigente e foi considerada poeta depois do seu falecimento por causa do seu “falatório”. Este foi gravado nos anos 1980 por Carla Guagliardi, então estagiária de artes plásticas que fazia oficinas na Colônia, e Nelly Gutmacher, sua supervisora, e no começo da década de 1990 pela estagiária de psicologia Mônica Ribeiro de Souza.

Pouco se sabia da sua trajetória, apesar dos esforços de alguns funcionários da Colônia para tentar localizar os familiares de Do Patrocínio e de outros sujeitos psiquiatrizados. Felizmente, nos últimos anos, as lacunas de sua biografia têm sido preenchidas por algumas pesquisadoras, que também trazem reflexões sobre a importância intelectual de Patrocínio e ampliam os debates sobre as relações entre arte e loucura. Stella do Patrocínio, ou o retorno de quem sempre esteve aqui, de Anna Carolina Vicentini Zacharias, lançado recentemente pela editora Telha, baseia-se na sua dissertação de mestrado defendida em 2020 na Unicamp. Essa obra complementa esplendidamente Uma encarnação encarnada em mim (José Olympio, 2022), arrojado estudo sobre a intelectual de autoria da poeta Bruna Beber, também baseado na sua pesquisa de mestrado defendida também na Unicamp. (Para completar essa trinca só falta alguma editora publicar em livro Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra garganta de carne, de Sara Ramos, mestrado realizado na Unila e que colocou em domínio público o falatório de Stella do Patrocínio gravado por Carla Guagliardi.)

No livro, Zacharias conta como foram os tortuosos meandros da sua busca pelas informações biográficas de Do Patrocínio, chegando até a narrar alguns encontros com um dos sobrinhos da poeta (que pediu para não ser identificado), além de ter tido acesso a fotos de família nunca publicadas anteriormente. Uma das informações até então desconhecidas é que Do Patrocínio viveu parte da vida no Núcleo Teixeira Brandão ao lado da mãe, Izilda Xavier do Patrocínio, cujo falecimento não foi informado aos familiares, entre outros dados biográficos inéditos. A importância do trabalho de Zacharias não se resume apenas a recuperar a biografia de Do Patrocínio, mas também por abrir caminhos para várias outras áreas de pesquisa.

A autora situa as oficinas artísticas dentro da Reforma Psiquiátrica e do movimento antimanicomial brasileiros, destacando como os marcadores de classe, raça e gênero são essenciais para entender por que a população internada nos manicômios é formada, em sua maioria, por pessoas negras e pobres – dentre as quais as mulheres estão em uma situação de maior vulnerabilidade. O discurso moralizante e de controle social é muito mais aplicado nessas internações do que o psiquiátrico, que também funcionava a favor do encarceramento de uma população julgada como “indesejada” pelos governos e pelas elites. Por isso, em muitos casos, quem ia parar nos asilos não estava originalmente “louco”, mas foi sim “enlouquecido”, seguindo o próprio falatório de Do Patrocínio, que dizia que os remédios a forçavam “a ser doente mental”.

Em seguida, Vicentini faz uma bem-vinda discussão sobre o papel que as instituições psiquiátricas e o mercado de arte têm em fetichizar a produção artística feita do lado de dentro, sendo essa denominação uma categoria muito mais valorizada do que a estética das obras. Ela também faz alguns questionamentos éticos dentro da comercialização dessa arte, trazendo o caso Arthur Bispo do Rosário, que também foi internado involuntariamente na Colônia Juliano Moreira na mesma época que Do Patrocínio.

Dentro dessa discussão, a autora também traça as origens de Reino dos bichos e animais é o meu nome nome, livro que “revelou” o falatório de Do Patrocínio na forma de poesia para o Brasil. O livro fez sucesso, ganhando novas edições e tendo sido finalista do Prêmio Jabuti. Vicentini também problematiza o fato de a publicação ter sido feita de forma póstuma, assim como o uso do termo “poeta” para defini-la, termo que Do Patrocínio nunca utilizou em referência a si mesma. Além disso, a pesquisadora reflete sobre se realmente houve uma escuta do discurso da intelectual por parte dos resposáveis pelo livro, do mercado literário e da academia. Uma das partes mais interessantes é a que compara a publicação de Reino dos bichos e animais é seu nome ao lançamento de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, juntamente com sua relação com o jornalista Audálio Dantas, que foi seu editor.

Ao final, há um posfácio escrito por Daniela Birman e uma comparação entre os poemas de Reino dos bichos e dos animais é meu nome aos áudios gravados por Guagliardi, aqui transcritos por Zacharias, Sara Ramos e Natasha Felix; entre os anexos, fotocópias das páginas do caderno que Mônica Ribeiro Souza usou para transcrever suas conversas Com Do Patrocínio e que também contém desenhos feitos pela própria Stella.

Por fim, o objetivo de Stella do Patrocínio, ou o retorno de quem sempre esteve aqui é, segundo Vicentini, “fazer com que o invisível, o polícia secreta, o sem cor sejam reconhecidos. Que os nossos olhares se voltem para eles, tão acostumados e autorizados a controlar, normalizar e a bater o martelo. Que a pressa em possuir algum poder de verdade sobre Stella do Patrocínio seja substituída por uma escuta e leitura do Falatório que reconhece Stella como alguém que nos ajuda a refletir sobre questões até então negligenciadas pelos estudos literários”. É exatamente esse exercício de escuta que Vicentini consegue realizar ao apresentar uma nova vida para Stella do Patrocínio.

 

Paula Carvalho é jornalista e historiadora. Faz pós-doutorado em história na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É autora e organizadora do livro As viagens de Isabelle Eberhardt: As viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo, 2022). É uma das criadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras. Foi roteirista e apresentadora do episódio “Stella do Patrocínio e a loucura no Brasil” do podcast 451 MHz da revista literária Quatro Cinco Um.

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