Pele negra e colarinho branco
‘Meme’ baseado na tela ‘Aula de Anatomia’, de Rembrandt
O que muda quando as imagens de assujeitamento e humilhação migram para a cobertura policial dos homens de colarinho branco e da elite política e econômica?
Em um cenário em que se experimenta um desprestígio das instituições democráticas, a deterioração da confiança política, uma hiperpolarização estimulada por discursos de ódio e uma narrativa midiática que aponta sempre a “corrupção dos outros” assistimos cotidianamente uma demanda por justiçamento em tempo real que passa pelo consumo e compartilhamento de “imagens de exceção”.
Cenas de humilhações, desespero, assujeitamento, animalização, estupros, chacinas, execuções, imagens de corpos vivos e mortos são trazidas cotidianamente a público, numa espécie de arena midiática que joga com a bolsa de opiniões e juízos e que sensacionaliza, moraliza e monetiza essas imagens, dando-lhes sentido e destinos diversos.
Evidente que as imagens da dor dos outros podem também sensibilizar e produzir memória, identificação, solidariedade. Mas tudo pode ser mostrado? Temos visto um constante alargamento dos motivos para exibir e ver, fazer circular, compartilhar “imagens de exceção”, produzindo, se possível, um pensamento sobre elas. Algo que não nos torne nem juízes que decretam uma interdição moral (não pode mostrar e nem ver, não pode fazer circular), mas que também não nos torne agentes de um campo simbólico devastado em que se aceita praticamente qualquer coisa que circula no “esgoto público das imagens”, as redes, TVs, onde vão parar vidas, sujeitos, histórias.
Posse sobre as imagens
No Brasil, as imagens dos pobres nunca foram protegidas por qualquer princípio de privacidade ou “direito de imagem”, basta olhar para a produção televisiva, os documentários, a ficção, as imagens nas redes para nos depararmos com uma over exposição dos pobres, das favelas e periferias, filmados, narrados, documentados, vigiados, monitorados por todo um regime de visibilidade máxima que foi naturalizado. Como se os pobres prescindissem de “vida privada” e subjetividade. Uma estratégia de “animalização” e desumanização que data da escravidão e dos regimes de soberania em que se tem o controle da vida e da morte dos escravizados e dominados. E que no Brasil tem um componente racial especialmente perverso, os negros que passaram de escravizados a “elementos suspeitos”. Quem domina os corpos toma posse de suas imagens.
Como diz Jessé Souza: “No Brasil, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família, de economia, de política, de justiça foi toda baseada na escravidão. (…) Uma porção expressiva da classe média que odeia pobres e os relega ao abandono também faz parte dessa herança. Aceita-se que haja “subgente”, sem chances e sem direitos como os escravos, o que ainda é o nosso único real problema social e econômico.”
Obviamente o Brasil produziu imagens e narrativas outras, que afrontam as narrativas neoescravagistas, um cinema das periferias disruptivo e não clichê, ou programas compensatórios dos estigmas sociais, mostrando a periferia cultural, colorida, diversa, produtiva, fashion.
Mas o que vemos no jornalismo da TV quando mostram as periferias e favelas ainda serve, em grande parte, para alimentar um senso comum que reforça o estigma das “classes perigosas”, dos homens matáveis, dos “elementos suspeitos”, sobre as quais mídia, Estado, polícia, judiciário e a opinião pública em geral produzem uma narrativa infinita e reiterativa de demonização.
Os programas policiais sensacionalistas dos anos 1990, cuja fórmula se repete até hoje, construíram uma combinação de ficção, jornalismo, fabulação e dramatização em torno da pobreza ameaçadora, com os teleshows da realidade (“Cidade Alerta”, “Repórter Cidadão”, “Programa do Ratinho”, “Domingo Legal”, “Linha Direta”, da Globo, para lembrar alguns) fazem não apenas uma espécie de teatralização e espetacularização do medo e da insegurança social, mas reforçam discursos bélicos, o racismo, o denuncismo e toda sorte de pregação moralizante, que inclui frequentemente apologia à pena de morte, ao justiçamento e linchamento, aos preconceitos de toda ordem, num discurso obscurantista e populista.
Esse tipo de narrativa funciona ainda como telenovelas do real, com a dramatização do cotidiano da classe média baixa e pobre, a “ralé”, mantendo uma relação direta e histórica com a estética do folhetim, da radionovela, do circo e do melodrama, com um conteúdo, na maioria das vezes extremamente conservador.
Essas narrativas alimentam os discursos mais retrógrados de criminalização dos moradores das favelas e periferias, relacionando a cultura das periferias com uma criminalidade difusa e com a ideia que a violência nasce na favela e que os pobres são a causa da violência urbana e da insegurança.
Estereótipos, racismo e discursos extremamente conservadores alimentam essa guerra real e de imagens contra os pobres. Narrativas desvinculadas de questões estruturantes como o proibicionismo das drogas e o fracasso das políticas públicas de segurança de combate a um comércio ilegal, que poderia ser regulado e legalizado, numa racionalidade inclusive empresarial, que evitaria massacres e embates cotidianos fatais nos territórios.
Gozar com o sofrimento do outro
Mas o que muda quando essas imagens de assujeitamento migram para a cobertura policial dos homens de colarinho branco e da elite política e econômica? O que vemos em um primeiro momento é a negociação do que pode ou não ser visível e mostrável: engravatados com ou sem algemas, operações de prisão pelas portas dos fundos e homens levados em carros com vidro fumê.
Uma visibilidade que vai se ampliando com a imagem de políticos, parlamentares, empresários, ex-governadores de cabeça raspada em um presídio de segurança máxima, ou imagens constrangedoras de um drama familiar de um preso ilustre, exposto em praça pública. Imagens que produzem incômodo ou satisfação, com o sentimento de justiçamento imediato (basta analisar a iconografia em torno da prisão de Marcelo Odebrecht, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Anthony Garotinho, etc.)
O que para muitos seria um princípio de “igualdade”, a justiça para pobres e ricos, o fim dos privilégios, uma satisfação e celebração real e simbólica de uma transformação nos mecanismos da justiça, emerge ao mesmo tempo como a entronização de um poder de mídia sem limites e que esbarra em princípios éticos.
O linchamento midiático dos homens de colarinho branco, mesmo sendo eles governantes e políticos criminosos, choca não simplesmente porque produz uma “identificação” de classe. Sem dúvida que o ineditismo e raridade dessas imagens perturbam os regimes de visibilidade. Mas revelam também o que sempre foi naturalizado. Muitas dessas imagens são “imagens de exceção” que ferem direitos básicos, como a privacidade e a dignidade.
Foi o que vimos, por exemplo, nas imagens deprimentes veiculadas nas redes e na grande mídia do ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, removido do hospital para a prisão. Socos, agressões, gritaria, briga corporal. O linchamento midiático, a exposição da vida privada, a derrocada moral exposta para além do limite da punição legal, a prisão.
Se tínhamos uma direita linchadora, algumas dessas imagens produzem e deixam emergir também uma esquerda linchadora, um “efeito manada” cuja satisfação não se resolve com a aplicação das leis e cujo desejo de celebração da justiça se confunde com uma vingança regressiva pelo mal causado ao bem comum e se expressa pelo desejo de ver e de infringir um sofrimento extra, um gozo sádico, que pode se diluir em humor e memes pelas redes.
Trata-se de uma lógica ambígua, do gozo popular com o “castigo”, sentimento assustadoramente majoritário no Brasil e que se coloca acima de qualquer defesa abstrata dos direitos humanos, considerado uma “fraqueza”, um discurso de defesa de bandidos em uma sociedade cujo imaginário escravocrata se acostumou a dispor dos corpos e das subjetividades para uso e desfrute, sem limites.
Ainda encontramos esses regimes de gozo nas relações de trabalho escravo, empregos domésticos, a “escravidão doce” em que se compra não a força de trabalho simplesmente, mas o tempo, a subjetividade, os afetos, a vida dos que servem.
Pedagogia midiática
Como as esquerdas no Brasil irão defender uma plataforma de direitos humanos, hoje, enfrentando essa pedagogia midiática linchadora, e sem que isso signifique a derrota e a impopularidade de projetos políticos coerentes e consequentes?
A moral das classes médias vingativas, baseada em um senso comum midiatizado e amplificado, não consegue distinguir o agente político corrupto, o empresário corrupto, com a pessoa humana ou o cidadão. Não conseguem distinguir o sujeito de crimes e ilegalidades do sujeito de direitos. Confundem justiça com justiçamento produzindo uma escalada de narrativas fascistizantes e de resolução imediata.
Durante séculos de racialização e luta de classes fizeram confundir os sujeitos dos territórios da pobreza com sujeitos do crime! Colaram na cor da pele um princípio de inferiorização. Agora, em uma nova operação moralizante fazem confundir, também de forma indiscriminada, todos sujeitos da política em sujeitos criminosos. “São todos iguais”, são todos corruptos, esse é o axioma que prepara a população para aceitar qualquer tipo de operação jurídico-midiática no campo político como “natural”. Operações que se valem de um regime de exposição e visibilidade que direciona os holofotes e o foco para a construção de narrativas convenientes e seletivas.
Em um dos telejornais da Globo, o RJTV, o episódio da queda de um helicóptero em Cidade de Deus que matou quatro policiais, provocado por falta de manutenção, segundo a perícia, eram descritos os sonhos e a vida pessoal dos militares mortos, humanizando e comovendo o telespectador diante da tragédia. Um deles é descrito como “apaixonado pela aviação” e com “casamento marcado” para breve. Já os sete jovens executados, em “resposta” ou represália pela queda em serviço do helicóptero, ganham uma narrativa impessoal, sem nomes próprios e com generalizações que os reduzem todos a “foragidos” e com “passagens pela polícia”.
Nenhum tipo de empatia possível com o massacre e a execução! Os jovens negros não são merecedores de justiça, mas pagam com a própria vida a afronta ao estado policial. Entramos na espiral da regressão vingativa sem termo. Nenhuma palavra de indignação na mídia, nenhum apelo aos direitos, nenhuma humanização. Trata-se de uma pedagogia de aniquilamento do outro!
Estamos diante de uma pedagogia que se repete. Em outra cena assistimos a enquete feita pela apresentadora de TV Fátima Bernardes, no programa Encontro, também da Globo, em que pergunta, fazendo o marketing de uma série nova da emissora de urgências médicas: “Quem você socorreria primeiro: um policial levemente ferido ou um traficante em estado grave?” Pergunta, criando um falso dilema que incita os linchadores de todas as matizes.
Um tipo de abordagem maniqueísta que afronta os princípios básicos da ética médica e dos direitos humanos: atender não importa quem, seja qual for a circunstância, provavelmente começando com os que estão em estado mais grave. A enquete desagradou a todos, defensores dos direitos humanos e também aos partidários da extrema-direita, policiais e gente comum que veem na questão a defesa da bandidagem e uma tentativa de igualar o valor das vidas de policiais e criminosos.
As cenas midiáticas perturbaram os regimes de visibilidade e são exemplares dos impasses que enfrentamos e que podem levar a um patamar novo de intolerância e ódio racial, social, ódio ao “outro”.
A demanda por satisfação imediata, execução, humilhação midiática, justiçamentos em tempo real produz uma democracia em agonia, em que se desqualificam “direitos” que deveriam proteger os pobres, os ricos, os de pele negra e os de colarinho branco contra poderes brutais, sejam das corporações, do Estado ou da mídia. A humilhação pública serve para quê? A polícia que mata e humilha jovens negros, os juízes da “escola Moro” que prendem coercitivamente e induzem a delações, e a mídia linchadora seguem uma mesma moral acima das leis. Provocam um desejo de aniquilação do outro pelos mais violentos e exaltados.
Pouco importa se esses homens e mulheres são culpados! Pouco importa se Garotinho estava fingindo ou fazendo cena nas imagens veiculadas de um drama familiar real e constrangedor quando da sua prisão em uma operação policial. Essas imagens são como os grampos dramatizados no Jornal nacional dos telefonemas dos ex-presidentes Dilma e Lula: invasão de privacidade, abuso do poder da mídia de expor, com objetivo de fazer um julgamento moral em praça pública. O que não tem nada a ver com fazer justiça.
Estamos vendo no Brasil a entronização de um aparato jurídico-midiático que produziu o impeachment e avança no seu projeto de pedagogia para as massas.
Nos diferentes casos, o “show de ética e cidadania” se confunde com um terrorismo e abuso do poder de mídia. O que parece estar em questão é o imediatismo do espetáculo e o máximo a satisfação individual, mais que uma política do comum discutida em praça pública, ou uma pedagogia para o avanço dos direitos, constituinte e democratizante.
A ideia de uma cidadania pela mídia, vendida como prestação de serviços, informações de interesse coletivo, se confunde com formação psicológica, cognitiva, política, emocional, uma pedagogia que se presta a processos autoritários e fascistizantes e que produz um populismo de mercado que responde aos nossos mais baixos “instintos”, entre eles o que deseja e goza com o extermínio do outro.