Pedro Vinicio, pra que tanto rabisco?
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“Quando eu descobri que dava para desenhar deitado e com o celular, foi uma descoberta, tipo quando o Picasso descobriu o cubismo,” diz Pedro Vinicio, com um pedaço de papel e uma caneta nas mãos. O garoto ganhou a internet em 2020, quando tinha 15 anos, com seus “desenhos ruins”. Os quadrinhos coloridos, que se apresentam como algo entre o rabisco infantil e o retrato surrealista, tomaram conta do Instagram, das páginas dos jornais e até das ruas de São Paulo nos últimos cinco anos.
Nascido em Garanhuns, Pernambuco, hoje, aos 19 anos, Pedro viaja pelo Brasil conhecendo seus ídolos: vendeu quadro para Caetano Veloso, participou de conversa com Laerte e até trocou ideia com Cildo Meireles. De Recife, diz à Cult que prefere não passar muito tempo longe de casa: “Preciso voltar para Garanhuns e recarregar a bateria. Faz parte do meu trabalho artístico ir e voltar”.
No ateliê que construiu na casa de sua avó, coleciona caixas de arquivo cheias de seus desenhos, que, como sua obra digital, têm um princípio conceitual: o erro. Se as rasuras intrigam aqueles que acompanham seu trabalho, questionando a intencionalidade das letras faltantes ou dos rabiscos, o artista responde: “O erro é a coisa mais importante para mim, é tipo um deus.”
Mas o que chama a atenção dos admiradores, entre jovens e idosos, é a profundidade da obra do menino. Ele conta que as falas cômicas de seus quadrinhos vêm da observação, já que não viveu o bastante para sentir tudo o que retrata. Como exemplo, cita Seu Nino, dono de um sebo que, aos 70 anos, virou seu melhor amigo. “Gosto mais de criar amizade com gente que tem algo a dizer. Jovem consome muito minha alma.”
Em entrevista, ele conta sobre o que inspira sua arte, suas ambições para o futuro e explica seu objetivo: tirar de todos uma “risada democrática”.
O que mudou desde que você bombou nas redes, aos 15 anos?
Eu comecei a postar meu trabalho na internet em 2020 e bombei logo em seguida, em menos de um mês. Eu fiquei sem entender, achava que era só algo viral da internet – “segue a vida”. Passou um mês e as pessoas continuavam curtindo e comentando. Quando percebi, estava produzindo sem parar há um ano. Agora já faz cinco anos, passou muito rápido. Eu estava deitado no chão desenhando e eu continuo. Eu desenhei durante a minha vida toda, desde os três anos. Não fazia nada, só desenhava.
Como é o seu processo criativo, sua rotina?
Minha rotina é caótica. Ontem eu queria fazer um desenho e fiquei mais de hora pensando, preso. Às vezes é mais fácil desapegar da ideia. Para mim tem que ser rápido. A frase se forma rápido na minha cabeça. Quando vejo que não é tão engraçado, eu deixo para lá.
Sua obra se relaciona bastante com a da Laerte, no sentido que, em entrevistas, vivem perguntando o que significa cada trabalho que você posta. Você gosta de explicar?
Às vezes eu nem lembro, eu só fiz. Tem um quadrinho que ficou bem famoso em que um bonequinho meditando pensa “puta merda”. Várias pessoas me perguntavam: “o que você quis dizer?”. Mas quando eu fiz estava tomando café com o meu pai, peguei uma folha pequena, tirei foto, postei e bombou. As pessoas fizeram tatuagem, criaram um conceito enorme em cima disso, que era só um pedaço de papel. Eu gosto de deixar o trabalho solto no mundo.
A relação entre arte e redes sociais é uma coisa complicada. A experiência de ir a um museu e ver quadros é muito diferente de ver posts no Instagram. Você ambiciona ir além do digital ou gosta de produzir e compartilhar sua arte dessa forma?
Parece mentira, mas eu produzo mais no físico. Tenho um ateliê em cima da casa de minha avó que está entupido de desenho. Tenho uma obsessão por desenho. Aqui, conversando com você, eu estou com uma folha e uma caneta na mão, sempre produzindo. No começo, eu achava o digital algo menor, uma brincadeira, o que eu queria fazer sério era retrato realista. Só que eu pintei o retrato e ninguém ligou. O pessoal gostava tanto desses desenhos tronchos que eu também comecei a curtir. Mas eu achava meio brega, eu me sentia um robô: “Como assim eu tô desenhando sem sujar minha mão?”
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Quando eu descobri o digital, na pandemia, estava com preguiça de comprar material porque gasta dinheiro. Peguei o celular da minha mãe e baixei um aplicativo de desenho. Essa foi a maior descoberta da minha vida. Descobri que dava pra desenhar deitado, sem gastar material e as pessoas ainda gostavam. Passei a me dedicar só àquilo. Desenhava madrugadas e madrugadas.
A sua produção física é só arquivo ou você vende também?
Durante um tempo eu vendi bastante. Por exemplo, para Caetano Veloso, Zélia Duncan e Dani Calabresa. Mas depois eu cansei de pintar, perdi o prazer da pintura. Eu decidi pintar só quando sentia vontade. Eu prefiro expor a transformar minha arte em um produto para vender.
Que artistas te inspiram?
Eu gosto muito de Cildo Meireles, Tunga, Artur Barrio, Leonilson… Uma coisa que me emocionou muito nos últimos tempos foi conhecer Cildo Meireles no lançamento do meu livro. Ele tem quase 80 anos e foi lá me conhecer.
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Cinema é o que mais me inspira, porque eu vejo muito. Em um dia eu vejo dois filmes. Semana passada eu revi os filmes de Jean-Luc Godard. Eu vi esses filmes quando tinha 14 anos, mas eu não entendi nada. Agora, revendo, entendo outra coisa e me inspiro muito neles. Os artistas dão um gás para a alma. Mas o que me inspira é o cinema.
De que forma os filmes influenciam você?
De alguma forma faz parte do conceito do meu trabalho. Quando eu descobri que dava para desenhar deitado e com o celular, foi uma descoberta, tipo quando o Picasso descobriu o cubismo. Mas eu comecei a achar esse trabalho vago, sem conceito, e eu não quis isso. Eu já queria ser artista com 14 anos. Via os grandes artistas nos documentários e, a partir daí, decidi criar um conceito: trabalhar em cima do erro. Ou seja, quando eu errasse, ninguém perceberia. Por isso tem aquele rabisco todo.
Depois veio o cinema. Eu lembro que estava vendo um documentário dos Novos Baianos, em que o João Gilberto é chamado para conhecer a banda. Ele responde: “Eu já vi e eles são legais, mas eu conheço tanta gente”. Isso parece um desenho meu. Daí eu fiz um desenho “eu quero conhecer você”, “já conheço muita gente”. O cinema me influencia dessa forma, mas também no estilo de pintura. Os filmes do Godard, por exemplo, têm uma paleta de cor muito forte que eu acho legal.
Os rabiscos realmente chamam muito a atenção; produzir a partir do erro. Qual o papel do erro na arte?
O erro é a coisa mais importante para mim, é tipo um deus. Quando eu tinha 12 anos, tinha um colega que desenhava melhor que eu, e isso me deixava desanimado, porque tratavam ele como o maior artista da sala e eu, o pior. Quando eu chutei o balde e percebi que adoro errar, isso tirou um peso de cima de mim. Eu estava desenhando com o dedo, deitado, no celular de minha mãe. Errei, fiz o rabisco e adorei. Eu ia tirar o rabisco, mas achei aquilo ali legal, porque eu não vejo ninguém errando – todo mundo esconde o erro.
Eu quero fazer um trabalho que seja fofinho, mas que toque na ferida desde um jovem a uma idosa. Esse é o papel da arte: juntar todo mundo. É um trabalho que todo mundo entende, diferente daquele que está no museu, que só uma determinada classe vê. Chega todo mundo junto: o cara que entende de arte; o que não entende nada; o milionário; o muito pobre… Todo mundo se identifica com aquele problema. Quero que todos consigam dar uma risada democrática, sem diminuir ninguém. Nunca vou fazer um humor homofóbico ou racista. Eu quero fazer um negócio limpo.
Você gosta de ir ao museu?
Adoro museus, gosto de visitar exposições, ver o negócio perto, mas vou pouco. Gostaria de ir mais. Recife deixa a desejar nesse sentido. Tem a Oficina Francisco Brennand e algumas outras, mas são poucos os espaços dedicados à arte. Tem um amigo meu que reclama muito, porque eu mal conheço os artistas pernambucanos. Tem Cícero Dias, Tereza Costa Rêgo, Francisco Brennand, mas conheço pouco. Quando se fala em Rio de Janeiro ou São Paulo eu conheço todo mundo. Eu acho que deveria ter mais exposição aqui. Minha, por exemplo, nunca houve. Em Pernambuco, meu trabalho não é tão forte quanto no Rio, São Paulo ou Belo Horizonte. Eu precisava ter uma exposição boa aqui.
Isso te dá vontade de ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo?
Tenho vontade, mas Garanhuns é uma cidade que eu adoro, porque é fria. Arthur Lindsay, o guitarrista que era amigo do Basquiat, cresceu aqui. É uma cidade artística que me inspira muito. Quando eu vou para longe, preciso voltar para Garanhuns e recarregar a bateria. Pode ser que eu vá morar em outro lugar, mas deve demorar uns anos, porque faz parte do meu trabalho artístico ir e voltar. “Viajo porque preciso, volto porque te amo.”
Seus quadrinhos chamaram muito a atenção das pessoas mais velhas, que olham para as suas frases e se espantam com a “negatividade” de alguém tão jovem. A que você pensa que se deve isso?
Já me perguntaram bastante sobre isso e cada vez eu dou uma resposta diferente, porque eu não sei. Eu era muito tímido, mais do que eu sou hoje, e ficava observando muito as pessoas. Vejo o mundo de outra forma: se duas pessoas estão tomando café em um canto, sinto que elas estão encenando alguma coisa. Se saio dali e vejo um cara brigando com outro, isso também me parece uma encenação, para ele mostrar que é bravo. Isso vai me deixando puto. Quando chego em casa, preciso dizer alguma coisa sobre essa grande observação do mundo. Mas não coloco no papel uma coisa muito grande, prefiro dar uma porrada só – um abraço e um tapa.
As pessoas mais velhas se identificam porque tiveram o privilégio de sofrer. Os meninos entendem menos que as pessoas mais velhas. Às vezes quando eu faço algo bem simples e óbvio, eles não entendem e ficam me perguntando, enquanto os mais velhos adoram, porque já viveram uma desilusão amorosa, um coração partido, já choraram no banheiro. Eu não passei por essas coisas, mas é um drama que eu observo e sinto.
Meu melhor amigo, que já morreu, tinha mais ou menos 72 anos e foi o dono de um sebo. Ele já tinha levado um monte de porrada da vida e desistido de tudo. Resolveu vender livros. Ele ficava de perna cruzada passando o jogo do bicho, fumando dez cigarros e falando da vida comigo. Ele ainda tinha a mãe, de mais de 90 anos, que às vezes ligava. Achava aquilo muito interessante. Sentia a dor dele, mesmo tendo 14 anos. O começo da vida é bom porque a gente cria expectativa de ser feliz. Quando chega lá, não quebra a cara.
Sou mais de me relacionar com gente mais experiente. Tenho só um amigo do colégio da mesma idade que eu. Eu acabo dando um jeito de fugir dessas relações porque gosto mais de criar amizade com gente que tem algo a dizer. Gente jovem consome muito minha alma. É sempre “Conhece fulano?”. Não; “Já leu esse livro?”. Não; “Já ouvi essa música?”. Não; “Já viu essa dancinha no Tik Tok?”. Não – vou conversar o quê? Escolho muito bem quem está ao meu redor porque gosto de estar bem.
O que você deseja receber em troca da sua arte?
Eu gosto de receber o carinho das pessoas, como quando posto uma arte e recebo um comentário: “Te amo, Pedro”. Não sou eu, mas o personagem que cria esses desenhos. Isso é o mais legal: ver gente que você admira curtindo o seu trabalho. Acho legal fazer um trabalho acessível para todo mundo ver, rir e se divertir.
O cineasta Jacques Rivette diz que “o cinema é um pretexto para conhecer gente”. É isso que você acha da arte?
Essa frase é perfeita. Sem a arte eu seria o cara mais esquisito do mundo, que só fica em casa, escondido, mas ela me deu a chance de conhecer pessoas. Sem arte, eu ficaria preso no meu mundo.