Peças breves e jocosas: os entremezes do século de ouro espanhol
O autor Lopes de la Rueda, considerado o criador do entremez (Foto: Reprodução)
Teatro breve do século de ouro, organizado por Miguel Ángel Zamorano, traz uma antologia de peças curtas, mais especificamente de entremezes em prosa e verso, de grandes nomes do período áureo da cultura espanhola, conhecido como século de ouro. Assinam essas peças, entre outros, Lope de Rueda, considerado o criador do entremez, Francisco de Quevedo, Pedro Calderón de la Barca e Miguel de Cervantes. Ao lado de peças assinadas por escritores de renome, o leitor encontra outras de autoria desconhecida, embora se cogite que algumas delas tenham sido escritas por um ou outro dos nomes já mencionados.
Ainda que a denominação teatro breve abarque uma série de gêneros dramáticos como paso, loa, bailes dramatizados e entremez, é esse último, como afirma Zamorano, que teria ganhado notoriedade, passando a ser conhecido como “o gênero maior dos gêneros menores”, razão pela qual foi destacado nessa antologia.
A palavra “entremez”, a princípio, tinha um significado gastronômico, derivado do francês (entremets) ou do catalão (entremès), e se referia a uma comida servida entre dois pratos principais. Mais tarde, ficou conhecida como uma peça jocosa e breve, normalmente intercalada entre os atos de uma tragédia ou comédia. Uma das funções dessas peças curtas era inserir um contraponto à dramaturgia principal, mas também, como afirma Carlos Mata Induráin, em um dos posfácio da edição brasileira, “era possível acontecer de uma comédia filosófica como La vida es sueño, de Calderón de la Barca, ser interrompida ao longo de suas três jornadas, ou atos, por peças breves que destoavam bastante da obra central”.
A trapaça foi a pedra angular dessas peças curtas. Induráin argumenta que o público equipara-se aos trapaceadores e, “desde uma posição de superioridade moral, observa o embuste tramado contra os mais ingênuos, reforçando a postura de quem está prestes a descobrir o que irá acontecer e é, certamente, melhor e mais inteligente que os burlados – ao menos enquanto durar o entremez”.
Em Corno e contente, de Lope de Rueda, o espectador participa como cúmplice da mulher do protagonista, que se finge de doente e devota para trair o marido simplório. Com o objetivo de passar uma temporada com o amante, ela diz ao marido que fará uma novena, que ganha caraterísticas próprias criadas pela trapaceadora: “BÁRBARA: Sim voltarei, vou somente rezar umas novenas para uma santa pela qual tenho grande devoção./ MARTÍN: Novenas? E o que são novenas, mulher?/ BÁRBARA: Não o sabe? Por novenas entende-se que tenho de estar reclusa por nove dias”.
Não se deve confundir a comicidade, umas das categorias fundamentais dos entremezes, com falta de reflexão dramática crítica. O fato de o espectador se manter passivo diante das situações apresentadas e rir delas pode se transformar ao mesmo tempo em uma situação constrangedora e desconfortável, como aponta o estudioso português Paulo Jorge Pires Barata Pereira Vicente, que parece dialogar com Georges Minois, o qual, em seu livro História do riso e do escárnio, lembra que “para Descartes, o riso é suspeito. Eu rio, logo, odeio […] o riso pode facilmente tornar-se inconveniente”. Por isso, “a filosofia da primeira metade do século 17 rejeita os costumes burlescos e tende, antes, para os censores religiosos”.
A respeito das personagens que integram os entremezes, Pereira Vicente afirma que elas “geram frequentes situações disruptivas que, polarizadas entre o caos e o estatismo, tendem a descentrar o drama, tornando-o bastante instável”, de modo que o desenlace da maioria dessas peças breves não representa um desfecho natural dos acontecimentos. Com isso, o desenlace acaba por condenar as personagens, e os espetadores, à indeterminação ou ao retardamento.
Essas personagens são também extravagantes e ridículas, quase caricaturas, como se lê em O hospital dos apodrecidos, peça anônima, atribuída, contudo, a Cervantes. Nela, os “apodrecidos”, ou os queixosos, deveriam se tratar. Eles eram muitos e se lamentavam por tudo, inclusive pelo tamanho do nariz dos outros: “SECRETÁRIO: Ele diz que sempre que um narigão desses anda por uma rua apertada, é preciso ir meio de lado, para que possam passar os que por ela caminham. E, fora tal inconveniente, há outro maior, que é o de gastar lenços disformes de tal maneira que poderiam servir de velas para os navios”. Segundo Minois, para Quevedo “tudo está do avesso”; nesse sentido, acredito, essas peças não podem ser mais atuais.
Essa coletânea recém-publicada é inédita em português e foi traduzida por professores e estudantes que compõem dois grupos de pesquisa de universidades federais brasileiras: o Grupo de Estudos e Traduções de Teatro Espanhol, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Núcleo Quevedo de Estudos Literários e Traduções do Século de Ouro da Universidade Federal de Santa Catarina.
Teatro breve do século de ouro
Miguel Ángel Zamorano (organização)
Perspectiva
320 páginas – R$ 64,90
Dirce Waltrick do Amarante é autora de Minha pequena Irlanda (Rafael Copetti Editor), dramaturgia baseada em Finnegans Wake, de James Joyce, e nas cartas trocadas entre ele e sua companheira, Nora Barnacle.