Paulo Mendes da Rocha: “Um dos paradigmas da arquitetura é evitar o desastre”
Edição do mêsO arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha (Foto: Marcus Steinmeyer)
Paulo Mendes da Rocha costuma ser identificado como arquiteto. Engano. Muito além de suas magníficas obras de arte em concreto e das revigorantes intervenções em prédios históricos, está em ação o tempo todo um filósofo. Um filósofo nos moldes pré-socráticos, que vai tecendo seu pensamento em diálogo generoso com o outro, somando a isso uma vivência de leituras pontuais para traçar o pensamento contemporâneo. Como ele próprio afirma nesta entrevista concedida à Cult em seu escritório, na região central de São Paulo, “o grande tema da arquitetura não é o edifício como fato isolado, mas sim a construção da cidade”. No caso, a construção do conhecimento de cidadania.
Paulo – ele detesta o tratamento cerimonioso e insiste na conversa plantada na planície – vive um momento especial. É o arquiteto brasileiro mais premiado de todos os tempos. Entre os inúmeros prêmios, há os famosos Mies van der Rohe, mais importante da arquitetura europeia, e o Pritzker, considerado o Nobel da arquitetura. Em 2016, aos 87 anos de idade e em plena atividade – ele inaugurou o monumental Museu dos Coches, em Lisboa, Portugal, no ano passado –, Mendes da Rocha ganhou três importantes prêmios outorgados por instituições de prestígio na Itália, no Japão e na Inglaterra.
Recebeu o Leão de Ouro, em maio, pelo conjunto da obra, na Bienal de Arquitetura, em Veneza. Mais tarde, em setembro, o Praemium Imperiale Prize, outorgado em Tóquio pela Japan Art Association. Finalmente, coroando um “grande slam” do circuito da arquitetura, recebeu, no mesmo mês, a Royal Gold Medal, concedida pelo Royal Institute of British Architects (RIBA), em Londres. No texto que acompanhou este prêmio está a expressão “living legend”, ou seja, “lenda viva”. Os britânicos, usualmente tão comedidos, foram de uma precisão cirúrgica ao usar essa expressão. Esta entrevista mostra o porquê.
CULT – Certa vez você afirmou que o lucro não pode ser a única razão de construir e que a cidade não pode ser produto do puro mercado. A especulação imobiliária é o maior problema urbanístico das cidades brasileiras?
Paulo Mendes da Rocha – Sem dúvida nenhuma é, mas também seria interessante responder que não é por si. É na maneira degenerada com que o liberalismo do não planejamento age, o liberalismo da incompetência dos órgãos públicos que seriam responsáveis pela regulação dessas questões. É absurdo dar total liberdade para o puro mercantilismo. A população tem que exigir a cidade competente, uma cidade para todos, porque uma cidade onde ficam os pobres e outra onde ficam os ricos é uma besteira. O conhecimento e a técnica são patrimônio da humanidade.
O arquiteto como agente político de transformação da cidade teria perdido o jogo para as corporações de construtores e para essa aliança que sempre fazem com o poder público?
Esta é justamente a dimensão política de qualquer forma de conhecimento e a mais dramática de nosso tempo é em relação à física quântica: a ideia dos cientistas nunca foi produzir a bomba atômica, mas a contrariedade frequenta permanentemente essa visão dialética entre conhecimento e aquilo que vai se fazer. Porque a arquitetura como forma de conhecimento sabe dizer que, se não sei exatamente como fazer aquilo, sei perfeitamente o que não deve ser feito. Um dos paradigmas da arquitetura, no sentido de ocupação do território para torná-lo habitável, é evitar o desastre.
Certa vez você se referiu à sabedoria da construção das catedrais góticas como um exemplo disso.
Sim. O exemplo mais dramático da história da humanidade talvez seja o empilhamento maravilhoso das catedrais góticas, feitas de pedras sobre pedras. Pedra sem nenhum adesivo, sem nenhum cimento. É só a geometria que contraria as leis inexoráveis da natureza. Aquilo que faz a pedra cair é justamente a força que mantém, com a geometria adequada, as pedras em pé em uma catedral. Há quem diga, com muita propriedade, que as palavras estão para um literato, um poeta, um escritor, como as pedras estão para uma catedral. Construir um raciocínio com as palavras é arrumá-las de maneira construtiva. Isso para alimentar uma divagação em torno da ideia de projeto.
Já que o objetivo da arquitetura é, como você defende, “evitar o desastre”, seria agora a arquitetura mais do que nunca uma ferramenta civilizatória no debate que surge diante de um país cindido, em crise e falta de rumos?Como vê o Brasil hoje?
O que se vê na América, e muito particularmente neste grande território que é o Brasil, é a falta de planejamento fundamental. Isso envolve transformação da natureza. É necessário planejar, por exemplo, no campo particular do território americano, o sistema de navegação pluvial. Há que fazer as ligações desejadas do Atlântico com o Pacífico. Hidrovias e ferrovias, com certeza. O que traria grande progresso para a América Latina e principalmente à ideia implícita de que não teríamos que invadir outros países porque os rios saem de um país e atravessam outro, e essas ferrovias também assim o fariam. Um planejamento que exige parceria entre vários países. A aplicação do conhecimento humano sobre nossas ações são instrumentos da construção da paz na América Latina, da construção da solidariedade entre os povos. A falta desse planejamento básico faz com que a iniciativa industrial, de modo geral, seja liberada para uma simples especulação mercantilista, o que só pode resultar em desastre, haja vista a cidade de São Paulo. Basta observar o que aconteceu com as águas aqui e o desastre do sistema de transportes. O que se vê é degenerescência, o mau uso ou o uso errático das virtudes do conhecimento.
Sim, porque gasta-se muito dinheiro para fazer algo e depois se destrói ou se abandona isso tudo.
Uma constatação interessante é considerar as virtudes da verticalização. Na medida em que concentra a população, ela favorece o transporte público e a convivência das pessoas. Eis o quadro da cidade moderna: adensada, concentrada. O conhecimento da mecânica dos solos, a invenção do elevador… O que se podia chamar de moderno em relação aos novos tempos, a verticalização, não pode ser imaginada para ser aplicada sobre a matriz anterior, que são os pequenos lotes feitos para construir casinhas. Portanto, você tirar uma casinha aqui e fazer um prédio e tirar outra casinha acolá e fazer outro prédio só pode dar em grande desastre. É aplicar o novo na matriz antiga. Para verticalizar é preciso recompor o desenho do território. Foi o que aconteceu na implantação do Edifício Copan, que contempla o espaço do pedestre e o espaço do solo urbano na sua fruição, tornando público o chão do pedestre. É o que não aconteceu na avenida Paulista. O único quarteirão da avenida Paulista onde você pode flanar, passear, é o quarteirão do Conjunto Nacional porque esse projeto foi feito em uma quadra inteira. Ali ficam evidentes as virtudes de se possuir um largo espaço e transformar a questão básica da nova implantação de edificações em uma cidade contemporânea. O grande tema da arquitetura não é o edifício como fato isolado, mas sim a construção da cidade.
Trata-se de percepção do que é espaço público e espaço privado, não?
Há uma arquitetura que ofende, que agride a convivência cotidiana do cidadão, porque a cidade foi feita principalmente para que possamos conversar uns com os outros. A cidade é sempre, por si, uma universidade, uma escola. Um arquiteto, diante do conceito de espaço, deve se obrigar a ver que não há espaço privado. Se é espaço, já é por si público.
Certa vez você falou que “o condomínio fechado é o ovo da serpente”. A arquitetura de especulação imobiliária reduziu a arquitetura a uma simples questão de metros quadrados de quarto, banheiro, terraço gourmet, guarita de segurança?
Sim, esses são exemplos claros de degenerescência do que poderia ser a dimensão atual do homem. Esses edifícios de até trinta andares com terraço gourmet em cada unidade parecem churrascos gregos em que se empilham carnes e se tiram fatias. Para um homem urbano, a graça do churrasco não é comer carne feita na brasa, mas sim frequentar uma churrascaria, conviver com o outro. O tal terraço gourmet é uma anedota. É como uma piscina diante da praia e do mar. É uma coisa ridícula.
Gostaria de seu comentário sobre aquela imagem, muito divulgada na imprensa, da família de favelados que assiste, do morro, à abertura das Olimpíadas no Maracanã. Essa imagem define o Brasil de hoje?
Define e muito bem. Porque naquele instante, aquilo que era tido como precário, a favela, mostra-se extremamente virtuoso. São as famosas lajes, alugadas para turistas no réveillon. São as contradições que revelam a maneira errática como tudo isso evoluiu diante das idiossincrasias da especulação imobiliária. Como é mais dispendioso construir em algo que não seja horizontal, abandonaram as encostas, que foram ocupadas pelas favelas. No fundo, é casa-grande e senzala. Aqueles edifícios feitos para a classe mais abastada não funcionariam sem o contingente serviçal de porteiros, faxineiros, babás. Então foi concedida, como se ninguém estivesse vendo, aquela ocupação que acabou configurando esse quadro que você descreveu. É uma imagem deliciosa em suas contradições porque ela nos faz ver agora, com as lajes, o quanto é invejável morar na favela. Sob certos aspectos, é claro.
O aspecto da paisagem basicamente, não?
Do desfrute do horizonte, sim. Porque a questão do banditismo que está se passando lá é outra questão. Degenerescência, aliás, que acontece em qualquer edifício burguês também. Degenera por dentro, aqui ou ali, na favela ou no prédio de alto padrão. O problema não está na localização, mas no comportamento. A questão é de civilização. Hoje tudo isso vem à luz com muita clareza. Você vê a dificuldade da Europa em construir, em estruturar bem aquilo que ela mesma se propôs e não está conseguindo: a União Europeia. É uma questão de civilização como um projeto para ser construído e não algo que possa haver por si. Não é à toa que nunca se falou simplesmente em paz, mas sempre se fala em construção da paz. Porque essas supostas virtudes que imaginamos para nós jamais aconteceriam naturalmente. São projetos humanos.
Você é o arquiteto brasileiro mais premiado de todos os tempos. Esse reconhecimento internacional a seu legado arquitetônico pode ajudar a restaurar, preservar e manter íntegros os projetos que construiu?
Eu não tenho nenhuma responsabilidade pelo fato em si das premiações. Eu só fiz o meu trabalho. Se há um argumento para me sentir feliz com essas premiações é que a decisão é do outro. E isso, para quem, como eu, trabalha há quase setenta anos, não deixa de ser estimulante. Eu nasci em 1928 e trabalho desde os vinte anos. É estimulante você pensar que o seu trabalho pode continuar e contribuir para o conhecimento universal, como todos esses prêmios estão dizendo. O Leão de Ouro da Bienal de Veneza é um prêmio particularmente delicioso para os arquitetos, porque é a figura do leão alado que, além de estar na Piazza San Marco, é uma lindíssima quimera, animal mitológico que pode ser entendido como metáfora da invenção.
Seu trabalho falou por si e conquistou os prêmios.
São os outros que estão dizendo. A própria existência desses prêmios talvez seja uma questão interessante de cogitar, porque mostra que essas instituições sabem que é verdade aquilo que dizem os filósofos e que eu gosto muito: se cada um de nós sabe que vai morrer, no entanto sabemos também que não nascemos para morrer, que nascemos para continuar.
Isso abrange toda a produção humana. O homem produz para continuar, seja na obra arquitetônica, na obra literária…
Qualquer forma de conhecimento – dos bailarinos, dos físicos, dos poetas – é uma política de ação humana. É o que se chama transmissão do conhecimento enquanto experiência, que é um privilégio do homem, essa concomitância entre consciência e linguagem. A linguagem foi inventada entre nós para dizer ao outro aquilo que acabei de perceber. Nos dias atuais, esse raciocínio mostra que é um absurdo transformar o ensino em mercadoria. Escola paga não pode existir. O ensino tem que ser grátis, o ensino tem que ser público.
Até porque o ensino público permite convivência entre diversas camadas da população.
É para todos. O acesso ao ensino precisa ser livre, porque é um
privilégio do homem.
Você é um otimista?
Todo homem que trabalha imagina o êxito do que está fazendo. Isso não é otimismo: é uma condição humana. Se você bate com um martelo em um prego, você pretende que algo fique pregado. Mas, se bater no dedo, é o que chamamos de desastre. Se construirmos uma mesa, diremos que é um êxito. Portanto, é outro paradigma da arquitetura. Não há como dizer qual é o objeto da arquitetura. São infinitos os seus horizontes. Porém, por graça, pode-se dizer que é exibir o êxito da técnica.
E da arte, não?
Quando você diz exibir já está na dimensão da arte. Porque arte é seduzir o outro. Portanto, você tem que usar na linguagem da forma algo sedutor. Essa é a dimensão artística que inventa a linguagem. Nós estamos condenados a transformar ideias em coisas. Se a ideia está em sua mente, ninguém pode ler isso a não ser que se transforme em uma coisa. Entendendo que o poema também é uma coisa, que deve estar escrita com palavras.
Você diz que a arquitetura deve amparar a imprevisibilidade da vida, e que ela não é feita para determinar o que você deve fazer. Como vê essa declaração de princípios na supremacia da liberdade de pensamento e ação nesta época em que cada vez mais se acirram ideias sectárias? Como vê o recrudescimento do pensamento totalitário hoje no Brasil?
O século 20, como já disseram grandes historiadores da atualidade, foi um século de horrores. O que se espera é que esse tipo de antagonismo, por experiência, não se repita mais naquilo que se chama projeto do homem. A repetição daqueles horrores só mostra a urgência da convivência entre nós, diante da consciência de que somos todos habitantes do planeta Terra. Quando se fala em amparar a imprevisibilidade da vida, quero relativizar a ideia de funcionalidade e os programas que se fazem para este ou aquele edifício funcionar. Quero relativizar a ideia de que aquilo seja uma forma que vai se tornar, no edifício construído, um modo inexorável de viver. Quando você faz uma casa, nunca pode dizer que é para aquela determinada pessoa. Isso é só um argumento inicial, porque amanhã a casa poderá ser de qualquer outro.
Você concorda que o recente vandalismo ao Monumento às Bandeiras demarca o surgimento dos neotalibãs, que querem a destruição dos símbolos mesmo que estes sejam patrimônios culturais da população? A condenação dos bandeirantes como escravagistas de índios, análise histórica mais do que correta, justificaria a agressão a essa obra artística?
Não parece uma ação política digna do conhecimento atual que se tem sobre as ações políticas. O vandalismo, de modo geral, já é uma atitude retrógrada. Pode-se ficar de acordo com o significado do ato, mas em desacordo com a forma como ele foi feito. Porque aquele ato foi um desprezo muito grande pelo trabalho do outro, do escultor que fez aquilo. O problema não é ficar contra a ideia do ato mas ficar contra essa forma de exprimir ideias hoje. É má política.
O protesto podia ser feito, com foto do monumento modificada digitalmente, por exemplo, e distribuída amplamente na internet. Algo que exprimisse a necessária defesa dos direitos indígenas, mas não atentasse contra a obra de arte de Brecheret.
Claro. A gente fica chocado quando vê que alguém pode ter coragem de fazer aquilo com algo que um artista esculpiu meticulosamente na pedra, durante anos. Feito de pedra porosa, frágil. Jogar tinta nesse monumento é arriscar que a tinta não saia ou que ela saia com prejuízo do monumento. No Rio de Janeiro, por exemplo, picharam o Museu Nacional de Belas Artes, na frente do Teatro Municipal. Todas aquelas guarnições são de granito e nesse material há uma absorção daquelas tintas vagabundas que não saem nunca mais. É uma grande tolice fazer isso. Melhor se organizar politicamente para ter voz junto às instituições. Buscar ações que possam ter mais efeito na república. Vejo como altamente positivas, por exemplo, as ocupações de prédios desabitados. Algo que faz parte da transformação
da cidade: novos usos para a mesma coisa, diante da urgência da questão habitacional. Ocupação não é destruição, é reutilização. Um edifício precisa ter utilidade, ter uma função desejada por todos.
Angélica de Moraes é crítica de artes visuais e jornalista.