Paulo Francis: o poderoso brigão
O amor à polêmica e a disposição de impor sua opinião a qualquer preço mantêm o jornalista e escritor na primeira linha do debate ideológico e cultural no Brasil dez anos depois da sua morte
Geraldo Galvão Ferraz
Jornalistas não costumam sobreviver à efêmera vida útil dos jornais, impressos ou de rádio/TV. Seu meio vital é essa coisa ilusória: o fato, a notícia. Paulo Francis, dez anos após sua morte, continua entre nós devido a um material até mais evanescente que a notícia, ou seja, a opinião.
Geralmente, ainda há alguma lembrança da figura do arrogante correspondente nova-iorquino dos telejornais da Globo, olhando a câmara de cima e falando com uma voz inconfundível. Ou do astro do programa Manhattan Connection que provocava as maiores discussões e as mais estrepitosas gargalhadas do horário.
Essas são, porém, manifestações da persona televisiva de Francis, que o antigo ator cultivou com técnica e esperteza. Quem se lembra da imagem de Francis na TV certamente ainda retém a memória daquele esgar de desdém que ele usava ao tratar de desafetos pessoais ou ideológicos.
A sobrevida de Paulo Francis tem que ver com a intensidade e a qualidade do que ele escreveu. Com base em uma impressionante e desordenada cultura em grande parte autodidata (ele nunca fez uma faculdade), ele opinou sobre quase tudo. Acertou muito, mas errou muito. A partir de certa época, quando consolidou seu lugar na imprensa, passou a não dar a menor bola para a exatidão e até mesmo para a coerência. Seus inimigos mantinham uma rotina de trabalho de tanto apontar erros factuais em suas colunas. O trator Francis não ligava a mínima e ia em frente.
Mesmo assim, era uma raridade na imprensa brasileira, tão avara de tomadas de posição (o porquê disso, claro, é outra história). Paulo Francis, na sua estréia como crítico de teatro, em 1957, já propunha uma briga: quem seria melhor atriz, Cacilda Becker ou Fernanda Montenegro? Ele optou por Cacilda, mas já era sua marca registrada despontando. Ser paradoxal, polêmico, às vezes exagerado tanto nos elogios quanto nas demolições. Defendia suas convicções sem olhar a quem, desde que, como escreveu, pudesse ter o supremo prazer de torcer o nariz dos poderosos.
Quem relê hoje as colunas de Paulo Francis, sobretudo as do “Diário da Corte”, sai com a impressão de que ele, muitas vezes, se crê um árbitro da elegância, do bem pensar, do bom gosto, do bem viver, que está dialogando com a plebe ignara, do único jeito que essa conversa pode acontecer: de cima para baixo. Colocando Nova York como a capital do mundo, envia torpedos de civilização para este Bananão, tão subdesenvolvido. Há um quê de ingenuidade quando, por exemplo, ele conta o preço daquilo que comeu no Le Cirque (a não ser que tenha sido uma exigência do jornal). Também, na mesma clave, em O afeto que se encerra, seu livro de memórias de 1980, não faltam menções de façanhas sexuais e alcoólicas, de brigas épicas e de bravatas físicas dignas de um adolescente.
Árbitro da elegância ou não, o texto de Paulo Francis é sempre uma delícia de ler e tem uma qualidade rara: é uma escrita tão sedutora que, de repente, faz com que se esteja concordando com ele, mesmo a contragosto. Ele faz uma mistura do culto com o popular, vai do erudito ao palavrão, usa seus bordões com extrema propriedade. Waaal!, vivia exclamando. Manejava bem o humor, sobretudo quando se tratava de espinafrar alguém.
Essas virtudes, mais o destemor da briga, uma honestidade latente e, na mais quixotesca das acepções, uma vontade de melhorar o Brasil formam o bloco sólido que tornam Paulo Francis ainda existente no panorama intelectual brasileiro. Ele se referiu a uma coexistência do apátrida com a brasilidade dentro dele, desmentindo que renegasse o Brasil, e sempre exaltou o fato de, ao vir para o Brasil, ter um grupo de amigos íntimos que vinham da juventude.
Sua história aqui começou quando o menino Paulo Francis nasceu Franz Paulo Trannin Heilborn, em 2 de setembro de 1930, na rua São Clemente, em Botafogo, Rio de Janeiro, o segundo de três irmãos. Uma constante em seus textos foi uma nostalgia de um Rio mais para idealizado, em que um povo civilizado e de boas maneiras desfrutava de uma zona sul limpa e não freqüentada pelos bárbaros, frangos e farofas da zona norte.
Sem uma formação profissionalizante, foi tentar ser ator no Teatro do Estudante de Paschoal Carlos Magno; logo estava em uma excursão pelo Norte e Nordeste quando lhe caiu a ficha de um Brasil miserável, offzona sul, entre representações de Shakespeare, Ibsen e Sófocles. Voltando ao Rio, já com o codinome de Paulo Francis, dado por Paschoal, ofereceu-se como crítico de teatro e começou nas páginas da Revista da Semana, dirigida por Hélio Fernandes. Passou pelo Correio da Manhã, pelo Diário Carioca e pelo Última Hora.
“O teatro finalmente me levou ao que eu desejava evitar: o envolvimento político direto no Brasil marginal”, escreveu Francis, para quem “O jornalismo… passara a ser vital como interesse e ganha-pão.”
Foi editor da revista Senhor e da revista Diners e tornou-se uma figura nacional escrevendo em O Pasquim. Assumidamente trotskista nessa época, foi preso quatro vezes em tempos da ditadura militar. Transferindo-se para Nova York, em 1971, tornou-se correspondente da Globo, escrevendo colunas, artigos e reportagens para grandes jornais como a Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo, dentre outros. Morreu no dia 4 de fevereiro de 1997, após um enfarte, em Nova York,onde morava com a mulher, a escritora e tradutora Sonia Nolasco, e três gatos.
Sempre quis ser escritor, desde que leu, aos 13 anos, Crime e castigo. Publicou, além de várias coletâneas de textos, os romances Cabeça de papel e Cabeça de negro, tendo deixado o inédito O homem que inventou o Brasil, sobre Getúlio Vargas, e Jogando cantos felizes, que deve ser publicado este ano, além de um punhado de contos. Os romances dividiram a crítica e não conquistaram o público, uma reação que o levou à depressão.
Francis, porém, se orgulhava dos seus 1,82 m, do seu porte robusto, mas não gostava de usar aqueles óculos de grossas lentes. E o seu jeito arrogante e implacável na tela da TV encontrava um coro de desmentidos entre as pessoas que o conheciam fora dela. Havia uma unanimidade ao chamá-lo de uma pessoa simpática e doce. Às vezes, os testemunhos chegam a precisar: “um doce-de-coco”.
(1) Comentário
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
após a morte de paulo francis,eu nunca mais comprei jornais.
o fim de uma era para mim teve início.após a morte de paulo francis,os domingos voltaram a ser domingos:vazios!