Passagem inevitável do tempo

Passagem inevitável do tempo

O argentino-israelense Daniel Barenboim é uma das mais influentes figuras do mundo da música na atualidade. Exímio pianista que ainda dá recitais solo e pratica a música de câmara, regente dos mais prestigiados – atualmente é diretor da Orquestra Staatkskapelle Berlin –, é ainda criador, ao lado do intelectual norte-americano de origem palestina Edward Said, da Orquestra West-Eastern Divan, que congrega jovens músicos de Israel e de países árabes. Dele, acaba de sair A Música Desperta o Tempo (Music Quickens Time).
A ideia central que permeia os ensaios que compõem o livro é a de como a música pode ser um espelho para a vida – ou melhor, para a sociedade. Nessa arte que possui uma linguagem tão particular, poder-se-ia observar como se dá a interação entre sujeitos e elementos diversos, num equilíbrio em que somente a soma de cada parte produz um resultado satisfatório, orgânico, coerente. Como fazer, então, para que a música contribua de fato para melhorar a sociedade?

Música e vida

Barenboim cita alguns exemplos concretos nos três primeiros ensaios, que de certa forma formam a primeira parte do livro – mesmo não estando formalmente dividido dessa maneira, acredito que haja três grandes eixos a estruturar a obra. Existiria uma relação entre o som e o silêncio muito similar à que há entre a vida e a morte, por exemplo. Da mesma forma, cada uma das notas musicais dentro de uma peça seria um protótipo do papel do indivíduo na coletividade: “As notas, que seguem umas às outras, operam claramente dentro da passagem inevitável do tempo. Na música, a expressividade é dada pela relação entre as notas (…) Isso determina que não se pode permitir que as notas desenvolvam o seu eu natural, tornando-se tão importantes a ponto de ofuscar a anterior. Cada nota deve ser consciente de si mesma e também de seus próprios limites; as regras que se aplicam aos indivíduos na sociedade aplicam-se igualmente a elas, na música. Quando se executam cinco notas que estão ligadas, cada uma delas luta contra o poder do silêncio que quer lhes tomar a vida, e, por isso, posicionam-se em relação à nota anterior e à seguinte. Nenhuma delas pode ser altiva, querendo ser mais forte que aquela que a antecedeu (…) Esse fato tão simples me ensinou a relação entre o indivíduo e o grupo. É necessário ao ser humano contribuir para a sociedade de um modo muito individual; isso torna o todo muito maior que a soma das partes. A individualidade e o coletivismo não devem ser mutuamente exclusivos; na verdade, juntos eles são capazes de melhorar a existência humana”.
O estabelecimento de tais relações, obviamente, pressupõe um conhecimento musical razoável. Tal conhecimento, no entanto, anda cada dia mais escasso no mundo, já que a música foi abolida da maioria das escolas. “Nenhuma escola eliminaria o estudo de idioma, matemática ou história de seu currículo, no entanto, o estudo da música, que abrange tantos aspectos dessas áreas do conhecimento e pode até contribuir para uma melhor compreensão deles, muitas vezes é totalmente ignorado”, afirma Barenboim logo na introdução.
A ausência da música como matéria escolar certamente tem algo a ver com sociedade atual, que valoriza muito mais a visão do que a audição, outro aspecto por ele abordado. Andamos cada vez mais insensíveis às informações recebidas pelo ouvido, sendo estimulados, desde a infância, a perceber os fenômenos pela visão, o que causaria uma espécie de atrofia no potencial auditivo da maioria das pessoas. Essa falta de educação e de atenção para a música possibilita um desvirtuamento de sua função, tornando-a descritiva ou permitindo falsas associações: “a Quinta Sinfonia de Beethoven certamente não foi criada para nos fazer pensar em chocolates, como uma fábrica norte-americana gostaria que acreditássemos”. Por outro lado, também não escapam de suas críticas escolas de música e conservatórios, onde o ensino praticado é altamente especializado e desligado do sentido global da música. Ou seja, Daniel Barenboim reivindica para essa arte o papel de instrumento essencial no desenvolvimento integral do ser humano. A educação musical deve ser introduzida desde cedo, para que a música se torne tão orgânica quanto a linguagem falada.

A experiência do “Divã Ocidental-Oriental”

Tanto Paralelos e Paradoxos – seu livro anterior, na verdade um grande diálogo registrado entre Barenboim e Said sobre música e sociedade – como A Música Desperta o Tempo são dedicados aos músicos da West-Eastern Divan, projeto que em 2009 completa 10 anos. É dele que Barenboim trata na segunda e mais instigante parte do livro. A orquestra nasceu em 1999 em Weimar, ano em que a cidade foi escolhida como “capital europeia da cultura”. O nome remete a um conjunto de poemas que Goethe escreveu inspirado pela obra do poeta persa Hafiz e que focaliza a ideia do outro. Seu princípio, segundo Barenboim, era bastante simples: “Uma vez que os jovens músicos concordassem em tocar apenas uma nota em conjunto, eles não seriam capazes de olhar uns para os outros da mesma forma novamente. Se na música eles foram capazes de seguir com um diálogo, tocando simultaneamente, então, um diálogo verbal comum, em que cada um espera até que o outro se cale, se tornaria consideravelmente mais fácil”.
Barenboim afirmou diversas vezes que o objetivo da orquestra é humanista e não político, mas fica impossível separar as coisas. A West-Eastern Divan é um projeto político na medida em que concebe a política como atividade passível de ser desempenhada por qualquer cidadão envolvido com questões públicas relevantes de sua época, e interferindo de forma ativa nessa realidade. Explicando conceitos e convicções que estão por trás do projeto, ao mesmo tempo em que revela os mais importantes fatos que sucederam ao grupo de 2004 para cá, Daniel Barenboim acaba por nos mostrar como ele mesmo se utiliza das ferramentas aprendidas na música para interferir na vida/sociedade. Numa das várias metáforas que propõe, afirma que o diálogo israelo-palestino deveria ser como uma fuga, com vozes contrapontísticas: nela, sujeito e contrassujeito têm igual importância, já que não há sentido em um sem o outro, e cada voz tem seu próprio discurso ao mesmo tempo em que é intimamente ligada à outra.
Para ele, “a Orquestra West-Eastern Divan é, obviamente, incapaz de trazer a paz, mas pode criar condições para o entendimento mútuo, sem o qual é impossível até mesmo falar de paz. Ela tem o potencial de despertar a curiosidade de cada indivíduo para ouvir a narrativa dos outros e de inspirar a coragem necessária para ouvir o que, às vezes, se prefere não dizer”.

O músico

Os apêndices que compõem a última parte do livro – com entrevistas, depoimentos e artigos anteriormente publicados – nos permitem enxergar o músico em seu artesanato diário, ou explorar sua formação e idiossincrasias. A importância de Bach e Mozart em sua carreira, suas críticas ao movimento da interpretação musical historicamente orientada e seu envolvimento com a música contemporânea estão entre os temas abordados. Em mais de uma passagem ele revela sua opinião sobre as “interpretações históricas”: “Tenho dois problemas com o assim chamado movimento sonoro original. Primeiro, incomoda-me o fato de que se trate de um movimento, portanto, de uma ideologia, uma visão de mundo que coloca menos perguntas do que deveria (…) Em segundo lugar – e digo isso agora sem qualquer ironia – essa ideologia conseguiu vender-se como progressista”. “Na verdade, o meu problema maior é com alguém que tenta imitar o som de uma outra época”, resume.
No sentido oposto, a música contemporânea sempre recebeu de Barenboim atenção especial. Sua longa colaboração com Pierre Boulez é destrinchada num artigo dedicado ao compositor e no qual ele revela uma opinião compartilhada por ambos: “Frequentemente, o problema com a música atual é que os trabalhos não são repetidos o suficiente. Em consequência, não é possível adquirir a familiaridade necessária – em primeiro lugar, para a orquestra. Por tocar uma nova peça apenas uma vez, mesmo depois de prepará-la muito bem e nunca mais repetir essa apresentação, a orquestra não pode chegar à familiaridade da qual necessita para tocá-la com maior liberdade. E, naturalmente, nem o público”.
Criança prodígio e pianista de carreira brilhante, Daniel Barenboim desfruta hoje da posição de um dos maestros mais importantes do mundo. Aos 67 anos e após quase 60 de carreira, tudo isso não poderia parecer, por um lado, um pouco entediante e carente de desafios? O que parece claro, no entanto, é que a West-Eastern Divan fez com que o músico se reposicionasse nesse cenário, buscando na arte um papel muito mais amplo e transformador da sociedade. Na leitura reveladora de A Música Desperta o Tempo, essa e muitas outras questões são exploradas de forma instigante e apaixonada.

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