Parar o pior

Parar o pior
(Foto: RWBPress)

 

Há momentos em que a única coisa sensata a fazer não é lutar pelo melhor, mas usar nossas forças para evitar o pior. Mais de um mês depois de seu início, a guerra entre Rússia e Ucrânia produziu, até o momento, 3,5 milhões de refugiados e um país completamente devastado. No entanto, a grande maioria das análises que encontramos dizem respeito a causas da guerra, seus responsáveis, além de belos textos sobre julgamentos morais, mas poucas se dedicam ao que seria certamente o processo mais importante nesse contexto, a saber, como parar a guerra o mais rápido possível.

Dificilmente haveria coisa mais produtiva a fazer do que mobilizar a opinião pública para saídas capazes de parar a guerra e impedir que ela se perpetue como uma situação de longa duração. Perpetuar a guerra por mais meses significa inviabilizar a Ucrânia como país por anos e fazer de parcelas significativa de seu povo pessoas marcadas pelo desterro e pela destruição total de seu espaço de vida. Seria efetivamente mais responsável se a comunidade internacional estivesse engajada em discussões sobre como parar a guerra, em vez de tentar sustentá-la material e simbolicamente.

Todos nós conhecemos a clássica discussão a respeito de guerras justas, e não se trata aqui de questionar o direito de toda e qualquer população de se defender quando atacada. No entanto, há várias formas de defesa e algumas mais eficazes do que outras. Sustentar uma guerra territorial contra uma potência nuclear com 4650 ogivas, com um governo que sabe bem que cairá caso perca a guerra e que por isso mesmo irá até o fim em suas ações, com a violência que for necessária, não parece a melhor maneira de defender-se.

É possível indignar-se com posições e tons dessa natureza. Pois podemos sempre afirmar que é fácil pedir a populações que parem de lutar em uma guerra de invasão quando não é nosso próprio território que está a ser atacado. Mas o argumento reverso também pode ser utilizado. É fácil pedir a populações que continuem a resistir quando não somos nós que estamos na linha de frente da batalha. Alguns poderiam afirmar que podemos, ao menos, dar nosso apoio material e ajudá-los a se armar. Mas haverá sempre os que afirmarão que, devido à desproporção brutal da relação de forças e da ameaça nuclear, isso é simplesmente convidar tais população a auxiliar a dizimar seu próprio país.

Sabemos bem o que significaria o envio de tropas de outros países para a Ucrânia, a saber, uma guerra de escala mundial sem nenhuma garantia de qual seria seu final. Por isso, uma solução dessa natureza está completamente descartada. Vale a pena lembrar aqui ainda das consequências de ações passadas de enfraquecimento da ONU. Elas vieram de potências ocidentais, principalmente após a invasão norte-americana no Iraque. Pagamos atualmente o preço de irresponsabilidades dessa natureza, pois não temos mais um fórum internacional ao qual apelar, não há mais “capacetes azuis” a enviar a uma guerra a fim de tentar controlá-la.

Por outro lado, creio ser correto afirmar que se engana quem acredita que essa é uma guerra “pontual”. Na verdade, é possível que ela seja o sintoma de um problema estrutural. Os processos de acumulação capitalista sempre foram feitos por meio da guerra, seja entre nações ou contra populações. Alguns acreditavam que esse tempo havia passado, mas é possível que tal análise fosse demasiado otimista. A Rússia é um país que, durante décadas, procurou se recuperar do trauma da decomposição de sua força imperial. Agora, ela usa uma guerra convencional de ocupação para impor ao mundo o que ela compreender ser sua zona natural de influência. Nada nos garante que outros países que se tornaram potência militares, como a China, também não o façam a médio prazo. Até porque a noção de “zona de influência” não tinha sido abandonada pelas potências ocidentais. Lembraria, apenas para ficar em um exemplo, que vários foram os políticos que a utilizaram para justificar o envio de tropas francesas ao Mali.

Obviamente, não se trata de “naturalizar” a monstruosidade das ações feitas no interior de tal lógica. Mas a melhor maneira de lutar contra algo é entendendo sua real função e resiliência. Vivemos em um mundo no qual a guerra imperial não é uma realidade presente apenas em livros de história. Ele é algo com o qual precisaremos saber como lidar. Não temos estruturas multilaterais para operar mediações políticas. Nós mesmos a destruímos. A lógica de sanções econômicas pode entusiasmar alguns, mas historicamente ela sempre foi no mais das vezes inefetiva, vide Cuba que passou por 60 anos de sanções. De toda forma, a aliança Rússia, China, Índia não parece realmente contribuir para isolar economicamente Putin. Logo, por enquanto, o que resta é saber evitar o pior em situações nas quais o pior ocorre diante de nossos olhos.

A essa altura do artigo, deve ter ficado claro que seu autor está entre os que advogam que a Ucrânia se torne um espaço neutro, em um modelo que, de certa forma, aproxima-se da situação finlandesa na época da guerra fria. Claro que é terrível um país perder o direito efetivo de controlar sua própria política exterior. Mas se essa for a condição para parar a guerra e sua destruição o mais rápido possível, ele valerá a pena.

Por fim, insistiria no equívoco de ler esse conflito atual dentro de uma lógica de guerra entre modos de vida, sendo que de um lado estaria um modo de vida mais democrático (o nosso) e de outro lado um modo de vida mais autoritário (Rússia, China, além de apoiadores mais ou menos explícitos como Índia e o governo brasileiro). Nosso “modo de vida” está economicamente completamente conectado a tais países com governos autoritários.

Empresas ocidentais não apenas fazem negócios com tais governos, mas produzem e subsidiam processos extrativistas fundamentais para a estabilidade econômica de países do Atlântico Norte. Alguém de pouca fé poderia inclusive se perguntar se não haveria alguma necessidade orgânica do processo capitalista global conseguir produzir riqueza com a exploração brutal de recursos naturais e da exploração estrutural da força de trabalho feita sob governos autoritários, longe de nossos olhos. Nesse sentido, Rússia e China são parte orgânica de nosso próprio “modo de vida”. O que mostra o quanto nós próprios contribuímos para a situação atual.

Vladimir Safatle é Professor Titular da USP e atualmente fellowship do The New Institute/ Hamburgo.


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