Para uma vida equilibrada
A filosofia de Sêneca testemunha o poder consolador que o pensamento pode ter em nossa vida interior
Luizir Oliveira
Parece um dado bastante claro, em nosso mundo, a tentativa de aliviar de modo absoluto o sofrimento humano. O bem parece estar na satisfação integral de nossas expectativas e a felicidade é concebida como ausência de dificuldades, sofrimento ou tristeza.
Todavia, esse bem e essa felicidade são possíveis? Nossa humanidade não implicará, talvez, aceitação de frustrações? Por sua vez, essa aceitação significa necessariamente sofrimento? Ela não pode ter outro sentido? O pensamento humano não pode, de algum modo, contribuir para mudar o sentido do sofrimento?
No contexto dessa problemática, a filosofia de Lúcio Aneu Sêneca tem certamente, ainda, algo a dizer. Nascido em torno do ano 4 a.C., Sêneca influenciou bastante a história do pensamento filosófico, justamente por sua tentativa de elaborar um pensamento ligado à experiência humana concreta, sobretudo a experiência do sofrimento.
Liberdade interior e consolação
Preceptor e ministro de Nero, profundamente envolvido com a vida política de seu tempo, Sêneca preocupou-se em encontrar para si mesmo e para todos aqueles que lhe eram caros um modo de vida cuja tônica fosse a liberdade interior. Seu intuito foi o de espelhar em seus escritos as aspirações dos seres humanos ocupados em encontrar em sua própria vida interior uma justificação para a existência, independentemente da realidade circundante. Para tanto, Sêneca esforçou-se por mostrar que o caminho para o maior dos desafios, o autodomínio, pode ser trilhado por qualquer indivíduo. Essa é uma lição oferecida explicitamente em suas Consolações, mas que também pode ser encontrada ao longo de toda sua obra, marcada pela tentativa de compreender os modos como a filosofia, especialmente o estoicismo, pode auxiliar os humanos a viver de modo harmônico tanto em relação a si mesmos quanto em relação ao mundo em que habitam.
Essa concepção da atividade filosófica levou Sêneca a redigir três Consolationes (consolos ou consolações), seguindo a tradição das “consolações filosóficas”: discursos, poemas, ensaios ou cartas pessoais de caráter consolatório, presentes na tradição antiga desde o século V a.C. São escritos normalmente endereçados a um amigo ou parente próximo que se encontra com um estado de espírito doloroso, em função da perda de um ente querido, de um amor não correspondido ou de alguma situação na qual a pessoa se sinta frágil, frustrada por algum contratempo que lhe escapa ao controle. Com Sêneca, esse tipo de texto, embora visando a um destinatário preciso, amplia-se, a fim de alcançar um público mais vasto. Ele nos mostra que estar preparado para um revés da sorte é o caminho mais seguro para suportá-lo.
Consolar, para ele, não significará meramente acolher a dor alheia, trazer alívio imediato ao sofrimento ou ao desgosto, ou suavizar experiências emocionais devastadoras. Sua lição será a de mostrar-nos que, diante de um duro golpe da sorte, é preciso que nos conformemos, não no sentido de aceitar resignada e passivamente aquilo que não podemos modificar, mas no de aprender a dar forma a nossas vidas mesmo quando nossas expectativas são frustradas. Afinal, no seu dizer, grande parte daquilo que consideramos males são, na verdade, apenas erros de julgamento a respeito das coisas, das pessoas ou das situações em que nos encontramos. Nossas dores e aflições não teriam nenhum poder sobre nós, caso fôssemos capazes de manter nossa mente tranquila, precavendo-nos contra os nossos juízos imediatos, que tomam a realidade simplesmente por aquilo que nossos olhos veem ou nossos ouvidos ouvem. Sêneca tem em mente a ataraxia estoica, um estado de imperturbabilidade emocional que em sua filosofia adquire contornos mais suaves, tornando-se algo acessível ao homem comum.
Sustine e abstine!
Esse ideal de uma atividade mental que não ceda às investidas das múltiplas experiências, mas que chegue a uma correta avaliação das coisas, permite entender melhor a divisa sustine et abstine que será retomada por Epicteto, com ecos na tradição cristã posterior. Para Sêneca, não se trata, simplesmente, de abster-se em face dos sentimentos mais corrosivos ou das emoções mais desbragadas que nos assolam, mas de aprender a não ceder a eles, a não se deixar arrastar. Em lugar de abster-se (que seria uma espécie de covardia em face dos desafios com que nos deparamos cotidianamente), o conselho é conter-se.
Conter-se, no entanto, exige de nós uma total reformulação de nossos modos de ler a realidade e das maneiras como criamos representações descuidadas a respeito dela. E não apenas isso. Nós nos resguardamos sob elas, como sob uma árvore frondosa. Esquecemos, entretanto, que, num momento de tormenta, aquilo que supostamente nos oferece abrigo é justamente o que pode nos levar à desgraça. Precisamos enfrentar os ventos, reavaliando nossas representações da realidade e revalorando as coisas.
Um caminho para alcançar o autocontrole e afastar da mente os males que a afligem consiste em dedicar um tempo à meditatio. Estar com si mesmo e reservar um tempo durante o dia ao ócio reflexivo é, segundo Sêneca, essencial para nós, pois nos auxilia a entrar em contato com nossa vida interior. Quando nos separamos momentaneamente dos outros e nos permitimos um momento de solidão produtiva, temos a chance de compreender os porquês dos nossos assentimentos, do “sim” imediato que damos à primeira impressão sobre as situações etc. Contudo, convém enfatizar, na filosofia senequiana, a meditatio adquire contornos mais amplos, pois visa incentivar-nos a desenvolver o hábito de um cotidiano exame de consciência, repensando nossas ações e atitudes em face dos problemas que se nos apresentam. Sêneca traduz a seu modo a máxima socrática da filosofia como um “exame da vida”, com um viés prático, no intuito de demonstrar que se trata de algo acessível a todos os que buscam a harmonia interior.
Assim, ao repensarmos nossas reações imediatas, nossas respostas prontas e nossas atitudes irrefletidas, podemos compreender nossos limites para melhor lidar com eles. A partir desse ponto, é possível almejar a contemplação teórica, um momento posterior no caminho do filosofar que requer um preparo mais cuidadoso do espírito.
Como Sêneca nos ensina em suas Epístolas, refugiar-se em si mesmo é recomendável, a fim de evitar a dispersão no mundo, em busca de coisas que, por si mesmas, não trazem bem algum. A contemplação é um prazer de natureza superior, porque nos permite compreender quão melhores ou piores nos tornamos. Podemos, assim, refazer o curso de nossas ações e retomar o rumo de nossas vidas, cientes das coisas que dependem de nós, com uma inabalável força de vontade em direção à aquisição do bem supremo, do acordo que se deve estabelecer entre nós e a natureza (da qual somos partes indissociáveis), num exercício diário e exigente, mas cuja recompensa é duradoura.
Contudo, esse retirar-se em si mesmo requer atenção. Sêneca lembra-nos frequentemente que, quando estamos dominados pela dor ou pelo medo, é preciso redobrar os cuidados, para não fazer mau uso da solidão. É preciso ter discernimento suficiente para não tomar decisões erradas, tanto em relação aos outros como em relação a nós mesmos. Tarefa exigente, pois possuímos, todos nós, certas fraquezas físicas naturais que nenhuma sabedoria poderá suprimir, mas somente abrandar. Os condicionamentos que sofremos desde o nascimento tomam conta longamente do nosso espírito e acabam por se tornar hábitos arraigados. Trabalhar sobre eles em busca de um aperfeiçoamento possível é tarefa para toda a vida, sem que tenhamos jamais a certeza de alcançar o resultado esperado. Contudo, e aí reside outra das grandes lições que a filosofia senequiana pode oferecer, o importante não é sempre atingir o alvo, mas fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para atingi-lo. Uma flecha disparada já não está mais sob nosso controle; mas, se estivermos certos de termos bem fixado a mira, qualquer que seja o resultado, será algo a ser aceito como o melhor possível, dadas as condições de que dispúnhamos.
A filosofia cultivada por Sêneca, nesse sentido, não é uma filosofia inacessível, tampouco um tipo de sabedoria reservado a certos eleitos. Ela não consiste em palavras vazias, mas em reflexão com base em ações. Ela dá um testemunho do poder consolador que o pensamento pode ter em nossa vida interior, na medida em que defende a possibilidade de controlarmos nossos juízos sobre as coisas.
Numa palavra, o objetivo da filosofia de Sêneca está em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de lado. Como ele observa na Epístola 16, viver é “sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos”.
(2) Comentários
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De certa forma salvou meu dia, como se fosse o que eu precisava ouvir…”Para Sêneca, não se trata, simplesmente, de abster-se em face dos sentimentos mais corrosivos ou das emoções mais desbragadas que nos assolam, mas de aprender a não ceder a eles, a não se deixar arrastar. Em lugar de abster-se (que seria uma espécie de covardia em face dos desafios com que nos deparamos cotidianamente), o conselho é conter-se.
“
Percebemos que o pensamento de Sêneca, através da forma clara e objetiva como Luizir de Oliveira coloca, propõe uma Filosofia que se consolida na prática, no exercício cotidiano do repensar a vida e as emoções nos quais podemos representar a realidade. Buscar uma harmonia interior através dessa lapidação diária racional, torna-se a labuta na qual o homem deve se dispor para conseguir uma convivência “melhor” com os “demônios” interiores e exteriores nos quais sempre iremos nos deparar. Tal filosofia está disponível a todos auqeles que se dão uma oportunidade de cotemplarem a si próprio.