Para que serve um Eu

Para que serve um Eu
(Foto: Studio Lipnitzki/Roger-Viollet)

 

A cada instante, franjas de cultura (psicologia, moral, metafísica etc.) vêm se juntar às coisas, dando-lhes um aspecto menos estranho, mais compreensível, mais assegurador. Às vezes, a camuflagem é completa: um gesto se apaga de nosso espírito em proveito das supostas emoções que teriam lhe feito surgir, nós retemos que uma paisagem é “austera” ou “calma” sem poder citar nenhuma de suas linhas, nenhum de seus elementos principais (…) E se algo resiste a essa apropriação sistemática, se um elemento do mundo quebra o vidro, sem encontrar um lugar em nossa grelha interpretativa, temos ainda a categoria cômoda do absurdo, que absorverá esse resto incômodo. Ora, o mundo não é nem significante nem absurdo. Ele é, simplesmente. Ele está aí, em todo caso é o que há de mais impressionante. E de repente essa evidência se imprime em nós com uma força contra a qual não podemos nada.

Essas são afirmações do escritor Alain Robbe-Grillet, enunciadas há mais de cinquenta anos, quando era questão de apresentar certa tentativa de pensar o romance a partir de sua crise. Mas havia mais ironia nessas palavras do que pode inicialmente parecer. Pois quem as lê pode acreditar estar diante de alguém a fazer profissão de fé realista. Como se fosse o caso de dizer: demos forma antropomórfica ao mundo, falamos das paisagens como se estivéssemos a observar o rosto de alguém, com sua “calma” ou “austeridade”. Com isso, não percebemos o caráter impressionante da pura presença.

Mas, não, não será esse o caminho trilhado pela escrita dos que se associavam a tal diagnóstico de Robbe-Grillet. O contexto histórico de tal momento não comportaria tamanha ingenuidade no “retorno às coisas”. As colocações, na verdade, serviam para reconhecer o horizonte de fim de linha de nossa “linguagem expressiva”, de nossas “emoções” e “afetos”. Se havia psicologia demais por todos os lados, vindo não apenas das pessoas, mas até das paisagens, das coisas, do casaco que era descrito em cima da cadeira apenas para falar melhor de seu “dono”, do lugar social de seu “proprietário”, era porque a linguagem alienava mais quando ela parecia exatamente falar de nossa “intimidade”, de nossa “história de vida”. Lá, era onde ela mais mentia. E mentia de uma forma insuportável. A proximidade era a pior de todas as distâncias. Sua segurança era apenas a pior das mistificações que a escrita poderia repetir.

Pois essa crise do romance tinha coordenadas precisas. Ela trazia atrás de si a decomposição dos lugares naturais, dos lugares de onde vêm as falas. Mas não era o caso de falar como se o horizonte liberado estivesse ao alcance de nossas mãos. Estávamos nos anos 50 e 60 do século passado, em uma era histórica na qual a ideologia social anunciava o fim das contradições estruturais. Eram as “trinta gloriosas”: décadas nas quais o crescimento econômico fora vendido como cimento para a integração e para a parceria social pós-Segunda Guerra. E exatamente nesse momento aparecia uma literatura que preferia denunciar tal horizonte de integração afirmando que a linguagem não sabe como expressar, que seus pronomes pessoais da primeira pessoa são uma forma de colonização da experiência. Uma colonização que faz paisagens falarem de calmarias que elas não conhecem, de austeridades que elas nunca viram. A linguagem da segurança do mundo é uma linguagem da alienação que faz par com a alienação social.

Sexo e silêncio

Nesse contexto, a escrita do romance deveria ter uma função fundamental, a saber, escavar buracos, rodar em torno do que se recusa a narrar, implodir a primeira pessoa como foco de experiência e autenticidade. Quem leu O ciúme, de Robbe-Grillet, lembrará do que isso significa exatamente. Lá, seguíamos a descrição exaustiva de uma fazenda, com a disposição de suas plantações, com a estrutura de sua sede, com as rachaduras na parede, com seus lagartos. Descrição que se repetia de maneira marcial até deixar evidentes mudanças sutis, como se fosse questão de repetir para assegurar algo que está a desaparecer, ou algo que está lá para encobrir algo. Por trás desse objetivismo farsesco, desse realismo da esquiva, estava a descrição de um olhar enciumado, que não pode se confrontar ao que lhe retira de seu lugar, que roda em torno do que se recusa a narrar. Não havia primeira pessoa porque essa seria a pior maneira de descrever um afeto que vinha das coisas, prestes a explodir silenciosamente seus lugares. O ciúme é, paradoxalmente, algo que vem das coisas.

No entanto, talvez ninguém tenha feito essa operação de forma tão consequente e cruel como Marguerite Duras. “Cruel” não está aí por acaso, mas é a palavra que se impõe quando esse realismo de esquiva é feito contra si mesmo. Pode parecer inicialmente paradoxal que no meio dessa recusa do psicologismo, Duras seja lembrada por desenvolver uma escrita que oscila entre romances aparentemente autobiográficos e histórias com personagens e intrigas fictícias. Há a história de sua vida que perpassa vários de seus romances. Há o narrar de sua juventude como filha de colonizadores no Vietnã, da fragilidade de sua mãe, da autodestruição de seus irmãos, das experiências sexuais, do casamento com Robert Antelme, da prisão na Segunda Guerra, assim como vários outros fatos que ocorreram. Mas tudo isso é continuamente reescrito, reconstruído, várias inconsistências aparecem, como se ao final fosse o caso de narrar, na verdade, a impotência da língua que a obriga a conter-se diante de algo que a implode. Ou ainda narrar a primeira pessoa do singular como lugar de incerteza, como a maneira de trazer para dentro do romance não um testemunho, não um relato de descoberta, mas um estremecimento.

Há um filme de Duras chamado O caminhão. Ele é um filme sobre um filme que não deve ser feito e que nunca será feito. Nas primeiras cenas, vemos um caminhão que circula. Ele aparecerá em outros momentos. Mas logo somos enviados à própria Marguerite Duras e a Gerard Depardieu lendo o roteiro do filme. Eles leem e comentam, falam sobre como deverá ser o filme que nunca será. Ou melhor, Depardieu comenta, Duras corta. Por exemplo, quando perguntada sobre quem era a mulher que pegou carona no caminhão, ela diz apenas uma palavra: “desclassificada”. Palavra que deve ser ouvida em toda sua precisão: sem classe, sem pertencimento, sem grupo, fora da descrição. Essa crueldade é, no entanto, certa forma de preservação. Duras mostra claramente não querer falar dessa mulher, não querer declinar seus predicados, suas qualidades. Pois se trata de preservar o que não deixa que a experiência seja destroçada pelo nosso regime atual de visibilidade e nomeação. Essa é uma forma maior de crítica: subtrair, desafetar para liberar a energia negativa do que se afirma ao desamparar nossos modos de determinação de existência. “Desclassificada” é o verdadeiro lugar.

Essa crueldade cria principalmente quando fala de sexo. Pois Duras produz um dispositivo de falar de sexo que anda radicalmente na contramão da maneira com que nossa época julga resolver tal questão. Seria necessário voltar a Duras, novamente. Esse dispositivo desconhece lirismo e êxtase, mas sua atrofia por sua vez nada tem a ver com censura ou pudor. Na verdade, o que Duras coloca em circulação é um singular dispositivo que determina sexo como desabamento da representação, como lembrança daquilo que, nele, ocorre empurrando a linguagem para sua borda. Um singular erotismo do desabamento onde corpos se encontram às vezes em apenas uma frase, na qual se lê: “eles fizeram amor”. Ponto.

Nesse sentido, longe de ser uma escrita da melancolia da não relação ou do ressentimento advindo do colapso dos encontros afetivos, o que temos em Duras é normalmente a descrição de vidas que passam através de fendas. Ou seja, esses colapsos acabam por traçar contatos improváveis, permitir que vidas sigam trajetos que pareciam interditados, mesmo que ao preço de quebras. Pois como disse anteriormente, a atrofia não é resultado de alguma censura, mas da própria lógica interna das relações sexuais. A ideia de “lógica interna” é adequada nesse contexto. Trata-se de descrever a dinâmica das colisões do desejo não como o resultado de uma restrição externa, mas de uma lógica interna. Raramente, os personagens de Duras são contidos por alguma impossibilidade exterior. Antes, é da própria dinâmica do desejo que parecer vir os movimentos aberrantes dos amantes. Pois é a maneira que eles tem de dizer “para os afetos que animam tais personagens ainda não há lugar”.

Em O deslumbramento de Lol V. Stein há uma cena final comentada pela própria Duras. Ela se refere a um lugar. Atravessada pela impossibilidade de estar presente na cena de seu próprio desejo, Lol atravessa o romance a observar sua amiga e seu amante transarem em um hotel. Ela está lá como olhar, na borda. Mas é assim que Duras descreve esse lugar:

Quando ela está deitada no campo, atrás do hotel no qual se encontra Tatiana e seu amante, ela não procura vê-los. Ela dorme. Ela dorme na sombra de outros personagens. Sua felicidade está lá. É um estado do pensamento. Ela é obrigada a inventar todos os instrumentos de sua felicidade. O mundo de Lol V. Stein é um mundo coerente, que se torna coerente.

Esse lugar no qual se pode dormir na sombra de outros personagens, no qual nos deixamos ser sequestrados pela sombra de outros, é um lugar aparentemente aberrante, que poderia parecer patológico para alguns, mas que é onde um deslumbramento pode ocorrer. O que não deixa de ser uma felicidade singular.

O termo, que aparece no título do romance, é a tradução aproximada de ravissement. De fato, ravissement é uma palavra de difícil tradução. Seu sentido normalmente é descrito como um sentimento provocado por alegria ou admiração intensa, como um estado de prazer intenso que nos retira do contato com todo o resto. Êxtase, arrebatamento, encantamento: esses são termos possíveis de tradução. No entanto, em francês o termo também significa “rapto”, “sequestro”. Esse segundo eixo de significação nos remete à etimologia do termo. Ravissement vem de ravir que, por sua vez, vem do latim popular rapire: uma alteração do latim rapere, que significa exatamente “tomar para si com força e violência”. Há de, inicialmente, demorar-se diante da precisão dessa palavra. Uma palavra que unifica a violência e a entrega, o rapto e o arrebatamento, criando um campo confuso entre o involuntário e o voluntário, o não consentido e o consentido. É nesse lugar impossível que Lol dorme na sombra, ao mesmo tempo, do desejo e da angústia de outros.

É interessante lembrar como o romance chegou até essa felicidade. Nas suas últimas páginas, há uma cena de sexo, que nunca é diretamente descrita, que é sem lirismo, que é como um vazio indescritível, sem adjetivos, uma sequência de efeitos sem causa, mas que aparece como a confrontação bruta com um ponto de fuga. O corpo de Lol é inicialmente impenetrável, extenuante até o ponto de seu amante pedir ajuda. De fato, ela o ajuda. Algo ocorre, uma outra forma de arrebatamento. Mas agora não mais o arrebatamento paralisante, e sim algo da ordem do que provoca gritos, insultos, súplicas, a desorientação de quem procura, ao mesmo tempo, fugir e se fazer capturar, até o momento de uma dupla nomeação, quando ela nomeia a si e a seu ponto de fuga, ao mesmo tempo. Como se houvesse aquilo que só se nomeia através do deslizamento contínuo entre dois nomes próprios: o dela e o da amiga que ocupa seu lugar na cena dos encontros.

E depois, eles acordam. Ou seja, houve o dormir juntos, o acalmar-se, que também não se descreve, que é acolhido em silêncio. Depois do silêncio, há o retorno, a tentativa de narrar, agora feita pelo próprio amante que quer saber como é a vida em casal de Lol. Ela fala, diz tudo o que ele quer saber, ela pode dizer tudo, embora nada será escrito no romance. Como se fosse apenas uma possibilidade que não será usada, nunca, como quem descobre, ao mesmo tempo, poder atravessar uma fronteira e nunca ter efetivamente tido o desejo de atravessá-la.

Então eles voltam à mesma cena, com uma mudança substancial. A perda mudou de lugar. “Senti o afastamento de Lol com uma grande dificuldade”, é o que diz seu amante. E nesse deslocamento do afastamento, nessa relação com alguém para quem ela pode ofertar a perda que lhe constituiu, uma outra função do sexo se desenha. Essa que nos permite dormir na sombras dos outros. E assim uma outra forma de falar de sexo aparecerá: nesse ponto entre despossessão e deslumbramento. Uma outra maneira de aproximar angústia e gozo. Ponto no qual o Eu não narra experiência alguma, mas apenas obriga a língua a mostrar suas próprias cicatrizes.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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