Para que serve a poesia?

Para que serve a poesia?
Arte Andreia Freire

 

Quando, depois de ter organizado o dossiê “Passagens de Franz Kafka” e, sobretudo, mais recentemente, o dossiê “Poemas para o nosso tempo — A nova geração de poetas do país”, Daysi Bregantini teve a generosidade de me convidar para criar uma coluna de poesia no site da Revista CULT, com a publicação de um livro impresso resultante do projeto, aceitei imediatamente: como não fazer a poesia de nosso tempo e o pensamento a partir dela chegar a um número maior de pessoas? Se, em algum grau, é uma chance de cuidar, gratuitamente, da poesia atual, ampliando seus espaços para que ela chegue a um número cada vez maior de pessoas, levando a elas sua singularidade múltipla e vitalmente intensiva, é igualmente, e ainda com importância bem maior, uma possibilidade de deixar a poesia cuidar minimamente do mundo em que vivemos, cuidar, a seu modo, de nosso tempo. Neste Brasil e neste mundo cada vez mais bárbaros, em que o empenho maior por todos os tipos de controles e domínios impera, a poesia diagnostica também quem não se dedica a ela e cuida ao menos de quem a ela se entrega.

Neste tempo de destituição e mesmo de destruição de toda e qualquer alteridade, neste tempo que poderia ter no pau de selfie um de seus símbolos, neste tempo que, mais séria, pertinente e responsavelmente, está sendo chamado de tempo do antropoceno, a poesia é, desde sempre e ainda agora, dentre outras possibilidades, uma abertura à alteridade. Quer saber quem é o outro, quer se abrir ao outro, quer se misturar ao outro, quem quer que seja esse outro (mesmo que o outro em nós mesmos), leia a poesia. Há certamente uma pedagogia poética, uma política poética, ainda que instáveis, indeterminadas e dificilmente detectáveis.

Minha ideia na coluna é estar aberto a alteridades, ser mais um curador do que um escritor, ainda que isso possa vir a acontecer, sobretudo se os convidados não responderem ao chamado — o que torço para não ocorrer —, para deixar essa política e essa pedagogia da poesia agir sobre nós. Se o curador não deixa de ser um escritor que praticamente não escreve, buscarei então ser um escritor que, enquanto curador, escreve sem escrever, escreve pelos outros.

No que diz respeito ao meu desejo, por aqui passarão poetas, críticos, poetas-críticos, editores de poesia, pessoas das mais diversas idades, que lidam com a poesia que está atualmente sendo criada; poetas poderão estar ora escrevendo, ora sendo escritos por outros. Que a impotência da poesia (o fato de ela estar fora do mercado, fora do egocentrismo, fora do antropocentrismo, fora de todo absoluto, fora do hegemônico) deixe alguma de sua potência comparecer, questionando os poderes totalitários, alterando nossas vidas ou nos dando elementos para transformações, que ela nos ofereça, mesmo que instável e microscopicamente, o que pode oferecer, mesmo que sejamos movidos sem compreender muito dessa força. E, sobretudo, que a poesia — e/ou as apresentações da poesia — nos afete; que este seja, preferencialmente, um espaço que deseja se deixar e nos deixar afetados pela poesia.

Pouco adianta delinear com mais precisão meu projeto ou meu sonho para esta coluna; não que ele não exista — ele existe e, mesmo, com alguma clareza, tendo estado presente nas muitas mensagens que mandei até agora chamando algumas das pessoas que admiro a colaborarem em temas que estejam entre o meu desejo e um dos modos mais evidentes de suas atuações.

Um projeto como este depende, entretanto, de alguma coisa entre o sonho do curador e a realização dos convidados, entre um mínimo de expectativa e o inesperado que vem. Deixo então que a abertura deste entre para a surpresa (também para mim) do que vai chegar anuncie e enuncie paulatinamente o rastro do porvir de “O cuidado da poesia – poemas do e para este tempo”.

Da poesia, Barthes já disse “Poesia = prática da sutileza num mundo bárbaro. Daí a necessidade de lutar hoje pela poesia: a poesia deveria fazer parte dos ‘Direitos do Homem’; ela não é ‘decadente’, ela é subversiva: subversiva e vital”. Lutar pela poesia para se submeter e submeter quem quer que seja a seus cuidados sutis, subversivos, vitais.

Se há algo que a minha vida me mostrou desde há muito, como talvez nenhuma outra de minhas experiências, é que, onde há poesia, a dose de saúde é maior, ou, dizendo de outra maneira, que a poesia é um receptáculo de intensidades, um arquivo de intensidades, uma disponibilidade de intensidades que em algum lugar se encontram com as nossas, ditas e caladas, esforçando-se ao máximo em criar em nós subjetividades mais porosas.

ELA, O OUTRO

Alberto Pucheu

diz-se muito que a poesia não serve para nada.
diz-se que a poesia não serve para nada
tanto para atacá-la quanto para defendê-la.
tolos dizem que a poesia não serve para nada,
diz-se, mesmo filosoficamente,
que a poesia não serve para nada,
poetas dizem que a poesia
não serve para nada.
eu mesmo já disse algumas vezes
que a poesia não serve
para nada (como já disse outra coisa
que isso exatamente em um ensaio
chamado “literatura, para que serve?”)
hoje, mais uma vez, não vou dizer
que a poesia não serve para nada
(pode ser que no futuro eu diga
alguma vez
que a poesia não serve para nada),
hoje eu vou dizer que a poesia serve
a um outro, que a poesia é o lugar de um outro.
quer aprender a alteridade, aprender
a se relacionar com outro
(quer aprender um outro
quem quer que seja esse outro),
mesmo com um outro
que, saiba você ou não, já há
em você, vá ler poesia.

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