Palavras quebradas na poética araweté

Palavras quebradas na poética araweté

 

A criação de poemas pode vir de um sujeito inspirado por suas ideias, sensações ou afecções, mas os mundos ameríndios nos mostram a possibilidade de outras fontes de inspiração. Mostram, para começar, que sujeitos são atravessados por relações que ultrapassam a pessoa, que ligam um Eu a diversos Outros. Mostram que essas relações são fontes geradoras de cantos, narrativas e discursos. E mostram, enfim, que o enunciador de um canto dificilmente é o único responsável pela criação de uma nova expressão poética.

Entre os Araweté, com quem trabalho desde 2011, os cantos estão relacionados a diversas figuras de alteridade, onde predominam os inimigos, os deuses e os espíritos. São esses Outros que, ao fim e ao cabo, geram aquilo que é cantado pelos Araweté. Os “cantos de inimigo”, na expressão de Eduardo Viveiros de Castro, são um dos gêneros da poética araweté e têm sua origem nas escaramuças em que os Araweté se envolveram com outros povos indígenas do interflúvio Xingu-Tocantins. São cantos muito difíceis de traduzir, como me diziam Irarũno e Jatumaro Araweté, dois jovens-adultos que trabalharam comigo na transcrição e tradução de cantos. São cantos em que as palavras são decompostas e recompostas para formar novos vocábulos que, na língua araweté, não querem dizer nada. As palavras são quebradas em sílabas e, então, ligadas a sílabas de outras palavras, mas das novas composições verbais não é possível extrair um referente qualquer. Extrair o sentido dessas novas expressões, então, requer realizar um processo inverso de decomposição/recomposição, que busque encontrar as palavras escondidas sob esse véu de transformação. No entanto, se a transcrição desses cantos exige esse processo de decodificação atenta, a criação dos cantos decorre de um evento bem diferente. Se o tradutor precisa ouvir e pensar como grafar os cantos de inimigo, o cantor precisa encontrar um inimigo.

Foto Alice Kohler

Os cantos de inimigo originam-se de combates travadas entre os Araweté e seus inimigos tradicionais – os Parakanã, Asuriní e Xikrin, todos habitantes do médio rio Xingu e de seus afluentes. Esses confrontos cessaram em meados dos anos 1980 e os cantos cantados atualmente têm origem em escaramuças dessa época ou de épocas anteriores. São cantos que perduram ao longo do tempo e normalmente são de posse de uma pessoa, a qual pode dar esses cantos a qualquer um, mas perdendo a prerrogativa de cantá-los ritualmente. Quando um inimigo é flechado em um confronto belicoso, o matador araweté precisa ficar deitado em sua rede por um breve período, quando o espírito desse inimigo morto o visitará para contar aquilo que viu e ouviu em sua viagem post-mortem até o lugar em que o “céu termina de descer” (iwã neji pã). Nessa viagem, o espírito do inimigo morto passa por lugares, presencia cenas e escuta conversas que ele posteriormente relata ao matador que está deitado em sua rede se recuperando dos efeitos corporais de um ato como o homicídio (ou de um ferimento infligido ao inimigo). É possível dizer, sim, que a “guerra” é uma parte constitutiva das cosmologias ameríndias, desde que se entenda que não se trata de guerras de extermínio ou destruição completa tal as que nos acostumamos a produzir no século XX. Diferentemente do que já se disse, os povos ameríndios não são violentos por natureza ou qualquer coisa do gênero. O homicídio é coisa rara e séria, e o matador precisa enfrentar um processo que envolve indisposição, angústia, jejum e restrições alimentares. Um processo que o acompanhará até o fim da vida, pois a sua relação com a vítima não acaba nunca e essa relação não é possível esquecer.

As palavras e expressões dos cantos de inimigo passam pelo processo de decomposição e recomposição durante essa viagem do inimigo morto. Quando ele conta ao matador o que viu e ouviu durante sua viagem, suas palavras já estão modificadas em forma plena e seu sentido descolado dos sentidos da língua araweté. A pessoa deitada na rede escuta os cantos, precisa memorizá-los por um tempo e, em seguida, pede aos outros araweté que uma festa seja feita para que os cantos possam ser apresentados. Essa festa é uma cauinagem, onde se bebe uma bebida amarga e levemente alcoólica chamada cauim (kãn), produzida pelos Araweté a partir do milho. O cauim de milho embala a festa, cujo centro de atenção é um bloco de homens que cantam na frente das casas e que tem uma forma complexa de enunciação, pois no centro do bloco está aquele que recebeu os cantos do inimigo morto. Há um jogo de vozes em que os outros homens do bloco tentam cantar  ao mesmo tempo que o cantor, apesar das pequenas variações que ele introduz de tempos em tempos. Cada canto dura entre 20 e 30 minutos e é seguido por um intervalo de duração semelhante, o que faz com que uma festa possa durar mais de um dia inteiro, a depender do número de cantos a serem executados.

Um canto diz…

hãne heye mãma ñãña                                                                                  manga basen fure enfure

rãno ɨ                                                                                                                   cecom

ɨña tsɨmu                                                                                                            oci póman

… mas é difícil entender a tradução para o português do lado direito da página. O canto diz “manga basen fure enfure cecom oci póman” e é difícil divisar qualquer sentido. Com esforço, percebe-se que o verso é “com o cipó, mamangaba se enfureceu”, percebe-se que as palavras estão cortadas ao meio e que o sentido se transforma, dificultando a leitura. Ao mesmo tempo, percebe-se que o verso começa no meio da segunda linha e não no início da primeira, como seria o usual.  Palavras como “hãne” e “heye”, assim como todas as outras, não existem na língua araweté, mas podemos divisar as duas sílabas da posposição “nehe” ligadas a pedaços de outras palavras. As palavras em língua araweté, no lado esquerdo da página, estão separadas de acordo com a respiração dos cantores, que é seguida pelo movimento de seus corpos. Respiração, vocalização e movimento andam juntos, sendo impossível dizer qual é a causa e qual o efeito. A tradução, nesse sentido, pode levar em conta esses efeitos poéticos na hora de grafar cantos ameríndios em que há um nítido efeito sobre a forma verbal e visual. O papel não consegue reter todas a complexidade melódica, rítmica e gestual das performances originais, é claro, mas vez que outra podemos tentar.

A forma particular do canto acima provém de uma execução ritual dos cantos, na qual aspectos corporais, coreográficos, vocais e rítmicos são inseparáveis. O efeito dos cantos de inimigo sobre a escrita vem, então, desse aspecto verbi-corpo-respiral que dá forma às palavras e as palavras quebradas dos cantos araweté evocam, no leitor de poesia, experimentações feitas por e.e. cummings, mas lembram sobretudo os trabalhos de Haroldo e Augusto de Campos. “Silêncio” ou “Lygia Fingers” são exemplos da poesia concreta em que não somente a quebra das palavras como também a relação entre melodia e tonalidade produziram poemas que parecem necessitar do corpo e da voz como suporte primordial.

Guilherme Orlandini Heurich é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Conheceu os Araweté em 2011 e, até hoje, se perde com traduções de seus cantos.

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