O mundo depois da palavra: Couraça, de Dirceu Villa

O mundo depois da palavra: Couraça, de Dirceu Villa
O poeta, ensaísta e tradutor Dirceu Villa, autor de 'Couraça' (Laranja Original, 2020) (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Dirceu Villa é um poeta que escreve muito e publica pouco. Em mais de vinte anos de atuação, produziu quatro volumes de inéditos e uma antologia. Couraça (Laranja Original, 2020) deste ano terrível e estranho, é apenas o seu quinto livro. Como quase sempre ocorreu com os demais, este é um livro longo e diverso. E como os outros, esconde na diversidade o segredo de sua unidade mais profunda. São 120 textos que apontam para muitas direções. O caráter vário dos poemas não está apenas na matéria vasta em que se espalham, mas também nos muitos dispositivos formais que mobilizam e no trânsito intenso entre vozes, estilos e tempos que tem lugar no livro. Tudo nele é compósito, desde a imagem que lhe serve de título, tomada a Gustave Flaubert: trata-se de uma armadura feita de orgulho e poesia, em cuja trama se combinam ouro e ferro.

Defesa e adorno, dura delicadeza. Os elementos que se misturam na definição dessa couraça estão disseminados no corpo do livro. Proteção contra as ameaças e traje de combate, a armadura é uma outra pele, impenetrável e artificial, voltada contra o mundo. Uma arma, enfim, ainda que sua função seja resguardar o corpo, conforme destaca o texto da orelha feito por Guilherme Gontijo Flores. Agindo para neutralizar os golpes recebidos, a roupagem permite a luta e facilita o ataque. Mas a couraça é também uma forma de distinção: quem a usa (como as joias e as insígnias militares ou religiosas) sabe-se diferente dos demais, tornado singular. Fechado em si, o sujeito se investe com alguma força; escolhido, afinal de contas, entre o comum dos homens.

O que se diz dessa espécie de armadura secreta vale também para a poesia e o poeta – une cuirasse de poésie et d’orgueil. Em especial a poesia do próprio Villa, que não se remeteu em vão, nas epígrafes de seus livros mais recentes, a Sousândrade e a Flaubert. Os versos que abrem Icterofagia (2008), “ele afinou as cordas de sua harpa/nos tons que ele somente e a sós escuta”, não expõem apenas a dissonância lírica. A solidão do artista é o seu dado fundamental, a dignidade do criador que se percebe alijado numa sociedade para a qual a arte deve ser sempre mercadoria fácil. A música produzida principalmente para si (“ele somente e a sós escuta”) indica a muito conhecida soberba do poetas – a consciência dupla que portam de sua alienação e de sua liberdade. A relação conflituosa entre o artista e a sociedade, fundamental na conformação moderna do lugar problemático da poesia em meio aos demais discursos, tem na questão da altivez dos poetas um desdobramento importante.

 

A soberba, para além do pecado
cristão, se relaciona com a
soberania – é à autonomia da arte
que ao fim se endereça o problema.

 

 

A altura a que aspiram os poetas, a nota elevada com que afinam a lira são partes da condição antitética da poesia moderna, e da poética de Dirceu Villa em particular. Poeta que se volta para o chão e para as coisas menores, Villa, como tantos artistas na modernidade, está ligado também ao céu e à sacralização do transitório. A liberdade do escritor está, ao mesmo tempo, na recusa dos lugares-comuns da elevação afetada, daí o rebaixamento da linguagem, e na defesa da poesia como um discurso inassimilável por outros – discurso próprio, centrado em seus pressupostos e vinculado aos mecanismos de valoração de si mesmo.

O alto grau de especialização do poeta (domínio técnico, erudição, virtuosismo) é uma das faces visíveis da questão em Couraça. No livro, bem como nos demais trabalhos do autor, a soberba é um dispositivo antiburguês e anacrônico, isto é, discrepante em relação ao estado de coisas do presente. Ao mesmo tempo aristocrático e em rebelião. Não por acaso, descort é o termo que Dirceu utiliza para nomear seu segundo livro (2003). Nessa palavra se pode ler tanto a remissão erudita à forma poética da langue d’oc quanto, por afinidade sonora, a negatividade da descortesia e da discordância. Uma política do sensível se delineia aqui: a distinção do poeta nega a banalização acrítica da linguagem e a obediência à mercantilização das formas de vida. Voz em contracorrente, a soberba se projeta no diálogo de Villa com Sousândrade, oferecendo outro significado para o que, nessas duas poéticas, é exigência e descompasso aparente em relação às tendências estéticas dos tempos em que esses trabalhos surgiram e se desenvolveram.

Outra ponta desse circuito de relações, Gustave Flaubert compôs romances muito distintos uns dos outros, elaborando formas narrativas próprias para cada matéria sobre a qual se debruçava. Cultivou a precisão, além de condenar ferozmente toda a mistificação e ignorância da civilização industrial. A consciência aguda do ofício de escritor é o traço que melhor permite aproximar os dois autores. A altivez que manteve Flaubert e que vem sustentando Villa é uma forma particular de orgulho, ao mesmo tempo um modo de defesa da sua condição individual e uma declaração sobre a responsabilidade do poeta. A preferência de ambos pela sátira é a tradução formal dessas preocupações. Por meio da sátira (tanto no sentido da ‘mistura dos estilos’ quanto da crítica mordente aos desajustes do mundo) os escritores fixam o que há de político em seus trabalhos. O extraordinário e o comum, de l’or et du fer, os extratos baixos e altos da sociedade e da cultura se tocam e confundem, desierarquizados (e também os modos de sua representação). A busca pela palavra justa e pela imagem certeira é inseparável do pensamento crítico, realizando-se sem qualquer preciosismo. A linguagem é o campo de batalha primeiro e preferencial.

A imagem da couraça atravessa muitos momentos do livro como uma ética da força e da proteção. Um dos primeiros poemas, a “Prece materna para corpo fechado” evoca, numa peça alta intensidade lírica e dramática, um escudo de palavras. Numa sucessão de apelos apresentada em longos versos anafóricos, e que remetem à fé popular e ao mito grego de Aquiles e Tétis, a voz que se ouve no poema (uma mãe) quer envolver o filho vulnerável ‘na névoa mais clara’, onde não o alcancem nem as “chagas da chantagem” ou a “intratável violência da ambição”. A elevação musical desses versos (feitos de assonâncias e claros padrões rítmicos) confirma o caráter ritual da oração, construído como canto suplicante. Em “Íbex”, o animal solitário e possante, ‘como se músculo só’, escala a montanha íngreme procurando “o verdor no sol/da aridez vermelha”. Seus chifres e cascos e dentes são a armadura diminuta que lhe coube, e com a qual enfrenta a parede de pedra do precipício. A cobertura do animal é frágil, os riscos imensos. Mas há, além do instinto e do hábito, como um fascínio na subida. O domínio de si irrompe no gosto pela altura.

 

É um corpo em resistência
e orgulho. Como certos poemas,
é áspero e sublime.

 

 

Em “Respondendo à hipótese do vazio”, o poeta escolhe escrever contra a ameaça do zero, o “nada exorbitante”, propondo o poema como obstáculo à entropia que ameaça engolir um mundo “nunca mais repleto”. Assumindo um ponto de vista coletivo, o sujeito poético lembra que, aos homens, a todos, embora depauperados e ontologicamente desprotegidos, “tão sós/nos cumpre sempre descobrir o sol”. Nesses versos de tessitura sofisticada a abertura vocálica do final funciona como reelaboração sensível do chamado vital feito. Abrir-se à presença do mundo, sentir em si a sua existência e a partir daí, imerso em claridade, agir sobre ele. A responsabilidade do poeta se revela assim, duplicada: mesmo envolto numa couraça, virtualmente intacto, ele escolhe, ante a barreira dos “gritos em cacos”, deixar-se atravessar pelo que há – pelo que pode haver – de “inundação no riso” em cada esquina, canto ou gesto. No que poderia ser um movimento oscilatório contínuo entre porosidade e oclusão, em Couraça prevalece o sentido da abertura. A busca pelo sol, o enfrentamento da montanha e mesmo o aspecto desamparado do corpo filial revelam outro significado, menos óbvio, para a armadura do título. A couraça confeccionada por Dirceu Villa convida à rua e ao desconhecido; não segrega ou brutaliza, antes diferencia e impulsiona.

Ainda que firmemente assentado sobre o seu próprio tempo, construído em torno da consciência crítica de um lugar (o país, sobretudo), a memória e as viagens ocupam lugar importante no livro. São o contraponto de unhappy mondays permanentes, da vida danificada e do trabalho alienado, de golpes de estado que repetem, circularmente, o “secreto escuro timbre” das deposições violentas – “césar apunhalado no senado/senados traiçoeiros com punhais afiados/(cf. 2016 d. C.)”. As paisagens que se alternam e os sucessivos tempos que se acumulam dentro do eu criam intervalos em Couraça, abrem zonas de respiro: seja uma “Cena de trenós em Greenwich” ou um instantâneo no “Mercado de Masaya, Nicarágua”. Somada à capacidade de observação e à imaginação transfiguradora do poeta, esses outros cenários e épocas emergem como momentos de iluminação profana.

A verdade é que Couraça é um livro solar, apesar de tudo. Atravessado pelas contradições insuportáveis de uma época injusta e em desagregação, sem contorná-las ou esquecê-las, ainda assim prevalecem os momentos de busca por outra vida possível. A alegria que se arranca ao futuro, para falar com Maiakóvski (mas já sem a ironia trágica do poema dedicado ao amigo suicida) orienta a composição das canções rigorosas de Dirceu Villa, peças de requinte sonoro e plástico em que se destacam o amor e a virtude – a coragem, sobretudo. As figuras femininas constantes em diversos poemas condensam o elemento sensorial tão caro ao poeta. As melhores imagens que sua poesia fabrica fundam-se em sons e texturas e cores concretas, tradução verbal daquilo que fala primeiro ao corpo do que à inteligência. As assonâncias e rimas toantes, o corte exato assinalando a célula rítmica do verso curto, suas suspensões e enjambements, são os meios formais que inscrevem a alegria (nesses poemas o afeto fundamental) mesmo nas peças em que a ausência ocupa o centro do quadro: “devora meu coração/o voraz apetite/de sua memória/involuntária/em mim”.

Dirceu recusa, desde o primeiro poema do livro, “Sim”, o dado cru da realidade não depurada, seu olhar vai se dirigir às belezas possíveis que crescem ao redor. São elas que confirmam que a vida segue e é o avesso do “interrogatório dos dardos” & “a vigília das metas”. A “carnadura da terra/onde incham galhos e frutas explodem/doçura na terra” é o espaço privilegiado por onde o sujeito transita entre mundos, posto fora, momentaneamente, dos circuitos opressivos do capital. A presença em muitos poemas do elemento natural remete ao universo estético e ético de Leonardo Fróes, poeta que problematiza o tempo e a atenção. Se Dirceu não guarda o tom meditativo dos seus versos, retém de Fróes, no entanto, o senso de integridade e desafio da Natureza, bem como certo caráter outsider (também orgulhoso?) daqueles que, vagando às margens, se interessam por estranhar o corpo social e seus arranjos.

A mesma lógica que explica, em Couraça, a frequentação de múltiplos espaços, às vezes em contraposição, às vezes em complemento uns aos outros, pode ser observada também, de modo similar, na passagem entre tempos distintos que faz o poeta. Saltando, de poema para poema, entre épocas e referências, ele as sobrepõe ou entrechoca, dando-lhes movimento. Não se trata de ecletismo pós-moderno ou turismo histórico, ao contrário. Os textos deixam perceber uma concepção específica, arraigadamente moderna, da arte. Os artistas (as obras, sobretudo) são sempre contemporâneos uns dos outros, isto é, não se confinam apenas ao seu contexto específico.

 

Pertencem a todos os tempos,
sem abandonar jamais a
historicidade que carregam.

 

 

Desse modo, Dirceu pode escrever uma “lyra aragonesa: refram de junho”, refazendo em português atual a doçura melódica da poesia trovadoresca, em diálogo e rede de apropriações com o clérigo-cantor Martim Moya (séc. XIII). O amor cortês e as convenções do estilo – notáveis em versos como “unguento/que põe no peito alarde:/torna o riso/em luto,/todo tempo é/tarde”, com suas rimas internas e aliterações em ‘t’ e ‘d’, que conferem ritmo pausado e grave ao canto ligeiro – passam a integrar um jogo de máscaras, no qual a exposição confessional dá lugar a uma dramatis personae. A variação do estilo e as metamorfoses da linguagem são partes dessa destituição autoral, que compreende também diferentes pontos de vista e injunções ideológicas. O exercício do poema se dilata ainda mais conscientemente como ficção; as identidades se desestabilizam de modo definitivo num processo de disseminação de vozes que traz à tona os experimentos formais da vanguarda (Pound, Eliot, Pessoa) e um entendimento constelar, posto que sincrônico, da criação poética. Não há historicismo ou progresso, a verdade do eu é a dispersão. O mais novo pode estar no mais antigo, todas as épocas se comunicam.

Estranha em relação à dicção corrente de boa parte da lírica brasileira recente, a poesia de Dirceu Villa é necessária aos nossos dias justamente pela sua obstinada singularidade. Distante tanto do antilirismo dos que esgarçam o verso e expõem os seus limites, quanto dos que escrevem a partir do coloquialismo estilizado como expressão poética quase obrigatória do país, o poeta vem definindo o seu caminho. A releitura criativa que faz de múltiplas tradições e a elaboração exigente do poema, sempre desdobrado como forma inquieta e poliédrica, marcam um ponto de referência na cena atual. Assinalam aquilo que a poesia no Brasil também pode ser. O espaço de liberdade dessa poética, capaz de interessar-se, a modo de exaltação ou lamento, pelo “sol em caldas”, a “delícia: círculo/árduo de ácido/cítrico” de uma laranja, ou pelos desastres morais de religiosos hipócritas, não deve ser perdido de vista. Numa era de gregarismos e markentig pessoal, é uma abertura e um desvio.

Gustavo Silveira Ribeiro é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Couraça
Dirceu Villa
Laranja Original
176 páginas – R$37,00


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