Os odiadores da nação

Os odiadores da nação

Cena do episódio “Nosedive”, da série Black Mirror (Foto: Reprodução)

O que a série Black Mirror nos ensina sobre política? Os odiadores zumbis da cultura das redes e o colapso da democracia

 

Dois episódios da série Black Mirror funcionam como o espelho partido de uma sociedade em estágio paródico em que situações que poderiam ser consideradas improváveis, farsescas ou hiperbólicas se tornam possíveis e se efetuam, não sem produzir uma perplexidade geral.

O tema da vigilância massiva e participativa, consentida, foi tratado em Black Mirror, de Charlie Brooker, série que encena o presente do futuro, mostrando como essas questões já existem em potência em nosso cotidiano.  Basta ler no El País ou em vários jornais do mundo para ter certeza:

“China vai usar dados pessoais para catalogar cidadãos e empresas. Sistema [a ser implantado até 2020] será usado para avaliar a confiabilidade e a lealdade política de cada indivíduo e companhia. Ser catalogado como mau cidadão implicará castigos tão diversos como a proibição de se alojar em alguns hotéis, viajar da forma mais confortável ou a possibilidade de que os filhos estudem em escolas melhores”, diz a notícia.

Não se trata de ficção! Para “pontuar” o cidadão chinês, o governo poderá ferir a privacidade de milhões, criar um sistema de vigilância massiva, dispor de big datas de populações inteiras, manipular dados pessoais, de relacionamentos, de consumo, financeiros, abrindo um precedente alarmante que negocia liberdade e controle em troca de “seguridade” e vantagens pessoais.

Como na China de 2020, no episódio Nosedive (que quer dizer derrocada ou “baixa”, como nas quedas das bolsas de valores), todas as interações sociais estão sujeitas a uma avaliação em tempo real, que pode ser convertida em mais acessos e vantagens sociais ou em segregação.

Desde as revelações de Snowden sobre a vigilância massiva nos EUA – de cidadãos, empresas, países – podemos imaginar os usos políticos, sociais e econômicos dessa vigilância indiscriminada. A Operação Lava Jato usou e abusou no Brasil dos vazamentos, escutas, do uso político de investigações que deveriam correr em segredo de justiça para viabilizar o golpe jurídico-midiático que tirou uma presidenta eleita do poder.

Em Black Mirror, a popularidade nas redes torna-se moeda social em tempo real. Para ter acesso a um imóvel, a relacionamentos e trabalho é preciso se capitalizar com a moeda dos likes, ser amável, sorridente, educado e comportado 24 horas por dia, sob pena de despencar na bolsa de valores dos comportamentos e receber punições.

Não é isso que propõe o governo chinês? Com o “sistema de crédito social” a ser implantada até 2020 com objetivo de “ir além dos sistemas de classificação de crédito financeiro que já existem no Ocidente para encorajar uma sociedade onde imperem a honestidade e o civismo”.

Ser aceito socialmente torna-se a condição de sobrevivência, o que já experimentamos na vida social. A monetização dos youtubers, celebridades e anônimos torna-se norma geral e ganha uma concretude perversa com acontabilidade dos afetos e interações. Os comportamentos podendo ser vigiados e avaliados entre todos e pelos governos.

Em Nosedive, a ditadura da polidez, a hipocrisia e a reciprocidade forçadas criam um mundo de falsidades e comportamentos condicionados. Uma normopatia e gentilezas caricaturais. Se alguém cai em “baixa” como a personagem Lacie, uma Alice no país das amabilidades forjadas, terá que mendigar estrelinhas e simpatia ou será aos poucos penalizada até ser expulsa do sistema, pois todo conflito, ruidocracia e controvérsia serão castigados.

Ranquear e Punir

Se toda subjetividade será ranqueada, então sorria, você está sendo avaliado! Usuária do Uber, fiquei surpresa quando descobri que os clientes desse serviço de transporte também são avaliados em tempo real no aplicativo, não só os motoristas.  Passageiros mal educados, grosseiros, brigões, alterados, recebem uma nota de zero a cinco. E no dia em que descobri o ranking, o motorista me revelou, não sem ironia, que a minha nota poderia melhorar.  E que ele iria me avaliar bem. E esperava reciprocidade, claro.

Mas, como em Nosedive, as consequências do sistema de “crédito social” do Uber – ou da Chin –, são assimétricas e mais segregadoras para uns. Ou seja, se você briga com o motorista porque ele pegou o pior caminho, não dá bom dia, entra com um grupo falando alto, em condições etílicas anormais, ele te avalia mal e o resultado é que se você pedir um carro ele atenderá primeiro o cliente melhor pontuado. Em contrapartida, os motoristas mal avaliados no final de algumas corridas são obrigados a refazer o curso de treinamento, podem ser suspensos por 48 horas ou até demitidos! (leia mais na matéria da Folha)

Ao mesmo tempo, essa dupla avaliação é o perspectivismo trazido para o rés do chão. As pessoas têm relações de mando e poder com os serviços que estão pagando. A dupla avaliação dá uma relativizada. E é o que na prática fazemos a todo minuto: avaliamos, julgamos e ranqueamos serviços, gente, governos, motorista, parceiros, namorados. Ou seja, certamente muitos clientes também vão se condicionar e modular o seu comportamento, interiorizando o sistema. como descreve Foucault sobre a introjeção da vigilância pelos prisioneiros do Panóptico.

Sociopatas

 Nosedive é uma caricatura do politicamente correto, em que não se pode mais expressar qualquer diferença. Mas a loucura da busca da aceitação social máxima tem como contrapartida outra sociopatia: os odiadores máximos. Os “haters” das redes sociais que se comprazem em viralizar seu ódio, julgar e condenar em tempo real.

Um dia todos terão seus quinze minutos de linchamento nas redes! Poderíamos dizer, evocando Andy Warhol e seu fascínio pelas celebridades instantâneas do século 20, agora em uma versão distópica e pop-apocalíptica, que esse é um dos temas de Os Odiadores da Nação, fábula pedagógica de Black Mirror.

Trata-se de uma intrincada trama em que emerge uma sociabilidade mutante em simbiose com redes, dispositivos, celulares, GPS, sensores, drones, câmeras de vigilância, mídias e todo tipo de telas. O pesadelo agora não é o excesso de amabilidades, mas o “efeito manada” do ódio, o politicamente intolerável.  Uma “licença” para violentar, segregar, matar tudo o que for “outro” ou que simplesmente desagrade momentaneamente os muitos.

Os discursos de ódio e suas consequências são apresentados na sua banalidade, mas capazes de produzir efeitos devastadores na vida de quem sofre linchamentos virtuais, bullying, trollagens, assédios e perseguições nas redes.

Os casos vão sendo apresentados na sua banalidade e horror. Uma escritora que desagrada os leitores em um artigo se vê subitamente submersa em milhares de mensagens, xingamentos pelo Twitter, e é encontrada morta de forma violenta. Celebridades do mundo pop e da política que entram em controvérsias passam a ser ameaçados de morte através de uma hashtag especial.

Odiadores da Nação (Hated in the Nation) tem drones que são abelhas-robôs enxameando e polinizando flores reais por reconhecimento visual, vigilância governamental massiva, criptografia, operações de hackeamento e ao final uma sinistra fábula moral em que todos os odiadores das redes sociais são castigados. O episódio literalmente encena a experiência de um enxameamento e onda persecutória com efeitos devastadores tanto físicos quanto psicológicos para odiadores e odiados.

 “Not My President”

A terceira temporada da série Black Mirror chegou em perfeita sintonia com os odiadores políticos da campanha eleitoral norte-americana que elegeram Donald Trump, essa mistura histriônica de Silvio Santos e Jair Bolsonaro,  presidente eleito dos Estados Unidos da América.

Um dos resultados mais catastróficos da história moderna das eleições aponta não simplesmente para uma era de retrocesso global, nacionalismo e belicismo, ações anti-imigrantes, xenofobia e racismo. Trump chega ao poder de forma espetacular, como um personagem escandaloso ou aberrante de Black Mirror.

O mundo irá rejeitar esse discurso avassalador de ódio e intolerância? No mesmo dia que se anunciou o resultado das eleições nos EUA, milhares de americanos foram para as ruas em vinte e cinco cidades protestar contra a eleição de Donald Trump. Em Nova York se dirigiram para a Trump Tower, na Quinta Avenida – as torres nos EUA são as novas pirâmides de uma casta de bilionários – pedindo a “demissão” e “deportação” de Trump, respondendo no mesmo tom provocador do Republicano.

“Um passo pra frente e cinquenta anos para trás”. O paradoxo da eleição de Trump é que ele vai na contramão não apenas de um avanço nos direitos, contra o feminismo, os imigrantes e latinos, os negros, explicitando os discursos de ódio, mas vai na contramão do próprio processo cultural e financeiro da globalização. O que poderiam ser processos emergentes de uma cidadania global, processos de lutas transnacionais, recebem um choque de obscurantismo com o nacionalismo e todos os racismos exacerbados de Trump. Uma força nacional-separatista anti-globalização.

O Mundo Contra Trump

Uma “carta global contra Trump” corre nas redes sociais em mais de quarenta idiomas e com quase três milhões de assinaturas dizendo:

Caro Sr. Trump, não há grandeza no que o senhor está fazendo. Rejeitamos seu apoio à tortura, seu clamor à morte de civis e a forma como o senhor incita a violência em geral. Rejeitamos seu menosprezo às mulheres, muçulmanos, mexicanos e milhões de outras pessoas que não se parecem com você, não falam como você e não rezam para o mesmo deus que você. Decidimos enfrentar seu medo com compaixão. Frente a sua desesperança, escolhemos a confiança. E, em vista de sua ignorância, escolhemos a compreensão. Como cidadãos globais, nós resistimos à sua tentativa de separar-nos uns dos outros.”

Mas Trump não se abalou e reafirmou, depois de eleito, que irá deportar três milhões de imigrantes e construir um muro separando os EUA do México, algo impensável até hoje.  Para muitos, Trump é o espelho pelo avesso, que reflete uma imagem obscura, incômoda, perturbadora das formas de sociabilidade contemporâneas. Sociopatia que tem representantes no Brasil em Felicianos, Malafaias e Bolsonaros que falam para um contingente que não se identifica com a política institucional e têm suas razões (empobrecimento, ressentimento, desconfiança) para agarrarem-se a performance histriônica dos “outsiders” da extrema-direita.

A todo instante somos demandados como performers e atores. Que personagem viver? Somos demandados a observar e cuidar de nossa performance social, privada, a viver identidades prontas ou construir outras a partir de oscilações e demandas paradoxais que denunciam um lugar vazio a preencher: o do sujeito. Na política esse vazio tem sido preenchido por figuras histriônicas, que fazem pouco do “politicamente correto” e apostam no mando e na autoridade.

Como pensar as democracias contemporâneas confrontadas com esse tempo das redes, que se acelera cada vez mais e demanda tomadas de decisões em tempo real? Precisamos criar uma democracia plebiscitária, uma dromocracia que não corra o risco, como alerta o pensador Paul Virilio, de produzir uma ditadura da velocidade, com reality shows políticos, “zoológicos humanos” e paródias de participação.

Podemos lidar com o lado virtuoso da democracia direta e da governança e exorcizar os “odiadores da nação”? Como dialogar com o eleitor-espectador onipotente que quer excluir e eliminar participantes da cena política (mulheres, negros, imigrantes, gays) e que é instigado a impor seus valores e participar de lógicas de rivalidade, ódio e punição?

Como lidar com esse eleitor que é adulado e colocado no lugar de “supremacia” e também na função de juiz, executor, avaliador? Ao excitar as massas, ao atiçar seus piores extintos, Donald Trump pode ser também a primeira vítima de um outro enxameamento, nas ruas, nas redes, de cidadãos globais, que entenderam que a lógica do espetáculo tem um reverso, que o espelho negro pode ser quebrado para refletir mil faces, revoltas e insurgências em fluxo. Como as abelhas-drones de Black Mirror, os odiadores zumbis da cultura das redes podem ser o prenúncio de uma democracia que chegou no seu limite e entrou em colapso. Que venham outros enxames produzindo mel.

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