Os labirintos de Dante

Os labirintos de Dante

Luiz Costa Lima

A edição da Divina Comédia que tenho diante de mim é quatro vezes preciosa. (a) por sua tradução. De autoria de um tirolês naturalizado brasileiro, João Trentino Zeller, é a melhor versão completa em português da obra máxima de Dante; (b) por ser acompanhada das notas de leitura de João Adolfo Hansen, tão simples como eruditas; (c) pelos comentários de Henrique Xavier sobre as ilustrações de Sandro Botticelli (1445-1510); (d) por seguir o projeto gráfico idealizado pelo próprio Botticelli.

Tantos títulos dificultam uma resenha que nem banalize seu objeto, nem exceda seu papel informativo. Tentarei fazê-la pela combinação de dados gerais com observações pontuais – a começar por uma dessas.

Na introdução à coletânea The Greek and Us [Os gregos e nós], o poeta inglês W. H. Auden não hesitou em declarar: “Não há nenhuma obra literária grega tão grande como a Divina Comédia”. Logo a enlaço às informações genéricas: escrita entre 1265 e 1321, suas primeiras edições surgiram em 1472.

Sua fama tornou-se tamanha que não duvido de que mesmo seu não leitor saiba que se trata da viagem de um mortal que, por interferência daquela a quem amara na Terra, é guiado por Virgílio pelos reinos do Além, o Inferno, o Purgatório – para não falar também do Limbo, reservado a filósofos, poetas e chefes políticos e militares que tiveram a infelicidade de viver antes da vinda de Cristo – e, depois, por ela mesma, através do Paraíso.

Tampouco duvido de que mesmo seu leitor tenha ouvido falar da geografia de cada uma daquelas províncias. Importam–me as duas primeiras – posso dizer que são as minhas favoritas? O Inferno, que o leitor encontrará na bela ilustração de Botticelli, é um abismo cavado sob Jerusalém pela queda de Lúcifer, depois de expulso do Paraíso.

É formado por nove círculos concêntricos, dotados de plataformas que se ligam entre si, quando o Estige, o rio do Inferno, não as corta, e se estreitam como pirâmide invertida. Concentram-
-se em seus círculos os condenados, distribuídos de acordo com seus pecados, reservando-se o mais estreito e baixo para os traidores.

No Canto III, o Inferno abre-se para um vestíbulo, reservado para os mornos, os que “viveram sem infâmia e sem louvor”.

Já o Purgatório tem outra disposição. Formado pelo deslocamento de matéria advindo da depressão do Inferno, constitui uma montanha cônica, que se ergue a partir da superfície terrena.

Sensível à conduta dos habitantes de cada província do suprassensível, Dante faz notar que, enquanto os condenados à pena eterna hão de ser chamados para contar suas desgraças, os de passagem pelo Purgatório empenham-se em pedir que, de volta à Terra, o poeta narrador os lembre, pois as orações dos vivos aliviarão suas penas.

Além da teologia

Considerando-se a data de feitura do poema, é evidente que ele não podia deixar de se enquadrar nos princípios da teologia cristã. Mas já não é tão evidente sua dimensão política. É certo que Dante fora um florentino enredado nos conflitos políticos da cidade. Mas por si só isso não explica seu empenho contra papas e cardeais, acusados de pecados bem infames.

Assim sucede porque, sendo um “romance político-teológico” (E. Sanguinetti), como Hansen completa, “apropria-se das matérias de seu mundo e as figura sempre com medida exata e justa, mas nunca imparcial (…)”. Por isso, as dignidades eclesiásticas que o perseguiram estarão sempre em letras de fogo.

Guardarei as linhas restantes para duas anotações menos usuais. A primeira é de responsabilidade de Hansen. A propósito dos versos 25-27 do Canto VIII, acerca da coordenação entre dizer e fazer, o comentarista nota que, em oportunidades como aquela, estabelece-se uma quebra de sintonia entre a fala e a ação.

Dante faz três perguntas a seu guia, cuja resposta é adiada porque outra ação se interpõe. Isso cria um estado de alerta e tensão no leitor, antes comparável ao que se encontra na música vocal – a voz se “atrasa” quanto à entrada do instrumento musical – do que na poesia.

A segunda é ainda mais breve. A propósito do próprio título, Divina Comédia, costuma-se explicá-lo como resultante do apego de Dante à distinção antiga entre tragédia – a obra que termina mal – e a comédia – de final feliz. Mas, em obra recente, Categorie Italiane (1996), Giorgio Agamben relê a carta em que Dante explicava a Can Grande o título da obra e oferece interpretação bem mais interessante: “A tragédia aparece como a culpabilidade do justo, a comédia como a justificação do culpado”.

O leitor que seguir a pista verá como ela envolve toda uma concepção do amor. Se ainda couber: a presença/ausência da volúpia carrega/retira tragicidade da relação amorosa. A obra de Dante é uma comédia porque… Beatriz é beatífica. O tempo de Dante é bem outro, embora sua obra continue nossa.

Luiz Costa Lima é ensaísta e professor na Uerj e na PUC-RJ, autor de Vida e Mimesis (Editora 34)

Divina Comédia
Dante Alighieri
Trad.: João Trentino Ziller
Unicamp/Ateliê
560 págs.
R$ 280


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Clássico da literatura em língua latina e concebido para rivalizar com a Odisseia e a Ilíada, de Homero, a Eneida – em particular o canto I – é tema do livro As Armas e o Varão (Edusp), do professor da Universidade Estadual Paulista (Araraquara) Márcio Thamos. Escrita por Virgílio (70-19 a.C.), a Eneida é um poema épico que narra a fundação mítica de Roma por meio da história do troiano Eneias. Salvo dos gregos em Troia, ele viaja pelo Mar Mediterrâneo até chegar à região onde hoje se situa a Itália.

(2) Comentários

  1. Fui aluno do Prof. Joao Adolfo Hansen em 1996, na USP, e também aprecio literatura medieval. Sugiro uma reportagem sobre François de Rabelais, em especial “Gargantua e Pantagruel”, e, por que não, sobre o trabalho de Bakhtin.

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