Os caras do STF e a satanização bolsonarista

Os caras do STF e a satanização bolsonarista
Bolsonaro contaminou tudo quanto é autoritário e paranoico político desse país (Foto: Reprodução)

Esta semana veio a público o cantor Sérgio Reis convocando manifestações políticas de apoio a Bolsonaro, no dia 8 de setembro, enquanto explica que há um plano para além dos protestos de rua. Reis teria almoçado com o presidente da República e seus ministros militares, a quem teria informado de uma articulação envolvendo os grandes plantadores de soja brasileiros de um lado, como financiadores, e os caminhoneiros de outro, como executores. O projeto consiste em o cantor liderar uma comitiva composta por produtores rurais e caminhoneiros para ir apresentar um ultimato ao Senado Federal, entregando ao presidente daquela casa legislativa os desejos, expressos por Bolsonaro, de voto impresso (de novo) e impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Na verdade, o presidente disse na semana passada que encaminharia pedido formal de impeachment dos ministros Barroso e Moraes. Reis, mais ambicioso, prometeu pedir a cassação de todos, sem exceção.

Na marra e no murro

Atuando em paralelo e sintonia com a ação oficial do governo, Sérgio Reis não mais solicitaria, como fez questão de esclarecer, mas comandaria. “Vocês têm 72 horas para aprovar o voto impresso e para tirar todos os ministros do Supremo Tribunal Federal”, disse Reis em áudio que circulou esta semana. “Não é um pedido, é uma ordem!” Se as ordens não forem executadas, os caminhoneiros se encarregarão de fechar cada rodovia do Brasil. Não havendo cumprimento do exigido, completa, no prazo máximo de 30 dias, “nós vamos invadir [o STF], quebrar tudo e tirar os caras na marra”.

Os “caras” a serem depostos à base de sopapos de caminhoneiros, no caso, seriam os ministros da Suprema Corte brasileira, a cúpula do Poder Judiciário, um dos Três Poderes que compõem essencialmente qualquer Estado de democracia liberal.

Estamos no Brasil, em agosto de 2021. Para cada lado que a gente olha aparece um alucinado nas falanges bolsonaristas dizendo que vai dar um golpe de Estado ou fechar o STF ou o Congresso Nacional e que já está tudo planejado. Virou uma coisa banal neste país ameaçar membros do Judiciário e do Legislativo ou as próprias instituições. Não estou falando de crítica ou até mesmo do insulto, estou falando da autorização social à promessa de extinguir, cassar, prender juízes pelo abominável crime de dizer ao presidente, quando ele avança sobre direitos e exorbita o que lhe permite a Constituição, “não, não pode”. Para essa gente, só o governo tem o direito de existir no Estado, o resto faz parte da esfera do ilegítimo ou do estorvo.

Bolsonaro, o primeiro a sustentar continuamente esta posição, contaminou tudo quanto é autoritário e paranoico político desse país. Transformaram-se em zumbis desses filmes de epidemias, caminhando em hordas para Brasília enquanto se desfazem, putrefatos, a repetir obsessivamente “destruir o Judiciário, prender os vagabundos”.

Por outro lado, é verdade que desejam um golpe de Estado com toda a força do coração, mas “golpe” é uma palavra que não se atrevem a dizer. Na história que escolheram contar, representam-se agora como “guerreiros da liberdade”. A nova historinha posta em circulação diz que eles precisam “tirar os caras de lá”, nem que seja na porrada, porque os caras é que estão dando um golpe. O bolsonarismo, no máximo, daria um contragolpe, para restaurar a democracia violada pelo STF. É espantoso, não é? Mas está tudo escrito e, como se diz, tenho prints.

É curiosa a noção das liberdades a serem defendidas, na versão bolsonazi. Tanques e outros blindados acintosamente na rua é liberdade de manifestação, gravar vídeo com rifles e metralhadoras para mostrar que, se lhes der na telha, botam os juízes para correr a tiros, é liberdade de expressão. Ameaçar prender, espancar e cassar membros do Judiciário ou do Legislativo, prometer e agendar um golpe de Estado (se não lhes derem o voto impresso) e até, como fez Roberto Jefferson, declarar publicamente e às gargalhadas, como se nada fosse, que alguns ministros do STF são homossexuais, tudo isso é puro sumo de liberdade de opinião.

Já ditadura é qualquer ato proveniente de qualquer autoridade que impeça que o bolsonarismo diga o que quiser, faça o que quiser, consiga o que quer que deseje. Se os governadores implementam lockdown para salvar as vidas para as quais o presidente dá a mínima, são ditadores. Se uma empresa de plataforma retira do ar publicações que põem em risco a saúde pública durante a pandemia, estamos numa ditadura. Se o STF não permite ao bolsonarismo transformar a Constituição em papel higiênico, é ditadura. Na mente bolsonarista, ao vencer as eleições de 2018, Bolsonaro e os seus ganharam o direito de governar sem os limites constitucionais, sem revisão, sem prestação de contas, sem os sistemas de freios e contrapesos que estruturam qualquer República. E ai do ditador, golpista, violador de liberdades, vagabundo que lhes disser o contrário.

Uma nova narrativa, um novo demônio

Eu bem que avisei que o bolsonarismo não ficaria sem uma nova grande história, depois que perdeu os dois discursos em que apostou tudo sobre a pandemia e sobre o voto impresso. Pois está aí o novo conto do vigário: o STF, pasmem, é que está realizando um golpe de Estado.

“Como é que alguém aceita essa lorota de que o STF é que está aplicando um golpe e que cabe ao presidente reagir com um contragolpe?”, indagou um velho amigo que acreditou nos contos do vigário de que o impeachment era indispensável e urgente para salvar o Brasil, que o PT era corrupto – mas os outros, não -, que Lula era ladrão porque Moro disse que era, que Olavão era um pensador, que Guedes era um gênio em economia, que Moro era um juiz justo e imparcial, que os militares melhorariam a administração pública, posto que competentes e íntegros, que Bolsonaro era controlável e que, pelo menos, não era corrupto. O importante não é se a história é verdadeira, mas se é verossímil, já dizia Aristóteles, se ela consegue convencer as pessoas da sua plausibilidade. E em contar histórias mirabolantes nas quais muita gente acredita o bolsonarismo é mestre.

Para fazer a gestão do país e construir políticas públicas, o bolsonarismo se revelou imprestável. Por outro lado, é uma força formidável na destruição de imagem e reputação de instituições. Surfou na e reforçou a satanização do PT, da qual resultou a imagem de um partido de corruptos, ladrões e salteadores. Ao mesmo tempo, forneceu uma grande contribuição para a degradação da imagem pública da política, que resultou no enorme sentimento antipolítica que abriu espaço para a eleição de bolsonaristas em 2018 e 2020. Por fim, vem construindo, tijolo a tijolo, a satanização do STF, agora como ativista, golpista, moralmente corrupto (eivado de homossexuais, prevaricadores, vendidos) e, agora, ditador. Depois da demonização do PT, a satanização do STF é a realização mais impressionante da infernal indústria de narrativas do bolsonarismo.

E, ao que parece, nem cadeia ou ameaça de processos estão adiantando. Eduardo Bolsonaro (o da história do cabo e dois soldados), Weintraub, Sara Giromini, os deputados Daniel Silveira e Otoni de Paula, o próprio Bolsonaro, Braga Netto, Roberto Jefferson, Sérgio Reis e Augusto Heleno. A fieira de autoridades e celebridades bolsonaristas que vêm a público dando corpo à história de que “os caras” do STF devem ser “tirados de lá” só aumenta. Weintraub saiu corrido do país, Giromini, Silveira e Eustáquio foram em cana, Otoni foi condenado, mas Jefferson nem tinha ainda se acomodado na cela e já aparece um Sérgio Reis para manter quente o lugar reservado ao maluco bolsonarista de plantão que ameaça descer a porrada em ministros do Supremo.

Sim, os bolsonaristas se consideram investidos do direito de dizer qualquer absurdo antidemocrático. Os que têm mandatos, mais ainda. E os generais que os apoiam acham que têm costas quentes e que ninguém lhes toca. Mas há uma novidade: qualquer Zé Ruela bolsonarista acha que até ele pode ameaçar o STF. Publicamente, não no segredo da conspiração. Em áudios e vídeos gravados, não nos sussurros e por meio de código indecifráveis.

Isso quer dizer que não se teme mais a sanção social, ainda que se possa eventualmente temer o braço da Lei. Antes, quem agride e ameaça é recompensado no interior da tribo bolsonarista por likes, compartilhamentos, views e monetização. A este ponto, mesmo a Lei que puna será considerada injusta, portanto, ilegítima. E é justamente este o estágio em que que passa a valer uma autorização tribal para medidas ainda mais drásticas.

Ao se banalizar e, mais ainda, ao se recompensar um certo comportamento antes considerado antissocial, prepara-se o terreno para o próximo passo, que só pode ser a tragédia. E essa é a hipótese que mais me apavora nesse momento, neste grande hospício que se tornou o Brasil.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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