Os anos de formação de Antonio Candido
O crítico literário e professor Antonio Candido (Foto Alexandre Tokitaka / Dedoc)
Os anos de formação do autor de Formação da literatura brasileira. Assim podem ser definidos Bibliografia de Antonio Candido e Textos de intervenção, livros recém-publicados pela Editora 34 e comercializados em uma caixa contendo os dois volumes. Os títulos foram organizados por Vinicius Dantas – crítico literário que nasceu em Aracaju (SE) e mora em São Paulo – e dão um panorama da diversidade da obra de Antonio Candido por meio da reconstituição minuciosa dos vários textos que o crítico publicou desde 1934 e do resgate de ensaios e artigos que permaneciam inéditos em livro e reaparecem agora em Textos de intervenção.
A Bibliografia, obviamente, tem caráter mais “técnico” e serve de mapa para o pesquisador compreender melhor uma trajetória intelectual que se confunde com a história da literatura brasileira do pós-guerra. Mas o leitor não-acadêmico poderá se entregar a outros exercícios: verificar, por exemplo, que escritores mereceram comentários de Antonio Candido ao longo de sua obra, ou descobrir quais textos ele preferiu assinar com pseudônimos. Além disso, o volume traz um farto material iconográfico das diferentes fases da vida do crítico – o que, como observou o próprio Antonio Candido no depoimento que publicamos neste dossiê, acaba criando um gênero novo, fruto da combinação de imagens e textos.
Mas é em Textos de intervenção, seguramente, que se concentra o maior interesse dos lançamentos. Dividido em quatro partes, o livro reproduz vários artigos (a maioria deles dos anos 40) que haviam ficado inéditos desde a edição original em páginas de jornais e revistas. A primeira seção, “Direções”, apresenta reflexões de Antonio Candido sobre o ofício da crítica. São textos, por assim dizer, metacríticos. Mas – em se tratando de um autor que sempre se preocupou em mostrar o enraizamento da obra (ficcional ou não-ficcional) no contexto social e histórico – essa reflexão sobre a reflexão não se dá no plano da abstração conceitual, mas discute a razão de ser de cada conceito.
Exemplar, nesse sentido, é sua crítica ao essencialismo – feita em rodapé literário da Folha da Manhã em 1944. O essencialismo, como explica a nota do organizador, consistia na tendência a considerar a obra literária como veiculadora de uma estética absoluta e atemporal. Em resposta a essa vertente, representada por críticos católicos como Álvaro Lins e Tristão de Athayde, Candido escreve que aquilo “que se chama de essência de uma obra não passa de hipóstase das suas condições“. Em outro momento, Antonio Candido aproveita o prefácio ao livro Páginas avulsas, de Plínio Barreto (que ele substituíra nas páginas do Diário de São Paulo), para criticar o caráter acessório de certas preocupações “científicas” – descritas como “mania classificatória e metodológica, que substitui a análise pela divisão dos períodos” e pela “catalogação de escritores em agrupamentos mais ou menos inócuos”. Surpreendente, se pensarmos que Candido foi o epicentro da criação de uma crítica universitária (e portanto científica) no Brasil, esse elogio do impressionismo põe em evidência um pensamento que sempre procurou atingir o rigor analítico sem cair na abstração reducionista.
A seção “Argumentos” reúne a chamada “crítica militante”, aqueles textos escritos por ocasião de lançamentos de livros de autores muitas vezes desconhecidos – e que representam um risco geralmente evitado por nossos críticos de hoje. São conhecidos os “acertos” de primeira hora de Antonio Candido: ele foi, provavelmente, o primeiro crítico a identificar o talento de Clarice Lispector (ao resenhar seu romance de estréia, Perto do coração selvagem, em 1943) e Textos de intervenção inclui intuições semelhantes com relação a João Cabral de Melo Neto (no ensaio “Poesia ao norte”) e Guimarães Rosa (nos textos sobre Sagarana e Grande sertão: Veredas).
Mas a antologia feita por Vinicius Dantas também inclui referências a autores hoje obscuros para a maior parte do público. É o caso do próprio texto sobre João Cabral, que, além da análise de Pedra do sono, inclui uma leitura de Anjo dos abismos, do esquecido Rui Guilherme Barata. E é, sobretudo, o caso da resenha do livro Mundo submerso, de Bueno de Rivera – descrito por Antonio Candido como “um Carlos Drummond (…) que houvesse dissolvido a sua tanta ou quanta rigidez – o baque hirto de certos versos seus – nas larguezas melódicas e quase virtuosísticas de um Vinicius de Moraes”. A julgar pela recepção posterior de Bueno de Rivera e pelo vácuo editorial que cerca seu nome, poderíamos ver aí um erro de avaliação do crítico. Mas seria um julgamento precipitado: afinal, a editora Global prepara para este ano um volume intitulado Os melhores poemas de Bueno de Rivera…
Aliás, a presença da crítica poética em Textos de intervenção permite corrigir a idéia, corrente entre alguns leitores de Antonio Candido, de que ele seria mais sensível à prosa do que à poesia. Em um trecho de seu depoimento concedido à CULT (trecho que excluímos do corpo da entrevista para reproduzi-lo aqui), Vinicius Dantas tenta explicar o problema: “Tomando o volume de Brigada ligeira, lembro apenas que o recorte das obras de ficção aí estudadas denota uma preocupação com a continuidade de uma produção que, vinda do modernismo, passando por José Geraldo Vieira, José Lins do Rego e Cyro dos Anjos, desembocava claramente nas experiências de Fernando Sabino, Clarice Lispector e Rosário Fusco. Quem sabe tal continuidade não fosse possível de ser estabelecida em poesia, mesmo já estando publicado o primeiro livro de João Cabral. Mas esta exclusão se prestou para algumas sumidades insinuarem – é bom não esquecer – que Antonio Candido padecia de uma certa insensibilidade poética e por isso só analisava obras em prosa. Os artigos escolhidos [em Textos de intervenção] demonstram o infundado dessa opinião.”
A grande maioria dos textos selecionados por Dantas foi extraída da revista Clima (que Candido criou em 1939 com Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Salles Gomes), de seus rodapés na Folha da Manhã e no Diário de S.Paulo, e do “Suplemento Literário” de O Estado de S.Paulo. Já as seções “Conduta” e “Conjuntura” arrematam o conjunto com entrevistas, intervenções acadêmicas, discursos e ensaios que, extraídos de outras fontes, denotam as preocupações políticas subjacentes a seu trabalho literário. É a figura pública do intelectual engajado que surge em “Alemanha=Nazismo?”, “Plataforma da nova geração”, “Perversão da Aufklärung” e nos textos da Folha Socialista (boletim do Partido Socialista Brasileiro do qual foi diretor entre 1947 e 1952), cobrindo assim um arco de preocupações éticas e ideológicas que se estendem da época do Estado Novo e da Segunda Guerra até questões latino-americanas e brasileiras contemporâneas. Das quais, aliás, Antonio Candido continua sendo um intérprete imprescindível.
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