Os alienistas
O filósofo francês Michel Foucault em seu escritório (Bruno de Monès/ Latinstock)
No Natal de 1958, Georges Canguilhem escreve a Foucault, depois de ter lido o manuscrito de Loucura e desrazão: “Não mude nada, temos aí uma tese”.
Naquela época, Foucault ainda estava na Suécia, trabalhando como adido cultural, e enviara seu manuscrito a Canguilhem, que, desde novembro de 1955, havia sucedido Gaston Bachelard na cátedra da Sorbonne, por sugestão de outra grande figura da filosofia francesa do pós-guerra e que havia sido um de seus mestres na rue d’Ulm: Jean Hyppolite.
A frase lapidar e precisa de Canguilhem pode servir como uma espécie de emblema para qualquer avaliação que se faça da “atualidade” da História da loucura – ou seja, não é preciso mudar nada nesse livro para que ele continue sendo sempre uma fonte inesgotável de reflexão e trabalho.
Penso aqui numa concepção de “atualidade” que não se refere única e exclusivamente àquilo que, desse livro, ainda pode ser considerado legítimo ou verdadeiro, numa espécie de “recorrência” segundo a qual o presente julga o passado de uma ciência, de um campo de saber, baseado em critérios que são do próprio presente.
Como sabemos, o critério da “recorrência”, tão fundamental para a história das ciências professada por Bachelard, foi criticado por Foucault desde, justamente, a História da loucura. A “atualidade” de uma obra, portanto, é inseparável de sua própria história, entendida aqui tanto como a história de seu surgimento quanto a história de sua posteridade.
Dessa perspectiva, indagar sobre a “atualidade” desse livro exige, antes de mais nada, que façamos essa pergunta com base em nosso próprio solo – o Brasil – e no “presente que hoje somos”, como assim o exige o próprio Foucault.
Trata-se, portanto, de uma “atualidade” que, em vez de cortar os laços entre presente e passado, significa, ao contrário, estabelecer entre eles um espaço necessário de interrogação e interpelação. Assim sendo, o “presente que hoje somos” só adquire a fisionomia que lhe é própria na medida em que pode dirigir-se ao passado – não para venerá-lo, mumificá-lo, ornamentá-lo, mas para recolher seus apelos, suas vozes, mesmo que frágeis e antes que elas se apaguem definitivamente.
Que apelos são esses? Que vozes são essas? São os apelos e vozes, em geral na forma de gemidos, gritos, uivos, no dobrar-se quase animal dos corpos nus, estendidos num chão quente, corpos encarcerados, cujo destino era estar ali para sempre, à espera da própria morte.
Mortos-vivos
Não exagero quando pinto com essas cores o retrato dos antigos asilos, depósitos de loucos, ou melhor, de mortos-vivos, para os quais não havia nenhum consolo, nenhuma esperança.
Essa era a realidade da maioria dos antigos hospitais psiquiátricos brasileiros, que escondiam por trás de suas fachadas pomposas, construídas ainda no final do século 19, uma espécie de miséria diante da qual não havia nenhuma política pública, mas também nenhuma comiseração. O espaço asilar, entretanto, só poderia ser compreendido no exercício desses processos de exclusão absoluta e extrema, à luz de sua própria história.
Eis o primeiro aspecto fundamental que os leitores da primeira hora, de ontem, de hoje, mas também os do futuro reconheceram ou vão reconhecer no primeiro grande livro de Foucault.
Ao contrário de uma história hagiográfica, que transformava o psiquiatra em libertador dos loucos, ao contrário de uma história evolutiva e linear, que saudava o advento da psiquiatria como a ciência que enfim desvelara a verdade da loucura, ou seja, a loucura como doença mental, Foucault restitui a questão a um plano absolutamente inédito, o da história, mas não o de qualquer história, e sim aquela do embate entre razão e desrazão.
Com isso, ele inscrevia a questão da transformação da loucura em doença mental no interior dos processos que constituem a partilha entre razão e desrazão, uma partilha que fundou, como se sabe, a própria filosofia.
Com isso, chegamos ao segundo ponto: ao inscrever o nascimento do asilo e da psiquiatria no interior do embate entre razão e desrazão, Foucault transforma ambos, o asilo e o psiquiatra, num problema filosófico. E isso não é pouco, pois significa também reinscrever o espaço tradicional próprio à filosofia, que parecia absolutamente indiferente a esses “objetos” estranhos, esquisitos, julgados sem dúvida como pouco dignos diante das grandes questões acerca do ser, da verdade, da essência.
Formado na Escola Normal Superior da rue d’Ulm, Foucault não poderia ser acusado de desconhecer os grandes temas da tradição filosófica. Leitor de Nietzsche, ele pode, desde o início dos anos 1950, lutar contra o “pecado hereditário” de todos os filósofos: “a falta de sentido histórico”.
Mas também leitor de Kant, sua decisão de escrever uma tese complementar sobre a Antropologia do ponto de vista pragmático já anunciava sua ideia posterior de que toda filosofia deve ser uma “ontologia do presente”.
Os três “Hs”
Formado na leitura de Husserl, Heidegger e Hegel, os três “Hs” que dominaram grande parte do pensamento filosófico francês do pós-guerra, ele aprendeu, distanciando-se da fenomenologia, a questionar o estatuto do sujeito.
Com Althusser, outro de seus mestres, ele tomou contato com o pensamento de Marx e com o marxismo, embora sempre tenha recusado a distinção entre ciência e ideologia. Aproximando-se do último Merleau-Ponty (e, com isso, afastando-se decididamente de Sartre), pôde, enfim, estabelecer um diálogo entre a filosofia e as ciências humanas.
É na convergência – e na divergência – de todos esses caminhos que a História da loucura pôde surgir, transformando o filósofo num interlocutor fundamental e necessário para um conjunto de questões que pareciam não se incluir no campo nobre da filosofia.
Nessa perspectiva, vemos surgir um tipo especial de filósofo-historiador que deixou marcas profundas e indeléveis no Brasil. Se a primeira viagem de Foucault ao Brasil o confrontou com a ditadura militar no campus da USP, suas conferências sobre As Palavras e as coisas não produziram o efeito posterior provocado por suas outras visitas ao nosso país.
O que Foucault passa a expor no Brasil, nos anos 1970, em diversas ocasiões, no Rio de Janeiro, em Minas, na Bahia, em Pernambuco, no Pará, é o resultado de uma profunda autocrítica à História da Loucura, tal como, em especial, os cursos “O Poder Psiquiátrico” (1973-1974) e “Os Anormais” (1974-1975) documentam com eloquência.
Eis, portanto, a fulgurante “atualidade” desse livro: seu próprio autor volta-se para ele para retomá-lo, reinscrevê-lo (e não reescrevê-lo) nas novas possibilidades de análise abertas pela problematização das relações entre saber e poder. À luz dessa autocrítica, a História da loucura teve seu poder de fogo visivelmente ampliado, na medida em que o espaço asilar se legitima não como espaço da repressão, mas como espaço disciplinador, normalizador.
Por outro lado, ao avançar em seus estudos acerca do “poder psiquiátrico”, Foucault pôde distinguir dois movimentos essenciais na história da psiquiatria do século 19: o primeiro quando apenas o louco transformado em doente mental era seu objeto e o asilo o espaço institucional de sua intervenção, correspondendo às três primeiras décadas do século 19.
O segundo, entretanto, implica mostrar de que maneira a psiquiatria como que arromba os muros do asilo e torna sua intervenção ampliada para todo o corpo social. Ao louco como doente mental vão juntar-se todos os “anormais”. Agora, sim, a psiquiatria, triunfante, pode ser legitimada como o saber-poder por excelência, que aglutina, engloba, organiza, diversifica e rearranja tudo que diz respeito à distinção entre normal e anormal.
Ao Foucault formado na rue d’Ulm não escapou, entretanto, que essa distinção, na aparência puramente médica e, portanto, “científica”, se relacionava também com outras duas, uma epistemológica, por meio da separação entre o verdadeiro e o falso, e outra ética, por meio da distinção entre o moral e o imoral. Entre anormalidade e loucura estabelecia-se um liame indissociável, e a função da psiquiatria como uma forma de medicina social estava inteiramente legitimada.
Foi assim, então, que as reflexões de Foucault puderam estar na origem do movimento antimanicomial e na base das formulações essenciais da reforma psiquiátrica brasileira.
Isso não é pouco. Mas também não é suficiente. A “atualidade” da História da Loucura ganha assim seu elemento mais essencial, aquele que nos exige escutar as vozes que vêm do presente. Não há mais gritos, não há mais nenhum clamor?
ERNANI CHAVES é professor na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará e autor de Foucault e a Psicanálise (Forense Universitária