Onde vivemos criativamente

Onde vivemos criativamente

 

 

Winnicott estabeleceu um forte contraste entre a sua concepção de um modo criativo de viver – que permite ao indivíduo construir uma vida que, mesmo sofrida, vale a pena ser vivida – e a concepção freudiana de um modo de vida adaptativo, a serviço da maximização do prazer sexual, na sujeição às restrições impostas pela sociedade (repressão) ou pela razão (sublimação). 

 

A repressão incide sobre as relações objetais de base genital e gera conflitos na realidade interna freudiana, isto é, entre as instâncias do aparelho psíquico, resultando em inibição de impulsos, empobrecimento da experiência de viver, a não ser na fantasia desencarnada, e em várias formações defensivas que caracterizam a neurose individual e coletiva. 

 

A sublimação força a transição da área materna da sensualidade para o domínio do pai e da razão povoado de objetos mais elevados, mediante sujeição à lei do pai (ao social) ou aos ideais da razão prática. Estes recebem configurações mentais, não integradas numa pessoa e que podem ser vistas, sugere Winnicott, como formas do falso si-mesmo, personalidade complacente que vive na e pela mente, de forma estereotipada, sem relação íntima com o funcionamento do corpo ou mesmo com a imaginação.

 

A vida winnicottiana que vale a pena é composta por uma série de conquistas alcançadas ao longo do processo de amadurecimento, que vai do nascimento até a morte. A reunião, ainda que parcial, e o uso, até inconstante, das conquistas dessa saga maturacional é a vida criativa: a realização, sempre na dependência de um ambiente facilitador, do potencial herdado na natureza humana como expressão pessoal. Esse potencial inclui capacidades inatas de desempenho (criatividade primária, talentos etc.), bem como tendências inatas para o crescimento físico, o desenvolvimento emocional e mental e a socialização. Inclui, sobretudo, a tendência para a integração, a partir do si-mesmo espontâneo, verdadeiro, dotado de criatividade primária, de todas essas aquisições numa personalidade unida e autônoma. 

 

Todos os detalhes da vida, todas as coisas com as quais o bebê, a criança e o adulto podem topar, tudo que é encontrado, todo material de uso – seja ele um paninho, um pedaço de madeira ou um dos últimos quartetos de Beethoven – recebe um sentido pessoal. Tudo que é encontrado é criado, isto é, feito ou refeito, desta ou daquela maneira. Mas, onde começa exatamente esse processo de integração criativa e de fazer criativo? 

 

Quais são os níveis e os principais estágios desse processo? E mais: onde exatamente está uma pessoa enquanto vive criativamente a sua vida?

 

O bebê humano não começa tendo, propriamente, uma vida criativa. Começa ainda só, sem relacionamento, incapaz de fazer qualquer coisa em primeira pessoa, até mesmo de entrar em contato com alguém, no caso com a mãe ou quem está no seu lugar, pois depende dela para sair da solidão e para começar a ser e a continuar sendo. Aqui, o verbo de ligação “ser” não significa ser isto ou aquilo, mas ser idêntico a, no sentido de uma identificação que Winnicott chama de primária, em termos da qual o bebê é a mãe. E a mãe é ele, é parte dele, a saber, aquilo que ele colocou nela de si, seu objeto subjetivo, primeira manifestação da sua criatividade primária.

Nesse lugar de fusão inicial, o bebê e a mãe são uma e mesma coisa, por assim dizer, um dois-em-um. A mãe se encarrega de tudo: cuida de manter o contato, o estado de ser constante, assegura a duração e a continuidade monótona do tempo, e a contiguidade sem impedimentos do espaço. 

 

Ainda não há espera, nem distância. Sem o bebê saber, a mãe atende as necessidades do seu corpo. Ele mama em si próprio. Protege-o de invasões do mundo externo. Nesse estado simples, não diferenciado, tranquilo e seguro, de contato e fusão com a mãe, o bebê começa a se sentir um alguém, um si-mesmo unitário por momentos e um operador onipotente de atos espontâneos, com controle completo de tudo com que topa. Todos os detalhes da situação do colo obedecem à sua magia. Ele vive na ilusão, na área de ilusão de onipotência, na redoma da subjetividade pura, de projeções ainda sem objeto externo, numa vida que, do seu ponto de vista, ainda não é uma vida com alguém, ou junto das coisas. Supõe-se, em tudo isso, repito, que a mãe esteja no estado de preocupação materna primária, que o seu colo seja absolutamente adaptado às necessidades, que ela esteja fazendo tudo por ele.

 

Mas esse estado simples de ser em contato estável, acolchoado, não pode perdurar. A mãe logo acaba saindo do estado de preocupação materna primária e começa a falhar na sua adaptação. A relação de dependência muda. Inicia-se, então, o desdobramento do dois-em-um. 

 

A mãe se ausenta por mais tempo, fica mais longe, não é mais a mesma que ele projetou. O tempo vai deixando de ser mera duração e ganha as dimensões do passado, do que não é mais, e do futuro, a esperar; no espaço, já tridimensional, surgem distâncias a percorrer. O corpo tende a crescer e se faz notar nos estados excitados pelas necessidades próprias. Os detalhes da situação são experienciados como estranhos. Tudo isso acontecendo, o bebê se dá conta da perda de controle total e se torna ciente da dependência anterior. Vive a “des-ilusão”, que pode vir acompanhada de aflição, angústia, medo e impotência, e mesmo de raiva e ódio.

 

Nessa situação de relacionamento de dependência modificado, o bebê se defronta inevitavelmente com uma tarefa nova e complexa: livrar-se da dependência absoluta, integrando como seus esses desenvolvimentos que o favorecem e se equipando para, ao mesmo tempo, lidar com as perdas que eles acarretam. Aqui, como antes, o ambiente pode e deve (esse dever da mãe decorre da ética do cuidado) ajudar. Começa, então, o período de transição da redoma da vida subjetiva para a vida no mundo objetivamente percebido, compartilhado; jornada que na saúde nunca acaba e que consiste, no essencial, na substituição da fusão inicial, que se deve à mãe, pela integração produzida pelo si-mesmo unitário já estabelecido, espontâneo e criativo, que surfa nas funções somáticas e estabelece relacionamentos imaginativos com o mundo que essas funções buscam alcançar. Nesse período de desmanche do dois-em-um original, no espaço e no tempo já multidimensionais e nos relacionamentos objetais no mundo externo, entra em jogo a tendência inata para integração, juntando o que ainda resta da união inicial com o que pode agora a ela ser reunido, e comanda todo o processo de amadurecimento. Surge a pessoa inteira em condições de se relacionar com o mundo além do seu alcance, com suas propriedades constantes. O eu estável, integrado, compartilha seu mundo externo, ainda que colorido subjetivamente (colorido que é perdido na objetificação extrema teórica e prática do mundo, que ocorre na tecnologia), com outras pessoas e, como contrapartida, faz surgir o mundo pessoal (no jargão psicanalítico “interno”), mundo próprio, que, para começar, ele traz consigo na barriga. Nesse caminho desenvolve-se também a mente, que passa a ser usada para fazer as vezes da mãe. Começam identificações mais complexas, inclusive a identificação cruzada: já muito cedo, quando mamava, ele pode ter colocado o dedo na boca da mãe; agora, ele cria a fantasia e a disposição ativa de se colocar na pele da mãe, e permite, de fato espera, que ela faça o mesmo (ou melhor, continue fazendo o mesmo, como antes). Cria e assume o senso de responsabilidade, base da ética de cuidado, mais uma peça essencial do paradigma winnicottiano. Socializa-se. Cria família e entra na situação triangular de base genital. 

 

Já adulto, trabalha, talvez numa linha de montagem ou cozinhando, mas com empenho. Casa, valendo-se da capacidade de identificação cruzada já adquirida. Faz ciência, filosofia, participa da criação da democracia e luta por ela, se envolve em atividades culturais. Faz terapia.

 

Entre todas essas conquistas do viver criativo – conceito básico e exclusivo do paradigma winnicottiano – uma das mais importantes do ponto de vista maturacional é a a capacidade de brincar. Essa é uma forma básica do viver criativo e consiste na extensão da capacidade de criar e usar as primeiras posses não-eu, primeiras aberturas na redoma do mundo subjetivo e que são, em virtude disso, chamadas de objetos transicionais. No brincar, o bebê junta objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa e os usa a serviço de alguma amostra derivada da realidade pessoal, sem influência das excitações instintuais. Mais precisamente, os fenômenos externos, que ainda não são objetos impessoais da ciência e da técnica, são manipulados a serviço do sonho e revestidos de significado e de sentimentos de sonho: sonho que não é, como em Freud, uma realização criptografada de desejo (pulsão, libido), representante do instinto, mas elaboração imaginativa infinitamente rica dos relacionamentos objetais.

 

Desenvolvimentos diretos do brincar solitário são o brincar compartilhado e as experiências culturais. No campo da música, a criança provavelmente começa, observa Winnicott, gritando, produzindo barulho, batendo latas e soprando uma velha corneta muito antes de alcançar, a caminho da conquista maturacional – que tem de ser pessoal, criativa e não algo implantado – da capacidade de apreciar ou, quem sabe, cantar Voi che sapete. Aqui temos mais um pilar do paradigma winnicottiano, que não se encontra na literatura psicanalítica ortodoxa inteira, pois, como observou James Strachey, não há lugar para a experiência cultural na topologia da mente ou na teoria da sublimação de Freud. A experiência cultural é um modo de vida criativo que não é nem sonhar nem relacionamento objetal com a realidade externa. Ao mesmo tempo, é ambos. O sonho se ajusta aos relacionamentos objetais no mundo real, e o viver no mundo real ajusta-se ao mundo do sonho. E o material da experiência é o fundo cultural da humanidade, preservado nos mitos, na literatura, na religião, nas artes e, também, na história da ciência e da filosofia. Tanto na cultura, como na vida saudável em geral, o amadurecimento toma a forma de intercâmbio criativo entre a realidade interna e a realidade externa, uma enriquecendo a outra.

 

Onde se dá esse intercâmbio, esse processo de reintegração do dois-em-um, que não existe mais, em uma vida que seja uma realização pessoal? Essa é uma pergunta central de Winnicott nos últimos 20 anos da sua vida. Não se dá no mundo interno, seja ele freudiano (o das neuroses, dominado pelos mecanismos de deslocamento e condensação desencadeados pelos conflitos internos), seja ele winnicottiano, o da elaboração imaginativa espontânea, livre de tesões instintuais, das funções corpóreas. Tampouco tem lugar no mundo da realidade externa, seja ele freudiano (das imposições paternas, sociais ou da razão), seja ele winnicottiano, da realidade objetivamente percebida padronizada subjetivamente. Qual é então a área do viver na qual nos identificamos uns com os outros? Por onde passamos quando saímos do colo da mãe para a cama de casal ou para a sala de concerto? Onde nos encontramos quando torcemos por Guga lá em Roland Garros? Onde se encontram o paciente e o terapeuta?

 

A resposta de Winnicott, que desafia o comentador e o filósofo, é a seguinte: estamos em um lugar no contínuo do espaço-tempo, chamado abreviadamente de espaço potencial. Esse é um espaço, que nos possibilita encurtar ou mesmo suprimir a distância daquilo que buscamos alcançar com algo que temos aqui à mão. Esse lugar está no tempo, agora não mais estático, mas extático (aqui me lembro de Heidegger), duração desdobrada em passado, presente e o futuro, que podemos preencher, com infinita variedade de detalhes sonhados, juntando o que não é mais, o passado experenciado, e o que apenas antecipamos com algo experienciado no agora. Gradualmente, adquirimos e mantemos a liberdade de “cobrir” todo evento externo. A nossa percepção torna-se quase sinônima da criação livre. Viver criativo, inclusive a experiência cultural, acontece, portanto, numa abertura (termo de Heidegger, de novo) multidimensional, que faz parte da estrutura adquirida da personalidade de cada um de nós, e permite povoar o mundo real com exemplares da nossa vida pessoal e transformar a tradição, que tem no brincar e na experiência cultural suas principais sofisticações. A terapia, que é versão uma delas, se faz, diz Winnicott, na superposição das áreas do brincar do paciente e do terapeuta. Ou, poderíamos também dizer: na superposição de espaços e tempos potenciais de cada um e, ainda, no inter-relacionamento em termos de identificação cruzada.

Aqui surge uma nova pergunta winnicottiana: qual é a origem do espaço potencial, como ele é desenvolvido e mantido aberto até a morte?

 

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Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.

 

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